335-OS INVASORES ALADOS-Ecologia

A invasão estava sendo feita há anos, devagar mas sistematicamente. A tática usada era a mais elementar: pela multiplicação pura e simples, os invasores foram aninhando-se primeiramente nos vãos dos telhados coloniais, nos desvãos dos grandes galpões da cooperativa de cereais e nos vagões abandonados no extenso pátio da estrada de ferro.

Há muitos anos, quando os primeiros pombos apareceram na cidade, havia quem lhes lançasse quirera de milho na Praça da Matriz. Mas a moda passou quando as aves, consideradas o símbolo da paz, iniciaram uma verdadeira guerra contra as rolinhas, pardais, bem-te-vis, garrinchas, tizius, andorinhas, calafates e outros pássaros urbanóides. Saíram ganhando o espaço mas perderam direito à alimentação grátis. O que não foi problema, pois viviam de papos cheios com os grãos de milho, arroz e outros cereais que se espalhavam pelos pátios dos imensos armazéns ao redor da cidade.

O prefeito foi o primeiro a manifestar o aborrecimento ante o número cada vez mais crescente de aves da espécie, devido à sujeira que aprontavam nos jardins; sobre os monumentos públicos, manchados constante e perenemente pelas fezes brancas que escorriam sobre as cabeças dos ilustres homenageados; ou sobre os bancos dos parques públicos. Ensaiou um processo de dizimação dos invasores, mas foi logo impedido pelos vereadores do Partido Verde, os quais, apoiados pela OPO (Organização de Pessoas Ociosas, uma espécie de ONG caipira) de proteção aos animais, fizeram apaixonantes discursos em prol das aves, mas não apresentaram idéia alguma que pudesse resolver o problema.

Sim, porque a proliferação dos pombos já se tornara um problema para os habitantes da cidade. Nas casas, os piolhos caiam dos telhados, infestavam roupas e móveis. Nas praças, tornava-se arriscado o transitar diurno, pois a qualquer momento o pedestre era alvejado por troços de cocô — até o Monsenhor Agripa tinha sido alvejado, quando saia da Igreja. Nos pátios dos armazéns, era uma verdadeira praga, voando entre caminhões e carregadores. Apenas não havia reclamação da estação ferroviária, pois os vagões ocupados pelos pombos estavam abandonas, apodrecendo-se num canto do pátio de manobras.

Entretanto, dada a reação do Partido Verde e da OPO “Amigos dos Animais”, a população se calava. E os invasores iam se multiplicando. A reviravolta se deu no início do ano letivo de 2005. Nos primeiro dias de fevereiro, quando os alunos retornaram às escolas, um colégio deixou mais de mil alunos sem aulas. Os piolhos dos pombos infestaram de tal forma o edifício, que nenhuma sala de aula ficou livre da praga. Até mesmo na sala da diretora registrou-se a presença dos piolhos.

Tornou-se notícia de destaque. Inicialmente, nos jornais e TVs da região, depois, na capital do estado e finalmente, no Jornal Nacional. Foram descobertos outros focos de piolhos e outras áreas intensamente habitadas pelos invasores. No Pronto Socorro Municipal, um galpão usado como depósito de medicamentos, estava com o teto comprometido, em perigo de arriar, devido à sujeira — ninhos, penas, fezes e outros detritos — dos pombos. No cemitério, eles infestavam os mausoléus, por cujas frestas se adentravam, convivendo com os morcegos. Na torre da Igreja Matriz havia uma colônia crescente.

A cidade ficou em polvorosa. Houve uma verdadeira guerra de opiniões, sem nenhuma idéia prática para resolver o problema. Até advogados foram contratados pela OPO, a fim de defender as aves contra a única solução plausível: o extermínio, puro e simples, das nuvens de pombos que voavam de um canto a outro da cidade.

Foi quando surgiu, vindo não se sabe de onde, Severino, tal qual um emissário salvador daquele povo, acossado pela multidão de invasores alados. Pelo sotaque, tanto podia ser baiano como pernambucano.

— Minino! Que beleza de terra! Que fartura! E quanta água! — Ficou tão extasiado com a localidade, que assentou praça, isto é, fez das escadas da Igreja Matriz seu ponto de esmoleiro.

Não se cansava de contar, a quem quisesse ouvir, as agruras pelas quais já havia passado no sertão.

— Sim, meu rei, já passei fome arretada. Mi lembro de um ano de seca que nois caçamos os teiús até que num sobrou nenhum em toda a região.

Quando se viu incomodado pelos pombos, que o atingiam com mira acurada, partiu para a defesa. Habilidoso, fez um estilingue, com o qual passou a alvejar as aves. Prático em caçar os ariscos lagartos do sertão, era rápido, tinha boa pontaria e deu inicio à temporada de caça aos pombos. O melhor, para ele, é que não desprezava a caça. Levava os pombos abatidos para a vizinha de barraco, dona Eufrásia, que sabia preparar as aves de diversas maneiras.

— Minino, ceis num sabe cumo é bom um espetinho de borracho! — Lambendo os beiços, Severino fazia propaganda da carne dos filhotes de pombo.

Não adiantaram as queixas dos filiados ao Partido Verde ou da OPO (Organização das Pessoas Ociosas), pois Severino, como cidadão do mundo, era imune às pressões organizadas. Mesmo por que contava com a simpatia de grande parte dos cidadãos até então indefensos contra as aves.

Aconteceu uma verdadeira eclosão de caçadores de pombos. O estilingue foi a arma da época. As árvores ficaram despojadas de seus galhos em forma de forquilha e acabou-se o estoque de câmaras de ar estouradas, cortadas em tiras para o fabrico da arma de caçar pombos. Os meninos, que abatiam a maior parte dos pombos, fizeram das aves abatidas uma verdadeira moeda de transação. As receitas de dona Eufrásia, com mais de dez maneiras de preparar os pombos, ficaram famosas, e a carne de pombo passou a ser servida até nos restaurantes chiques da cidade. .

Antes de chegar o final do semestre, os pombos haviam sido totalmente exterminados. Tal qual estrategista de visão numa guerra perdida, Severino ganhara a batalha contra os invasores alados.

ANTONIO GOBBO – BELO HORIZONTE, 9 DE MARÇO DE 2005

CONTO # 335 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

(Baseado em notícia no jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte, de 16.2.2005.

“Invasão de pombos pára escola” )

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/07/2014
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