Para onde vamos?
Ele se sentou no alto do morro, de onde poderia ter uma ampla visão de tudo. Dali, ele conseguia ver toda a descida, inicialmente diagonal, mas que ia ficando mais e mais ingreme abaixo, e que terminaria em um pequeno lago, de onde correria um curso de água que se tornaria mais e mais largo à frente. Do outro lado do lago, à frente do morro, um grande platô vertical encarava o homem, e a queda d’água que alimentava o lago fazia barulho.Ele sempre ficava satisfeito quando visitava esse lugar, um dos poucos lugares de fácil acesso que o homem não havia maculado na região. Sorriu.
Mas seu momento de contemplação não durou. Em pouco tempo, uma criança, nove anos no máximo, se sentou ao seu lado. Era seu sobrinho, tinha vindo junto com toda a família para a temporada de final de ano. O homem não se incomodou, era bom que aquela criança, criada na cidade grande e cercada de brinquedos eletrônicos, aprendesse um pouco a ouvir a voz da Terra em um lugar como aquele. O menino não falou nada, mas ficou encarando o tio, com olhos inquisidores e testa franzida. Ele queria algo, e o homem suavizou sua expressão, permitindo a pergunta:
Tio, é verdade que eu vou para o inferno?
Foi a vez do homem franzir a testa, olhando para o menino como se estivesse interessado no assunto, mas que ele deveria dizer o porquê primeiro. A criança, de raciocínio rápido como a maioria da sua idade, continuou:
A professora me disse que eu vou para o inferno porque eu disse que Deus não criou o mundo. É verdade?
O homem suspirou, entendendo o porquê da pergunta. Não era a primeira vez que acontecia isso. As crianças de sua família eram criadas da melhor forma possível para serem tolerantes com a crença alheia, mas as pessoas de fora, infelizmente, não tinham a mesma educação. Várias vezes as crianças menores tinham problemas na escola, por não celebrarem festas católicas, dias evangélicos, montarem presérpios no final do ano. Elas chegavam em casa tristes, se sentindo desprezadas e diferentes das outras crianças que, por serem cristãs, faziam isso tudo juntas. O tio olhou firmemente para a criança:
Não, você não vai para o inferno porque o inferno é problema deles, não nosso. Eles falam isso para você porque não conhecem outra forma de pensar e agir, por isso são tão presos a esse lugar. Nossa forma de pensar e agir é diferente, por isso não temos que pensar no inferno, pois temos nossas próprias preocupações. Mas você também errou. Já dissemos várias vezes para não ficar provocando a crença deles sem motivo. Eles acreditam que o deus deles criou tudo. Você pode não acreditar nisso, mas não tem nada a ver com o que eles acreditam.
O menino abaixou a cabeça envergonhado, e tomou um pequeno peteleco do tio pouco acima da nuca. Ainda que a pancada denotasse uma punição, ela era também uma demonstração de carinho do homem, que não batera forte, de qualquer modo. Ele só tinha a intenção de atrair a atenção da criança, para que ela olhasse para seu rosto e visse seu sorriso de orgulho. O menino continuou olhando para ele, e acabou por franzir mais a testa e perguntar:
Tio, quem criou o mundo?
Isso importa? O mundo está aqui, nós vivemos nele, e somos uma espécie tão jovem nessa longa existência, porque deveríamos saber quem o criou?
A criança olhou para ele, inquisidora e depois, por fim, baixou a cabeça de novo. O tio pensou ter visto um lampejo de decepção nos olhos da criança antes disso. Deixando-o com a cabeça baixa, o homem começou:
Existem muitas histórias, garoto. Os homens da Escandinavia ocidental contavam a história de três deuses que, após matar um gigante, criavam o universo a partir de partes do seu corpo. Na Escandinavia oriental, onde hoje é a Finlandia, diziam de uma mulher que fora engravidada pelo vento, e lançada ao mar, e o movimento de seus braços e pernas levantando as águas criava as terras do mundo. Na África, algumas tribos diziam que um deus havia descido dos céus carregando um saco de terra e um jarro de água, e ele ia criando e dispondo das terras e mares à sua vontade. Para os gregos, claro, o mundo era Gaia, a mãe de Zeus. Para os cristãos e judeus, como sabemos, Yaweh criou o mundo em sete dias e depois descansou. Para os budistas, o mundo nem mesmo existe, é uma ilusão que precisamos transcender. São tantas histórias. Por que uma delas precisa estar certa e as outras erradas? Se você se preocupa demais com o começo do mundo, acaba perdendo o foco no que é mais importante para você.
E o que é mais importante? – perguntou a criança, confusa. O homem sorriu:
Qual é o seu papel nele. Qual é o papel de cada criatura, cada pedra, cada vento dentro dele. O que importa não é como o mundo, como o universo começou, mas sim o que fazemos nele.
O homem se levantou e pediu que o garoto o acompanhasse. Saíram de perto do barranco e foram caminhando na direção do pequeno pedaço de terras que a família tinha naquela região. Não entraram na casa, mas foram na direção do chiqueiro. Era um dia quente, e os porcos se deleitavam na lama dentro do cercado. O homem perguntou à criança:
Por que criamos porcos?
Para comer. Os caseiros criam porcos para comer, nós comemos os porcos quando estamos aqui. Utilizamos a pele deles também, bem como os ossos, mas os criamos principalmente para comer.
Já ensinamos a você que toda a forma de vida é sagrada, não é?
Sim, senhor. – a criança disse, cabisbaixa, talvez pensando no que haveria de sagrado em criar um porco para comer.
Tudo na vida tem um propósito. A vida cria vida. A vida termina. A vida se alimenta de vida. Se não criássemos porcos, eles ainda encontrariam porcas e teriam leitões. Talvez em quantidade menor, mas ainda teriam. Se não matássemos os porcos, eles ainda morreriam. E sua carne alimentaria outros animais. Quer dizer que não respeitamos a vida do porco? É claro que respeitamos! Ao fazer isso, somos parte de um ciclo natural de existência. O que nos torna diferentes das outras pessoas? Nós reconhecemos o valor do porco. Nós agradecemos aos nossos deuses por esse animal que morreu para que sobrevivessemos. Nós agradecemos ao espirito desse animal no momento de sua morte. Quando você morrer, mesmo que não seja devorado por lobos, tigres, leões ou hienas (reconheçamos, é uma perspectiva pouco provável), você ainda será comida. Vermes, insetos e larvas se alimentarão de você. Se você acha que o ser humano é especial, mude de idéia. Se estivessemos realmente acima dos animais, não seriamos alimento justamente para aqueles que julgamos estarem no patamar mais baixo dos seres. O porco cumpre sua parte. E por isso que permitimos ao porco crescer em boas condições, ao menos em terras de nossa família. Para que ele tenha vida antes de cumprir seu papel no ciclo, um papel que também cumpriremos um dia. – o homem se afastou do chiqueiro, fazendo um sinal para que a criança o seguisse.
Eles caminharam, caminharam, indo em direção à mata. Pouco antes de chegaram até ela, viram uma cena curiosa. Um quero-quero lutava para afastar um andorinhão de seu ninho. A ave lutava, lutava e lutava, e por fim, afastou a outra. O homem colocou a mão sobre o ombro da criança:
Não é porque a morte faz parte do ciclo que nos entregamos prontamente a ela. Para que o ciclo tenha continuidade, precisamos lutar. A confrontação é parte da vida. A luta honrada é abençoada, e ela é honrada quando é feita por nossa vida, pelo nosso clã, por nossos herdeiros. Mesmo que saibamos que um dia retornaremos à Terra, precisamos assegurar a sobrevivência dos nossos para que a nossa existência no ciclo da vida permaneça. Nâo devemos ter medo de morrer, mas também devemos ter brios de lutar. – Então, eles continuaram andando em direção à mata. O terreno foi ficando mais difícil, com a grama mais alta, e algumas flores primaveris no caminho.
Você se lembra da última vez que viemos para cá? – perguntou o tio. A criança assentiu.
Sim, foi em março.
E como estava a grama?
Ela estava seca, e morta. Vocês disseram que foi porque o verão tinha sido quente demais.
E agora ela está verde. Sinta o cheiro da terra úmida.O cheiro da grama, e de todas as outras plantas. A vida agora está em sua plenitude. Entenda, isso também faz parte do ciclo natural, e as plantas são nossas melhores professoras nessa parte: a grama nasceu, cresceu e morreu, mas a grama morta, na terra úmida do meio de março semeou o crescimento dessa nova grama, verdejante e bela. Ela também vai morrer, também irá por terra, mas através dessa morte, ela renascerá na grama nova, enquanto esse lugar for preservado. Viver, morrer, nascer de novo.
Eles chegaram até uma grandiosa figueira. Ela era grande e altiva, mas uma enorme cicatriz a abria. Um raio a havia atingido, mas ainda assim, apesar de alguns galhos secos, ela ainda produzia folhas verdes saudáveis. Ela estava viva:
Por que não viramos vegetarianos de uma vez? Aqui está a resposta. Essa filha da Terra, essa bela árvore, ela está tão viva quanto os porcos, quanto as vacas, quantos os nossos cães, quanto nós. Mais do que isso. Ela foi atingida por um raio e ainda assim luta para produzir brotos verdejantes. Você consegue encontrar um exemplo maior de luta pela vida do que essa árvore?
O homem se sentou nas raizes diante da criança maravilhada. Ele continuou:
Sabe por que você não vai para o céu ou inferno? Porque o sagrado ou o profano não estão em um local trascendente, que só atingido por aqueles que pagam mais ao pastor ou que entregam suas crianças ao padre. O sagrado está na própria vida, e na existência. Nós nascemos, nós crescemos, e nós iremos morrer, mas antes disso, lutaremos para que nosso papel dentro da terra seja cumprido, seja ele qual for. Essa árvore foi atingida por um raio, mas não se entregou, porque seu papel não foi cumprido ainda. O quero-quero lutou o máximo que podia contra o andorinhão, porque seus ovos estavam lá, e seu papel era defende-los. Isso é o sagrado: reconhecer a vida no céu, na terra, e no mar, reconhecer o valor de cada um. E com isso, você terá a chave do Outro Mundo; não o céu ou o inferno. Mas o nosso próprio mundo, visto com a visão do nosso povo. Essa árvore, que para você é apenas uma árvore, eu chamo de amiga. A luta entre um duas aves, que para você pareceria algo tão banal, para mim é a manifestação do funcionamento do universo. A grama que nasce, cresce e morre é a expressão máxima do ciclo, pois ela segue a nossa mais primitiva visão da passagem do tempo: as estações do ano. O mar, sagrado mar, não é apenas uma grande massa de água salgada, mas para mim é a entrada do meu espírito para o mundo dos mortos. Porque é isso que o Outro Mundo é: o nosso mundo, mas visto com olhos diferentes. Quando você compreende isso, pode aprender a se comunicar com os espíritos da terra. Nenhum de nós é imune a essa verdade, você nasceu, você cresce, você lutará, mas um dia irá morrer. Assim é conosco. Assim é com a Terra. Assim é com o Universo, que se expande mais e mais, mas um dia, se contrairá, novamente condensando toda a sua matéria, para reiniciar sua explosão incial, e começar de novo. Porque todos somos partes desse ciclo, e temos que trabalhar para que nosso papel seja cumprido. Como o quero-quero, temos de lutar pela sobrevivência de nossa espécie, nossa garantia de vida na terra, para que possamos continuar. Como a árvore, temos de permanecer firmes, mesmo sabendo que vamos enfrentar elementos hostis. Pois tudo aqui faz parte disso. Tudo nasce, cresce, morre e renasce. Todos os elementos da existência convivem e disputam, e tiram sua força um do outro. Seja se alimentando um do outro, seja fortalecendo um ao outro. Mas ao reconhecer a sacralidade da vida, ao reconhecer que, no Outro Mundo, toda a vida tem igual valor, podomos viver com a consciência e a responsabilidade de que nosso mundo precisa ser preservado. Tudo é entrelaçado, como a Terra, o Céu e o Mar são unidos pelo Bilios, a árvore-eixo. Se tudo é entrelaçado e parte desse ciclo, então cada ação que fazemos tem sua consequência no todo. Vamos simplesmente tirar o nosso corpo fora e deixar que nossa espécie inteira, junto com muitas outras, seja arrancada disso?
O tio parou por um minuto, e ficou olhando o menino, que o fitava arregalado; deu um sorriso gentil, respirou fundo e continuou:
- Desculpe. Sei que você esperava uma história das Tuatha Dé Danann, ou algo do Mabinogion, não é? Não foi o que eu fiz, mas ao mesmo tempo, foi. Porque tudo isso está por trás dessas lendas antigas, e de muitas outras mais. Está por trás das guerras Vanir e Aesir dos nórdicos, está por trás da Titanomachia do gregos. É um sentido único: o mundo foi criado, se transforma e um dia deixará de existir. A humanidade o habita, e como seres mortais, nascemos, crescemos e morremos. Como todos os seres da terra, temos o senso do nosso propósito, o que nos faz lutar por nossa existência, como as Tuatha Déa contra os Fomorian, as forças primordiais hostis à nossa sobrevivência. A decisão final, contudo, não é nossa supremacia sobre a Terra, que tem seu ciclo a cumprir, mas a trégua entre nós e Ela, como a vitória das Tuatha e o acordo com Bréas simboliza. Para entrar em acordo com a Terra, temos de reconhecer a sacralidade Nela, e isso é reconhecer a sacralidade da Vida. Isso é o que os Deuses do céu, que nos trouxeram as artes, nos ensinaram. É com a Terra e suas formas de vida, que nos dão a sustentação, que temos de entrar em acordo. E assim, nossos espíritos serão dignos de navegar as trilhas do Mar sagrado, caldeirão primordial de toda a vida, para sua merecida recompensa, com o nosso papel no ciclo cumprido, aos pés da Bilios, a árvore que une os três mundos. Saber quem criou o mundo, no fim das contas, importa menos do que saber o nosso papel, e de todas as coisas, nele.
Publicado originalmente em barddkunvelin.wordpress.com