322-MEMÓRIA DE ELEFANTE-Conto do Tsunami- dez. 2004
Chandari acordou de madrugada, quando as estrelas ainda piscavam brilhantes no céu escuro.
Mas que barulheira é esta? pensou, esfregando os olhos e apalpando aqui e ali, procurando se orientar no quarto. Fora da casa, no cercado dos elefantes, o tropel dos animais se intensificava, tal qual tambores enormes sendo batidos por poderosos socos. Quando chegou à porta dos fundos, que abria diretamente para cercado onde três elefantes passavam a noite, o indiano viu com dificuldade apenas o traseiro do último, afastando-se em desabalada corrida.
— Ahrita! Gaulika! Acordem! Os elefantes estão fugindo.
Sem esperar que a esposa e o filho mais velho o acompanhassem, correu até a extremidade do terreno. Uma precária cerca marcava o recinto de pernoite dos elefantes. Do outro lado, começava um bosque ralo, por onde os paquidermes haviam sumido na escuridão.
Eram elefantes domesticados, que Chandari possuía e de cujo trabalho tirava o sustento para a família. Dois fortes espécimes, obedientes e tranqüilos, e um pequeno elefante albino, agitado e pouco serviçal.
Os elefantes todos atendiam por seus nomes, que, no idioma falado no sul da Índia, correspondiam a Gigante-Cinzento, Bravo-Trabalhador e Anão-Branco. Todos dóceis sob o comando do dono, Chandari, que cuidava de com carinho. Havia recebido por herança de seu pai. Antges de falecer, o velho tivera o cuidado de recomendar ao filho:
— Cuide deles, Chanda, principalmente do Anão-Branco. É meio nervoso, mas merece trato especial.
Anão-Branco era mesmo diferente. Arisco, era intolerante com os estranhos e chegava, por vezes, a ser irascível. Difícil de ser controlado no trabalho. Contudo, fiel ao desejo do pai, Chandari o mantinha, apesar de muitos avisos e conselhos de outros proprietários de elefantes domesticados:
— Livre-se deste elefante. Elefante branco não é bom sinal. Vai lhe trazer problemas.
O indiano, entretanto, obedecia à vontade do pai. Manteve os três animas, com os quais, trabalhava nos serviços que apareciam: arrastar toras de árvores, arrancar arbustos e limpar o terreno para o cultivo, ou servir como meio transporte e diversão para turistas, que freqüentavam a praia de Thiruvanan. Ultimamente, devido à grande afluência de turistas, os elefantes eram empregados a maior parte do tempo no serviço aos turistas. Convenientemente, a propriedade de Chandari ficava a cerca de quinhentos metros da praia e das janelas ele podia averiguar os dias em que o movimento de pessoas era maior, e, portanto, lhe proporcionaria mais renda.
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Os elefantes estavam inquietos há três dias. Principalmente o Anão-Branco, que se mostrava completamente desvairado, e fora deixado no recinto adrede a casa, onde andava sem parar, agitava a tromba, elevando-a sobre a cabeça e dando altos bramidos.
— Parece que está caducando— cochichou a esposa, Ahrita, enquanto trocava a roupa de Dahya, a filhinha de três anos.
Na véspera da madrugada da fuga, os animais estavam todos nervosos, indóceis.
— Pressentem alguma coisa. Farejam o ar. — Disse o filho Gaulika
Não só os elefantes, mas todos os animais da região mostravam um comportamento estranho. Os pássaros, inquietos, voavam em bandos de uma árvore a outra, ou por entre a ramada do bosque, inquietos e barulhentos.
Quando viu os elefantes fugindo, Chandari gritou para a mulher e Gailika:
— Vamos atrás deles.
O trote dos elefantges através do bosque se transformara num galopar, numa corrida célere, quando encontraram o campo livre. Os vultos eram apenas divisados na escuridão.
— Estão subindo o morro! Mas que diacho está acontecendo com eles?
— Estão fugindo de alguma coisa. — disse o pai.
Correram sem parar. A madrugada se desvaneceu com o albor do amanhecer. Pai e filho estavam cansados, pois correm sem parar, a fim de não perder os fujões de vista.
Ahrita, ao ouvir o aviso do marido, levantou-se ligeira, e viu o marido e o filho desaparecendo na escuridão.
Os elefantes fugiram! Alguma coisa está para acontecer. Eles sempre foram tão calmos.
Ela própria sentia alguma coisa estranha no ar. Eu é que não vou ficar sozinha aqui. Decidida, acordou os outros três filhos, que dormiam no outro quarto. A filhinha Dahya já estava em seus braços, choramingando.
— Vamos, levantem-se. Vamos atrás de seu pai. Os elefantes fugiram.
Em poucos minutos, estavam todos prontos. A mulher, segurando as crianças pelas mãos, saiu correndo na direção por onde o marido e o filho mais velho haviam desaparecido. Ainda estava escuro, mas na fímbria do horizonte um tom violáceo anunciava a aurora.
Os três elefantes corriam morro acima, Anão-Branco à frente, como incitando os companheiros. Um outeiro elevava-se cerca de trinta metros acima do nível do mar. É um local conhecido, pois os turistas são trazidos para o topo de onde podem descortinar magnífica vista não só da praia como também do interior do continente.
A pequena elevação é um ponto único para admirar a planície do sul da Índia, que se estende, a perder de vista, para o norte, terra adentro, e para o mar Índico, visível a uma distância quase que infinita.
O chegarem no topo, os animais se detiveram. Não estavam cansados, resistentes que eram. Mas continuavam nervosos. Chandari e Gaulika se aproximam, exaustos.
Já era dia. A claridade da manhã revelava a paisagem grandiosa.
— Que foi que deu nesses bichos? — O rapaz não tinha respeito pelos elefantes do pai.
— Sabe-se lá! Estão sentindo alguma coisa. Você sabe como eles são. Sentem coisas que nós não sentimos. E têm uma memória incrível. Como são muito idosos, devem se lembrar de situações das quais nada sabemos. — O pai explicou ao filho, de maneira didática.
Pai e filho sentaram-se na relva. Observam os bichos, que andam de um lado para o outro.
— Quando passar essa irritação, eles voltam. Vamos esperar.
Passados alguns minutos, chegaram Ahrita, carregando Dahya no colo e seguida pelos outros filhos.
— Mas, que é isso? Que veio fazer aqui? — Perguntou Chandari.
— Vim ficar com vocês. Acho que alguma coisa vai acontecer. Os elefantes estão nervosos desde ontem. A fuga deles não é bom sinal.
— Você acha? — Chandari tinha um profundo respeito pela mulher, cuja intuição já se mostrara acertada por diversas vezes anteriores. Ela sabia quando uma de suas crianças ia ficar doente, e, mesmo antes de se casarem, ela sonhara com cenas de sua vida com Chandari.
— Está tudo muito estranho lá embaixo. O ar, os animais, as aves...
As crianças começaram a se queixar de cansaço e fome. Na pressa de sair, a mãe se esquecera completamente de fazer uma refeição ou de preparar um farnel. Olhando para a praia, sua vista se alarga até o horizonte do oceano.
— O mar está ficando brabo. As ondas estão cada vez mais fortes. — disse Chandari.
Muitos turistas madrugadores já estavam na praia, alguns até adentrando-se pelo mar, apesar das fortes ondas.
Apurando a vista, chamou a atenção do marido:
— Veja! O mar está abaixando!
Chandari olhou com atenção na direção da praia. O que viu o assustou. O mar se afastava da praia, deixando a descoberto uma larga faixa de areia que nunca ficara exposta.
— O mar tá fugindo da praia. — Gritou Vagueri, um dos meninos.
Cem, duzentos, quinhentos metros, talvez um quilômetro. Ali de cima, não dava para calcular a distância, mas podia-se ver que o mar, ao mesmo tempo em que se afastava da praia, elevava-se numa onda cuja altura era também incalculável.
— É uma onda gigante! — Exclamara Gaulika e Ahrita ao mesmo tempo.
Em seguida todos se calaram, amedrontados. Um silêncio profundo e sinistro abateu-se sobre o mundo. O tempo pareceu parar. O mar se afastava e se afastava. A onda se elevava e se elevava. Até que a crista começou se voltar para baixo. Então, o mar empurrou a onda gigante para a praia. Numa velocidade extraordinária, que aumentava a cada metro que se aproximava da terra.
A onda gigante rolou com estrondo sobre a terra firme e se desmanchou numa nuvem de água, ao abater-se sobre as árvores, os edifícios, sobre qualquer coisa que se encontre à sua frente. As pessoas na praia não tiveram tempo para fugir, foram submersas e em seguida, arrastadas pelo impacto da gigantesca onda, que avançava terra adentro, inundando com violência inaudita uma grande extensão de terra. Árvores, casas, veículos pessoas, tudo foi esmagado, arrastado, destruído pela onda. A tremenda força da água só terminou por sua própria vontade, como se fosse uma inteligência. Lambeu o sopé da pequena colina onde a família de Chandari a tudo assistia, o medo atingindo às raias do pavor e do terror. Os elefantes bramiam como loucos, e corriam, desvairados, pelo pequeno platô.
O som da tragédia chegou ao topo da colina, instantes depois da visão catastrófica. Um estrondo como o tiro de mil canhões, seguido de gritos, de estampidos, como explosões. Uma lufada de vento forte passou pelo outeiro. O barulho da água, arrasando tudo o que se encontrava na superfície, era como uma cachoeira fortíssima. Durante algum tempo — instantes, segundos, minutos? — a água avançou terra adentro. Depois, veio o refluxo. Com a mesma violência com que chegara, a água voltava ao mar, numa enxurrada de destroços inimaginável. O terreno, agora descoberto de água, era um imenso lodaçal, uma extensão sem fim de destroços, de corpos, de arvores de raízes expostas, veículos capotados, barcos emborcados, casas destruídas, edifícios arrebentados. Caos total.
O mar absorveu o refluxo da grande onda e volta, ainda violento, mas com ondas que nem se comparam à grande onda. Aos poucos, as águas voltam ao normal.
As sete pessoas da família permaneceram mudas. Ainda tinham medo, pois não sabiam se outras ondas iguais viriam de novo. Nada podiam fazer nem se atreviam a deixar o outeiro. A devastação estva por todos os lados, pois a água avançara mais de quilômetro por sobre a terra, circundando a colina, que, por instantes, ficou sendo uma ilha de segurança.
Os elefantes continuavam com alarido. A fúria dos elementos parece que os deixava mais excitados ainda. Entretanto, permaneceram no cimo do outeiro. Ahrita, cujas premonições se igualam às dos paquidermes, olhando desanimada para baixo, comentou tristemente:
— Estamos salvos graças aos elefantes. Principalmente ao Anão-Branco.
ANTONIO ROQUE GOBBO –
BH, 10-JANEIRO-2005 –
CONTO # 322 DA SÉRIE MILISTÓRIAS