334-CEGOS PELO PRECONCEITO - Preconceito/Crime

Cláudio saiu cedo de casa pois a van que o conduziria ao Instituto passava de meia e meia e faltava pouco para a próxima. Na mão esquerda segurava firmemente a pasta de plástico, enquanto que a direita prendia a corda atada à coleira de seu cão-guia. Não teve dificuldade em chegar ao ponto de parada da van . As complicações começaram justamente com a chegada do veículo.

Ao tentar entrar, ouviu a ordem do motorista:

— O cão não pode entrar.

Surpreso, Cláudio esclarece:

— Mas todos os dias eu tomo esta van com meu cão.

— Mas a ordem que tenho é esta: cachorro não pode entrar

Pela voz, Cláudio percebe que não se trata do mesmo motorista de todos os dias.

— Você é novo na linha? – Pergunta.

— Não interessa — Responde a cobradora, uma voz esganiçada e estridente. — Ordens são ordens. Nada de cachorro dentro da van .

Cláudio também não reconhece a voz da cobradora.

— Ele tem direito de embarcar com seu cão-guia. Todo cego tem este direito. — Fala uma senhora, com voz autoritária.

Pode, não pode, os outros passageiros reclamam e entram na discussão. A passageira de voz autoritária continua:

— Pode sim, é da lei. Ele tem direito. Sou advogada, conheço as leis. A van não sai daqui se vocês não deixarem o cego entrar com o cão.

Ante a firmeza da mulher, o motorista e a cobradora permitem o embarque de Cláudio e seu cão guia.

O cego se acomoda, o cão deitado entre suas pernas, debaixo do banco. Percebe que o motorista e a cobradora cochicham, mas não dá pra ouvir o que tramam.

Chegam ao Centro Comercial-Setor Sul, onde todos desembarcam, menos o cego.

— Vou seguir até o Instituto.— Informa Cláudio, cujo destino é o Instituto Para Deficientes Visuais, cerca de dois quilômetros adiante.

— Agora, mais esta! — O motorista se aborrece. — É melhor você ficar aqui mesmo. Aqui é o ponto final.

— Se vira, cegueta. — A cobradora escarnece de Cláudio. — Cê tem esse cachorro aí pra quê? Vai, vai saindo.

De novo, a voz autoritária da passageira que se diz advogada se faz ouvir:

— Levem o rapaz até o Instituto. E ai de vocês se...

Antes que ela termine, o motorista arranca com a van , os pneus cantando. Cláudio não gosta do que está acontecendo e percebe que o percurso se prolonga além do necessário.

— Onde estamos indo?

A dupla motorista e cobradora não lhe respondem. De repente, a van sai da via asfaltada e entra por um terreno. Cláudio sente os solavancos. Para abruptamente.

— Pode desembarcar. — Determina o motorista.

— Mas aqui não é o Instituto. — Cláudio está temeroso.

Se tivesse visão, poderia ver que estavam num terreno baldio, num local isolado, cercado por árvores e arbustos.

Irado, o motorista desce do veículo e abre a porta de passageiros. Cláudio sente a manopla sobre seu antebraço, puxando-o para fora. O cão, normalmente manso e tranqüilo, rosna ao ver o dono ser arrastado para fora do veículo.

— Fecha a porta, tranca esse bicho aí dentro. — O motorista grita para a cobradora.

Os dois algozes arrastam o cego para trás da van e aplicam-lhe tapas, bofetadas, socos no rosto. O homem dá uma gravata no cego e a mulher dá socos no estomago.

— Ai, Ai! Por favor, não me batam!

O cão é solto, e se aproxima do dono, que tenta se levantar, apoiando-se nos faróis e na placa do veículo. Instintivamente, passa a mão pela chapa de metal, e “lê” as letras e os números. Sente que a lâmina de metal está frouxa, mesmo assim, nela se agarra, como se fosse o último elo com o mundo do qual está sendo expulso.

Os covardes agressores entram na van e a partida é acionada.

— Por favor, não me deixem aqui!

O veículo parte num tranco e a chapa fica nas mãos ensangüentadas do cego. Sente o sangue no rosto, nas mãos. as costas e as pernas doem. O cão lambe suas mãos.

— Socorro! Socorro! — A voz do cego é débil. Mesmo assim, é ouvido. Um transeunte se aproxima e socorre o jovem, estendido entre as touceiras. Pelo celular, chama a polícia, que chega prestamente.

Na van , os agressores se vangloriam do feito.

— Nunca mais aquele cegueta vai embarcar com a gente.— diz a mulher.

— É mesmo. — Depois de rodar alguns quarteirões, o motorista nota que tem alguma coisa batendo na traseira do carro.

— Aquele merda aprontou alguma coisa na traseira. — Estaciona o veículo e vai verificar.

— Puta merda! A chapa caiu. Vamos voltar. Sem placa não podemos rodar.

Preocupados em procurar a chapa, chegam até o terreno onde espancaram o cego, sem notar o veículo da polícia estacionado nas proximidades. Entrando com a van no mesmo local da agressão, encontram, de chofre, com os três policiais, que socorriam o cego e faziam a ocorrência.

— São eles. — Grita o cego. — Reconheço o barulho do motor.

Antes de qualquer tentativa de fuga, os policiais cercam o veículo e prendem o motorista e a cobradora.

ANTONIO GOBBO – BELO HORIZONTE, 8 DE MARÇO DE 2005

CONTO # 334 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

(Reportagem no Jornal Nacional-TV Globo de 29.01.2005)

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/07/2014
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