324-DIAS DE DESESPERO-Conto do Tsunami-2004
A manhã estava excepcionalmente clara e quente. Alik chegou cedo ao local de trabalho, na construção dos bangalôs para hospedar mais turistas. O hotel, ao qual as construções eram agregadas, estava cheio de hóspedes do mundo todo. O rapaz, cordial por natureza, cumprimentava a todos, embora nem sempre obtivesse retorno de suas saudações. Com vinte e um anos, Alik Alziraf , como todo natural das ilhas da Indonésia, era tranqüilo e trabalhador. A família, humilde, não podia lhe proporcionar estudo, mas Alik tinha seu sonho.
— Vou trabalhar aqui até conseguir juntar algum dinheiro. Vou para a capital, estudar e aprender inglês. Quero viajar pelo mundo.
A região de Suki-Bali, ao sul de Sumatra, tem as praias mais bonitas da ilha. São quilômetros e quilômetros de costa de areia fina, muito branca, sombreada em toda a extensão por palmeiras e coqueiros que balançam suavemente as folhas, agitadas pela brisa que vem do sul. Na época as moções, o mar é agitado, mas agora, no final da estação das chuvas, está calmo e convidativo para longas horas sob o sol tropical.
Alik conhecia o mar, fora criado na pequena povoação praiana. O pai era pescador, como, aliás, todos os homens mais velhos da vila. Os jovens não acompanham os pais, pois era melhor e mais rendoso trabalhar para os muitos hotéis ou para os turistas. O rapaz tinha intimidades com o mar. Sabia de suas particularidades, dos caprichos das águas. Por isso, demorou um pouco mais em chegar ao local de trabalho, observando o comportamento das ondas naquela manhã. As ondas quebravam na praia em borbulhantes formas, como se as águas estivessem fervendo. Caminhou até encontrar a água, que estva morna e viscosa. Olhou para o sul. O oceano se estendia a perder de vista, o horizonte violáceo, não se distinguindo o limite entre as águas e o céu absolutamente sem nuvens.
Que coisa esquisita. Nunca vi o mar assim.
Entretanto, não se delongou em suas observações. Tinha horário e não gostava de chegar atrasado e ser chamado de preguiçoso.
A manhã estava quente demais. Do alto da construção, onde trabalhava, Alik observava, de vez em quando o mar. Estava a cerca de meio quilômetro da praia, na área de coqueiros, vegetação rasteira e algumas árvores — flamboians, fruta-pão e paineiras. O terreno se estendia alguns quilômetros em planície, até encontrar o sopé da montanha, que se erguia ao norte.
De repente, Alik percebeu o silêncio. Parecia e que a natureza toda emudecera. Não ouvia nem mesmo os gritos dos turistas, ou sons das aves nos coqueirais. Levantou os olhos. O que vê o deixou intrigado: o mar estva recuando até onde nunca fora. A costa de areia foi posta a nu, e em seguida, os recifes e os corais, apareceram descobertos. Assustado, prestou atenção.
Por Alá, o mar está indo embora! Pressentiu que alguma coisa terrível estava para acontecer. Viu, então, a uma distância incrível — um, dois, cinco quilômetros? — o mar se elevando numa onda gigantesca. Agora, o mar estava voltando na direção da terra. E viu também a onda gigante, cuja crista se elevava a uma altura incalculável. O sol brilhava na brancura do topo da onda. Ouviu o rumor de um milhão de tambores ou o ribombar contínuo de um trovão universal. Apavorado, gritou:
— Corram, gente! Fujam! O mar vai acabar com tudo! É o fim do mundo!
Saiu correndo, desceu pelos andaimes atropelando os colegas assustados. No chão, correu na direção oposta da praia. Atrás de si, ouviu o som surdo e contínuo, aumentando de intensidade à medida que a gigantesca onda se aproximava da praia. Alik não olhou para trás, sabia que os instantes eram preciosos. Já estava na zona de vegetação densa, de árvores grandes. Pensou em subir por uma delas. A primeira da qual se aproximou era uma paineira, cujo tronco, cheio de espinhos, não ensejava a escalada. Desesperado, ouviu um estrondo. Olhou por sobre os ombros e viu que a onda gigantesca, tendo chegado à praia, atingia as casas, os edifícios, arrebentando tudo, arrastando destroços, pessoas, veículos, um mar de destruição, que avança com estonteante rapidez, em sua direção. Com a agilidade multiplicada pelo terror, subiu por uma arvore, conseguindo elevar-se até os galhos inferiores.
Tenho de alcançar os galhos mais altos.
Foi seu último pensamento, antes de ser atingido por uma violenta pancada. Reanimando-se, instintivamente, agarrou-se com toda a força à árvore, abraçando o tronco, e sentindo que os galhos ao seu redor estavam sendo quebrados como se fossem palitos. A água o engolfava. Sentia que a árvore tinha sido arrancada, pois estva na horizontal, e ele, sem afrouxar o abraço, se encontrava deitado sobre o tronco. Alguma coisa sólida, um pedaço de madeira ou de metal, atingiu-lhe a cabeça. Ficou zonzo. Fechou os olhos e encostou a cabeça no que restava da grande árvore.
A correnteza era forte. Alik resistiu, continuou agarrado à árvore, como se fosse um galho teimoso em se separar do tronco. .
Repentinamente, o fluxo da água mudou de direção. Voltava-se para o mar. Alik levantou a cabeça, olhou ao redor. Uma imensidão de água, lama, detritos, corpos, gente que ainda se agita, tentando se salvar. Ao seu lado, uma criança era arrastada e ele nada podia fazer para salvá-la. Alguns destroços batiam no grande tronco ao qual ele se mantinha preso. Nada, porém, alterava a formidável força do mar, que corria, numa velocidade e com uma força incríveis, de volta à praia. O refluxo das águas não se detinha. Aterrorizado, Alik se vê arrastado para a terra, e em seguida, para o mar alto, a costa se afastando inexoravelmente.
O sol era fortíssimo. Alik estva exausto pelo esforço em se manter preso ao tronco, e pela tensão de toda a catástrofe. O mar, já calmo, embalou o solitário tronco. A terra não estva mais à vista.
Alik procurou uma posição mais confortável e enganchou-se entre as raízes expostas. Não posso me descuidar, se cair deste tronco, estou perdido, pensou. Deitou-se e sentiu um torpor agradável.
Acordou assustado com o agitar da água. O tronco estava boiando a apenas três palmos acima da água. Tubarões! Ao tentar se levantar, escorregou e quase caiu. Segurou firme numa das raízes. Gritou para o grande bicho que ronda seu reduto:
— Fora, demônio. Fora. Alá me proteja! Me livra do demônio!.
O grito ou a oração espantou o ameaçador animal. Alik olhou na direção do poente. O sol estava a um palmo do horizonte. Seus raios não eram tão quentes, mas o rapaz sentia os efeitos da demorada exposição durante a maior parte do dia. A pele ardia, os lábios secos já se rachavam. Sentia a boca seca como se fora uma caverna de areia. Uma sede insuportável revolvia suas entranhas. Teve ímpetos de beber água do mar, mas refreiou-se, pois sabia que lhe seria fatal. Pensou em mastigar a casca da árvore, mas estava impregnada de água salgada. Tentou as raízes, expostas bem acima do nível da água. Sim, esta raiz não está tão salgada, acho que posso...
A noite que se seguiu foi a primeira de uma série de noites de pavor e de terror. A fome, a sede, as queimaduras e o medo de resvalar pelo tronco e cair direto nas bocas dos tubarões, estiveram com Alik, acompanhando seu sono e povoando seus sonhos com as piores alucinações.
A força do arrastão foi tão grande que, mesmo estando em alto mar, o tronco onde Alik sobrevivia estava rodeado por detritos carregados pelas águas. O rapaz foi recolhendo o que pensava poder ser de alguma utilidade. Com pedaços de madeiras, caibros e tábuas, e folhas de palmeiras, armou uma precária coberta, que o abrigava do sol. Entre todos os salvados, o mais importante foi uma penca de cocos agarrados à copa esfacelada do coqueiro. A fome e a sede fizeram-no pensar tratar-se de uma miragem. Quando alcançou os cocos, sua avidez por água se multiplicou. Sem nenhum objeto cortante que pudesse ajudá-lo abrir o coco entrou num frenesi estimulante. Usando os próprios dentes e a força de seus punhos conseguiu furar a grossa casca e dessedentar-se. Depois, continuando no esforço, rachou a fruta em duas partes e alimentou-se com a massa cremosa do seu interior.
A penca de cocos foi a sua salvação. Além da saudável água, excelente como hidratante, a massa branca e suave mitigou a fome de Alik. Conhecedor da gravidade da situação, o náufrago dosou com sabedoria seus recursos. Apenas um coco por dia. Por mais calor que sentisse, procurava manter uma atividade, coletando tudo o que passasse por perto. Não perdeu a noção dos dias, e no fim do quinto dia, quando sorveu o último gole da água-de-coco e raspou a com o dedo a derradeira porção da massa, o tronco onde permanecia era um agregado de uma porção de objetos flutuantes.
Foi dessa bizarra jangada que Alik avistou, ao entardecer do quinto dia, outra embarcação, também de contornos estranhos e que parecia estar à deriva. Usando de toda sua habilidade e a pouca energia que lhe restava, conseguiu aproximar-se à distância de ser ouvido.
— Hei! Hei! Aí de cima! Me socorram. — Gritaou com todas as forças, sem obter resposta. Jogou-se, destemidamente na água e nadou até abeira da embarcação.Foi fácil galgar por sua armação, de troncos arrebentados e pedaços de madeiras pendentes.
Era uma embarcação rústica, ou antes, os destroços de um barco típico daqueles mares. Tanto a proa como a popa haviam sido destruídas. Dos mastros e velas, nem sinal. Nada mais era que uma enorme jangada de destrroços, no centro da qual um abrigo rústico, oferecia alguma proteção contra as intempéries.
Já anoitecia quando Alik conseguiu subir nos destroços. Não enxergava direito e foi se arrastando devagar, pois, perante a falta de resposta aos seus gritos, temia ser mal recebido.
Pode ter alguém escondido, me esperando para me matar e...— Mas o silêncio era total. Verificou que não havia realmente ninguém no exíguo espaço. Apenas ouvia-se o chap-chap-chap as ondas batendo nas laterais da embarcação. Arrastando sempre, chegou à abertura que dava acesso ao interior do abrigo. Não notando nenhum sinal de vida, levantou-se lentamente. Foi quando sentiu uma pancada no topo da cabeça. Caiu de borco, desmaiado.
Voltou a si algum tempo depois. Abriu os olhos. A escuridão era total. Anoiteceu ou estou preso dentro de algum lugar sem luz. A cabeça latejava. Lentamente, devido ao estado de fraqueza, passou a mão pelos cabelos, sentindo uma crosta de sangue coagulado. Permaneceu imóvel, tentando recordar-se do que havia acontecido. Tem alguém aqui. Vou fingir que ainda estou desmaiado. Fechou os olhos e caiu num sono letárgico.
Acordou incomodado pelo calor do sol batendo em sua cabeça. Estava deitado, atravessado sobre o piso da embarcação. Parte do corpo estava sob o abrigo e a cabeça estendida para fora, sob o sol. Girou a cabeça, olhou para onde lhe permitia chegar o ângulo da visão. Tudo quieto, calmo. Levantou-se, afastando das costa uma pesada peça de madeira. Constatou, em rápidas passadas, que não havia ninguém ali. Olhou para o caibro que estivera sobre si, notando a mancha de sangue. Olhou para cima e viu o local exato de onde havia caído, no momento exato em que entrava no interior do abrigo. O que pensara ter sido um ataque nada mais fora do que o pesado caibro caindo e batendo em sua cabeça;
Alik vasculhou os restos do que teria sido um barco. Encontrou pouca coisa. Pelos cantos do abrigo, que parecia uma casa rústica, descobriu roupas, um galão de querosene e outro de água. Tomou um pouco de água e continuou a examinar o local. Observou que o tronco, bem como os destroços que o acompanhavam, haviam sumido. Para todos os lados que olhou, só viu o mar de profundo azul turquesa.
Agora, sim, estou completamente perdido. Começava o sexto dia do desespero de Alik.
Filho de pescadores, Alik sabia muita coisa sobre o mar. Estava certo em pensar que se achava perdido no oceano. Não sabia, entretanto, que a “jangada” sobre a qual se encontrava, fora arrastada para o sul do Oceano Indico, por uma corrente marinha que o afastava cada vez mais da Ilha de Java. Seguindo a corrente, chegaria, dado o tempo necessário, à costa noroeste da Austrália. Se chegasse com vida, teria pela frente as escaldantes areias do deserto — o que não seria, em absoluto, alternativa para sua sobrevivência.
A água do galão acabou em três dias. Alik já não tinha discernimento nem força de vontade para dosar o consumo. Quando a água acabou, a sede tornou-se onipresente. Começou a ter alucinações.
Não quero morrer agora! Grande Alá, não me leve. Não estou preparado para morrer.
Perdeu a noção do tempo, portanto, não sabia que estava no mar há quatorze dias, quando tomou o primeiro gole de querosene. Depois, começou a delirar.
Reviveu, em suas alucinações, o terror dos primeiros momentos do arrastão. Através do ribombar ensurdecedor da grande onda, ouviu uma voz, a própria voz, que dizia:
— Fujam! É o fim do mundo! Corram!
A água entrava-lhe pela boca aberta, afogando-o. Raios rasgavam o céu e trovões sacudiam a terra. A língua, inchada, obstruía sua garganta. Voltou a si com a boca inundada pela água da chuva que caia aos borbotões.
A mesma corrente que o arrastava para o sul era o roteiro seguro de grandes embarcações na rota de Cingapura e Jacarta para Sidney e Nova Zelândia. Por isso, não foi por mera coincidência que a estranha embarcação de Alik foi avistada por um barco de carga. A própria corrente marítima se encarregou de aproximar a jangada do gigantesco navio cargueiro.
Ao divisar os contornos do grande barco, Alik lembrou das narrativas que ouvida sobre demônios e seres extraordinários que habitam os mares do sul. Morri e agora serei levado por esse demônio das águas. Que Alá tenha compaixão de mim.
O comandante do barco cargueiro, cujas pilhas de containers o tornavam semelhante a um edifício de muitos andares, apenas determinou que a velocidade fosse reduzida. Quando a jangada atingiu a distância bastante para o resgate do sobrevivente, Alik foi içado a bordo.
À vista de gente como ele, o rapaz se animou. Alguns tripulantes falavam sua língua, e teve notícias da Grande Onda, do tsunami, que se abatera sobre a região. Soube, então, que a vila onde vivia, sua família e tudo o que conhecia, tinha sido arrastado e destruído; que permanecera no mar durante quinze dias, e que fora levado, pelas diversas correntes do mar, a milhares de milhas ao sul.
Simples e conformado, seu comentário foi de uma candura inesperada:
— Sempre tive vontade de sair de casa, de conhecer o mundo. Jamais desejei que fosse desta maneira.
Antonio Gobbo –
.Seb.Paraíso, 19.janeiro.2005
Conto# 324 da série Milistórias –