320-O ULTIMO ESPETÁCULO DO CIRCO - Drama
CONCLUSÃO DO CONTO ANTERIOR "DOMINGO NO CIRCO"
A caravana do circo Irmãos Karakan chegou em Tabatinga numa ensolarada tarde de terça feira. Três caminhões FNM, uma carreta Volvo, duas camionetas puxando trailers e um imenso Galaxie foram estacionados no Largo de Santa Rita. A notícia espalhou-se pela pequena localidade e sem demora uma pequena multidão vagava ao redor dos veículos. Era a primeira vez que um circo chegava à cidade.
Tabatinga ficava a apenas trinta quilômetros da capital. Pequena, sem importância, seus habitantes viviam do artesanato de pedra-sabão, abundante no município. Gente modesta de vida simples. A chegada do circo estava provocando um alvoroço no pessoal. Por isso, foi uma decepção quando um homem alto, circulando entre os veículos, avisou com palavras secas:
— O circo não vai ficar aqui, não. Só vamos passar a noite. Temos de consertar um caminhão.
A maioria se dispersou. Ficaram apenas algumas crianças, curiosas demais, a procura da origem dos rugidos que vinham da carroceria de um caminhão, coberta por lona.
— Tem um leão ali. — Um garoto falou.
O mesmo homem distinto, chegando perto do grupo, gritou em voz zangada:
— Afastem-se daí! Não quero ninguém perto desse caminhão!
Não demorou muito, somente o pessoal do circo andava no meio dos veículos.
Curiosamente, no dia seguinte, os circenses começaram a tirar as lonas dos caminhões e a descer os mastros, colocando-os em formação circular. A lona foi estendida sobre os mastros. Antes do anoitecer, o circo estava montado. Tudo foi feito num clima de desânimo. Não houve o tradicional “desfile” de carros e do pessoal vestido como se apresentavam nos espetáculos. Nem mesmo distribuição de programas. O veículo com alto-falantes, que geralmente percorria as ruas da cidade, anunciando o espetáculo, não saiu do largo Santa Rita. À noite não aconteceu espetáculo algum.
Tudo muito estranho. Aos poucos gatos-pingados que foram ao largo, à noite, nenhuma explicação foi dada pelo não funcionamento do circo armado.
Como explicar que o circo estacionara ali em Tabatinga por uma ordem judicial, expedida na tarde da segunda feira, quando estava prestes a deixar a capital, ordenando que o circo e sua equipe parassem na cidade mais próxima. A tragédia que ocorrera no domingo, quando um garoto fora literalmente comido por dois leões, abateu-se sobre o circo de forma terrível. O pânico que se estabelecera, a morte, a tiros, dos dois leões assassinos e um princípio de incêndio, provocado pela população revoltada, forçara aquela retirada estratégica.
— Não podemos ficar com o material empacotado nos caminhões. Pelo menos as lonas devem ser estendidas, ou irão estragar-se. — Disse o gerente e ao mesmo tempo o apresentador dos espetáculos.
Depois de examinarem os prós e os contras — tinham de obedecer à ordem do juiz, mas, ao mesmo tempo, não queriam ver o material do circo se deteriorar.
— Além de que os animais devem ser alimentados. — Disse o domador referindo-se ao único leão sobrevivente da tragédia, mais alguns macacos, cães e cavalos, que faziam parte dos espetáculos.
— Está bem. Vamos armar o circo, mas sem espetáculos. — Igor, o mais velho dos três irmãos Karakan, tomou a iniciativa. — Voltarei à capital, vou ver se anulo esta ordem judicial. Afinal. Já assumi a responsabilidade pelo acidente, vamos indenizar a família do garoto. Que mais deseja o juiz?
Igor Karakan não conseguiu uma liberação legal do circo. Deveria permanecer em Tabatinga até que tudo se resolvesse na justiça da capital.
Até que a justiça resolva tudo, estarei no outro mundo. — pensou Igor. Pensamento que iria se tornar profético.
— Não faz sentido o circo armado mas sem espetáculos. — O palhaço Rapadura revelara ter um bom senso maior do que os sérios administradores.
— É verdade. Empacados aqui, é melhor faturar algum dinheiro; Que seja pelo menos pra comprar a comida pros animais... e pra gente, também. — O domador foi o primeiro a concordar com o palhaço.
Desta forma, no sábado a camioneta com alto-falante saiu pelas ruas da cidadezinha, anunciando:
— NÃO PERCÃO! HOJE, SENSACIONAL ESPETÁCULO DE INAUGURAÇÃO DO CIRCO IRMÃOS KARAKAN! PALHAÇOS MELADO E RAPADURA! MALABARISTAS! O HOMEM QUE COSPE FOGO! ANIMAIS AMESTRADOS! A DUPLA DE REPENTISTAS ZEQUITINHA E CHORECO! VENHAM TODOS!
Não foi anunciado o número do leão, único remanescente da tragédia. Ficaria temporariamente afastado dos espetáculos.
A bilheteria vendeu metade da lotação. A maioria nas arquibancadas ou “poleiros”. As cadeiras foram ocupadas por algumas autoridades da cidade, com entradas de cortesia.
— Pelo menos, dá pra comida. — comentou o domador, esfregando a pança de glutão.
O processo policial-judicial se transformou num infindável jogo-de-empurra. Apesar da presteza dos proprietários em assumir a responsabilidade pelo acidente com o garoto, o único indiciado foi o domador, acusado de relapso no tratar os leões. Constou da ocorrência policial que os animais estavam, na hora do acidente, há mais de 24 horas em comer. Ninguém sabe como esta informação foi obtida, e nem como o delegado pode confirmá-la.
A burocracia policial e judicial foi atrás de todos os que poderiam ter responsabilidade na tragédia. A prefeitura informou que concedera o alvará de instalação do Circo Karakan como normalmente o faz. Os peritos do departamento de engenharia verificaram a estrutura do circo, mas não tinham competência para testar os equipamentos (no caso, as jaulas dos leões e dos outros animais). O Ibama foi interpelado, para saber se o circo tinha autorização para manter animais em cativeiro.
— Ao IBAMA cabe verificar o licenciamento e condições de vida dos animais silvestres em cativeiro. Leões africanos, cachorros, macacos e cavalos não são, sabidamente, animais silvestres. — Explicou o diretor do órgão.
De acordo com declarações do Major Manoel Remígio “Os bombeiros também não são responsáveis pelo acidente. A corporação tem obrigação de verificar apenas a segurança contra incêndios e o plano de evacuação”.
O presidente do CREA no Estado, Dr. Romário Aguiar Dias, respondeu ironicamente à indagação judiciária:
— Circo não pratica atividade de engenharia, arquitetura ou agronomia. Não temos nada com isso.
O delegado responsável pelo inquérito não tem respostas para o indiciamento do domador. Sem esclarecer, ameaça:
— O fato de apenas o domador ter sido indiciado não significa que outras pessoas não o serão. Até o pai do menino pode ser indiciado por negligência.
Se o inquérito foi confuso, o processo jurídico, já falho na origem, por falta de provas e com excesso de suspeitos, arrastou-se por entre o labirinto do fórum, a Justiça cega sem o fio de Ariadne para guiar à sentença final.
O circo ficou detido em Tabatinga. Nas primeiras semanas, atraiu alguns assistentes. Mas não há cidade, grande ou pequena, que possa fornecer uma platéia fiel ao circo, por tempo indeterminado. Os espetáculos se repetiam a cada semana. Os próprios artistas foram se entediando com a situação. O domador, o único indiciado como responsável, fugiu numa noite com Corina, a dançarina-malabarista, sua companheira. A situação dos irmãos proprietários ficou ruim perante as autoridades, que lhes atribuíram conivência na fuga.
O sumiço do domador deu início a outro processo, agora envolvendo diretamente todos os artistas. Uma complicação kafkaniana.
A manutenção do pessoal foi se tornando precária. A dupla de repentistas passou a se exibir na praça principal de Tabatinga. Em seguida, voltou para a capital, onde até hoje pode ser vista nas feiras e em locais de aglomerações. Os palhaços davam espetáculos em shows de beneficência ou festas particulares, onde conseguiam alguns trocados.
O circo entrou em franco colapso. O leão e os macacos foram negociados com o zoológico da capital, numa operação autorizada pelo juiz, pelo Ibama (que, anteriormente, nada tinha a ver com os animais). Até uma ONG protetora de animais entrou no negócio.
Um raio atingiu o mastro principal, rasgando a lona. As instalações para os artistas — os camarins, o recinto onde aguardavam a vez de entrar no palco — sofreram depredações, roubadas as folhas de zinco e as vigas de ferro.
Um ano após o nefasto acontecimento, o recinto, precariamente cercado, foi alugado para uma equipe de peões e toureiros, que montaram um espetáculo de rodeio com touradas. Os veículos foram vendidos, pouco a pouco, a fim de proporcionar meios de subsistência aos três irmãos e aos poucos companheiros que permaneciam fiéis ao circo moribundo.
A saída dos peões e toureiros, finda a temporada, deixou as instalações ainda mais precárias. As tábuas das arquibancadas estavam quebradas, a lona em farrapos, as folhas de zinco que serviam de cerca, roubadas.
A equipe do circo já debandara. Os três irmãos declararam ao juiz o domicílio na capital, que se averiguou ser falso. O processo “corria”, como se diz em linguagem forense.
Ao cabo de três anos e milhares de entrevistas, depoimentos, documentos legais, contidos em oito volumes de papeis diversos, foi dada a sentença. Foram condenados: o domador, pelo desleixo em tratar os leões, e o circo (nas pessoas dos proprietários) como empregador do domador e responsável fisicamente pelas instalações dos leões. A pena de indenização aos pais do garoto, mais as custas do processo, taxas e emolumentos diversos, tudo corrigido com juros a partir da data do trágico evento, subiu a alguns milhões de cruzeiros.
Para cumprimento da pena e obtenção da quantia final, foram arrestados todos os bens do circo e seus proprietários — que, finalmente, resumiam-se a uma jaula de ferro, abandonada no Largo Santa Rita da cidade de Tabatinga.
ANTONIO GOBBO =
BELO HORIZONTE, 29/DEZ/2004
CONTO # 320 DA SÉRIE MILISTÓRIAS –