Rubenito Descartes
O livro estava em sua mesa. Ali o colocara pouco antes da reunião com os representantes das casas bancárias; ou seja, com os seus credores. Achou oportuno aparentar cultura, embora desconfiasse que a cultura fosse igual a nada, pois tinha chegado aos cinquenta e um anos de idade sem tomar conhecimento de absolutamente nada que não estivesse contido dentro de seu império: A fábrica (ou melhor, a INDÚSTRIA, ouviu bem?) de móveis que herdara de seu pai, o qual, também, era metido a ser intelectual e que, por isso, dera-lhe o nome de Rubenito Descartes, em homenagem ao filósofo de quem lera e decorara a célebre frase: "Cogito, ergo sum".
É verdade que o velho não entendia Latim e mesmo que entendesse, provavelmente, nunca compreenderia o significado daquela sentença, pois para ele o que efetivamente afirmava a existência não era a dúvida, mas sim o ato de acumular dinheiro. Todavia, o “Cogito” de Descartes foi-lhe útil para impressionar as amantes que comprava e que entendiam “cogito” como “agito” em função do sotaque árabe do velho Felinto, que, aliás, imaginava ser o suprassumo da erudição apresentar-se do seguinte modo: eu sou Felinto, de sobrenome Maronita.
Rubenito nasceu e sempre viveu em Valdiso. Um lugar a noroeste da capital do Estado e cujas características (ou tormentos?) principais são: a poeira vermelha, o calor que nunca é menor que 40° graus e a falta de vegetação – são árvores tão retorcidas, quanto as vidas que ali insistem. Uma terra árida, bruta e cruel. E que, por isso, produz milhares de “Rubenitos”. Gente inculta, iletrada, mal educada e rude. Lugar onde a sensibilidade cede lugar ao instinto puro e onde impera a mais perfeita amostra do que os sociólogos ou antropólogos chamam de “sociedade em estado primitivo”. Conhecer-lhe é a maneira mais eficaz de ver que Rousseau estava errado, pois não existe o “bom selvagem”.
Foi ali que viveu o velho Felinto, de sobrenome Maronita. E foi ali que nasceu o filho e, depois, herdeiro e, depois, Presidente-superintendente e “chefe de minha gerente de vendas”, Rubenito. Em meio século foi isto que viveu: era espancado pelo pai com um desses metros de madeira, mas em compensação podia berrar com os seus empregados, xingar a mãe de parasita, ludibriar os irmãos na partilha da herança (um cena dantesca, diriam os autores clássicos) e desfrutar da fidelidade e da meiguice de sua santa esposa.
Aliás, a pobrezinha, em função de sua meiguice e do amor ao próximo era constantemente atormentada e sofria graves crises de “depressão”. Bendita palavra. Ela lera nas revistas sobre as celebridades da televisão que elas padeciam desse mal e, então, para ficar próxima do sofrimento delas e ser chique, transformava tudo em “depressão”, cuja cura demandaria “ajuda profissional”. E só por isso, ela buscava consolo em seitas de autoajuda, na literatura edificante dos manuais de astrologia, que devorava juntamente com sorvetes de creme holandês (que tinham “sabor de infância”) e, principalmente, em médiuns e “pais de santo” que fossem jovens e viris, sendo, aliás, uma condição "sine quae non", que fossem bem dotados, mas não necessariamente no sentido espiritual.
Embora muitas pessoas duvidem desses métodos “energizantes, telúricos, espirituais e magnéticos”, o fato é que para ela todos fizeram muito bem e além da calma interior e de lhe preencheram a alma, também lhe preencheram o ventre e, com isso, ela trouxe a esse Mundo de meu Deus, quatro rebentos que nasceram tão diferentes entre si e do “babai” que nem de longe pareciam ser filhos de Rubenito, o Imperador da Fábrica (da INDÚSTRIA, ouviu?) de Móveis.
Para Rubenito, essa diferença entre os filhos e ele pouco importava, pois logo cedo os colocou a serviço da fábrica e com isso reduziu o custo da folha de pagamento. Como nunca ouvira falar em teoria, pode-se dizer que era um “proletário empírico”. E a redução dos custos tornara-se uma obsessão para ele, posto que a venda de seus produtos caia em progressão geométrica e, no sentido inverso, mas na mesma proporção, o gasto de sua santa esposa com os terapeutas alternativos aumentava. Afinal, ela também já chegara aos cinquenta anos de idade e o encanto que tivera na juventude e que lhe garantiu atendimentos gratuitos, há muito já se fora e ela precisava, agora, pagar pelos mesmos. Um horror! Preços absurdos! Iguais aos dos Planos de Saúde que aumentam conforme a idade do cliente.
E foi esse descompasso entre a queda nas vendas e o aumento no custo do tratamento de sua Senhora, que provocou a primeira dívida de Rubenito, a qual ele quitou com uma segunda, esta com uma terceira e assim sucessivamente. Juros sobre juros. Uma bola de neve sempre crescente, até que um dos bancos pediu a sua falência, no que foi prontamente atendido por um Juiz que, desse modo, vingava-se de ter quebrado o cóccix ao sentar num sofá defeituoso da Fábrica de Móveis Primorosa, o melhor do Brasil!
Corridos os trâmites, marcou-se uma última reunião de conciliação e na hora marcada os representantes dos bancos chegaram escoltados por zelosos oficiais de Justiça e valorosos Policiais Militares. E Rubenito, abrindo a reunião, antes de qualquer outra coisa disse solenemente:

- Eu sou Rubenito, de sobrenome Maronita. "Cogito, ergo, sum". Penso, logo, existo!

Homero descreveria a gargalhada que ecoou como "o ribombar dos trovões de Zeus”. Alguns daqueles homens sisudos e graves, mas sem paletó e gravata que o calor não permitia, chegaram a urinar nas próprias calças. Afinal, um discurso como aquele, naquela hora, era o que menos se podia esperar. Por fim recuperaram a compostura e o mais velho deles, um suíço que já fora acusado de pedofilia, disse:

- Senhor Rubenito, o senhor não cumpriu os trâmites legais e ao vender algumas máquinas da fábrica o senhor tornou-se um Depositário Infiel.

Na hora recebeu o troco de Rubenito:

- Como? Depositário Infiel? Escute aqui seu gringo ordinário e papa-anjos, eu posso aceitar que você me acuse de ser Depositário porque eu não sei o que isso quer dizer, mas eu exijo, ouviu bem?, EXIJO!, que nunca mais você me acuse de ser infiel. Eu estou casado há trinta e tantos anos e tanto quanto a minha esposa, eu nunca fui infiel!

Novamente os trovões de Zeus ribombaram e a baderna tomou conta do ambiente. E Rubenito, vendo o quanto gostaram dele também gargalhou, até que uma mão fechada da gloriosa força policial o fizesse calar. Estranhou ter sido algemado e colocado num camburão. Também estranhou ter sido levado para a Delegacia e ter ficado preso numa argola afixada a dois metros do chão, o que o obrigou a ficar em pé durante as seis horas em que aguardou pela chegada do doutor delegado. Mas não disse nada. Porém, quando o doutor delegado chamou-lhe de imbecil, corno e de Depositário Infiel ele gritou:

- Não! Eu não sou infiel!

Duas bofetadas no rosto, duas cacetadas nos rins e duas joelhadas na genitália quebraram a sua resistência e meio inconsciente ouviu:

- Leve o "elemento" para os Xis!

O “Xis” seguia o padrão dos estabelecimentos de reeducação (sic) e de re-socialização (sic) de infratores. Uma cela de 40 m² e superlotada de marginais ou de excluídos (conforme o grau de “politicamente correto” que se adote, seguindo os conselhos éticos que as boas novelas nos ensinam). A parede da frente era gradeada e nas outras três ficavam expostas as obras de arte que compõe, via de regra, esses cenários. Figuras de Iemanjá, frases desarticuladas do protesto funk, marcas de sangue, de esperma. Marcas da vida e da morte. Talvez, num passado distante, aquelas paredes tivessem sido brancas. Brancas telas onde foram pintados os surrealismos de vidas surreais. Foi ali que Rubenito, que já se sentira um “coroné”, transformou-se num “filé”.
Uma semana na enfermaria e Rubenito voltou à cela e, ali, achou prudente levantar-se apenas quando soube que outro novato havia chegado e assumido seu posto no bacanal. Sentiu-se aliviado, mas ao mesmo tempo sentiu uma imensa tristeza por sua amada esposa. Como era ingênua a pobrezinha por gostar daquilo. Tão inocente a coitadinha, a sua linda pombinha...
E os dias foram passando. Lentos, escorridos. Aos poucos ele compreendeu que não podia gritar com os outros presos como fazia com seus empregados, pois na primeira vez que tentou, tomou tamanha surra que, novamente, teve que ir para a enfermaria. E também aprendeu que a fábrica já não era sua. Os malditos não lhe tomaram apenas o que era seu. Tomaram o que ele era.
Sem alternativa, acomodou-se na situação e chegou até mesmo a ficar feliz quando foi eleito o “Manager do Clean System of Water Closet”. É verdade que alguns ignorantes zombavam desse seu titulo e insistiam em lhe chamar de “Gerente da Merda” ou, então, de “Zelador do Boi”. A esses, ele fazia ouvidos moucos e com prazer continuava a sua tarefa de zelar pela higiene dos banheiros de seu novo lar.
Sentia falta apenas do velho Fabius que tinha sido o criador do “Clean System” na sua remota infância. Era um velho estranho, que vivia falando da “exploração das massas”, da “revolução do proletariado”, do “exército de reserva” e tantas outras coisas que ele, nem os outros, entendiam. Um velho magro que sofria de câncer no sistema linfático e que por culpa das quimioterapias desenvolvera uma polineuropatia periférica que o obrigava a usar uma bengala para compensar a fraqueza das pernas. Fora pouco o tempo em que ficaram presos juntos, pois o velho fora libertado por um indulto humanitário e nunca mais voltou para dar noticias, mas mesmo sendo pouco, ele usou bem a convivência e aprendeu com o outro que "A Verdade" estava atrás das Montanhas e esse mistério nunca lhe deixou em paz. Disso ele tinha saudades. Fora a sua primeira abstração.
O conformismo de Rubenito, o seu bom comportamento e o plano de reestruturação carcerária renderam-lhe algumas regalias. Já não se ocupava apenas do sanitário. Após a faxina diária era levado ao curso de alfabetização que uma Igreja Evangélica ministrava no presídio. Rubenito não era um analfabeto no sentido rigoroso do termo, pois sabia assinar o nome e fazer as quatro operações aritméticas, mas a Fonoaudióloga que prestava serviço voluntário no presídio classificou-o como disléxico e como, de fato, ele não compreendia nada do que a junção de letras significava, o seu encaminhamento à turma dos analfabetos foi providencial.
Vagarosamente, junto com os demais, ele foi aprendendo que as junções das letras formavam um som e este, por sua vez, significava um objeto. Aos poucos aprendeu que um conjunto maior de letras formava frases e que essas simbolizavam as ideias. Em proporções mínimas era a reprodução do que ocorrera com o resto da humanidade no principio dos tempos: os sons exprimem ideias, ideias simbolizam objetos e, máxima sapiência, os sons podem ser representados por letras e estas, num circular retorno, significam objetos, ideias, sensações e sentimentos.
Essa descoberta deixou-o maravilhado. Não só pelas palavras terem o poder de exprimirem ideias e sentimentos; mas, e principalmente, pelo fato das ideias e dos sentimentos existirem. Aos cinquenta e tantos anos descobriu que o mundo era muito maior do que até então tinha imaginado. O mundo não era composto apenas pela matéria, pelo dinheiro e pela necessidade cega de sobreviver.
Até entendeu o que o velho Fabius lhe disse certo dia: sim senhor, o que importava num computador não era a máquina em si, mas o que a fazia funcionar. O "Software"! Sim senhor, até falar esse palavrão ele tinha aprendido e riu de si próprio ao lembrar-se que naquela ocasião não pôde entender o motivo de uma vasilha de "Tupperware" ser importante para um computador.
Ao cabo de dois anos aprendeu, de fato, a ler e a escrever e, inchado de orgulho, recebeu o diploma do curso de alfabetização. Agora, pensou, irei continuar os estudos até compreender tudo, mas um fato atrapalhou os seus planos. Mesmo sem entender bem os termos jurídicos que a voz anasalada e burocrática da autoridade policial lhe dizia, compreendeu que estava livre. Porém, o que deveria ser motivo de alegria, na verdade, apavorou-lhe. Solto, para quê?
A sua santa esposa não pôde suportar a tragédia que se abatera sobre ela e foi morar com um dos “pais de santo” que frequentava. Um dos filhos começou por afirmar que se comunicava mediunicamente com seres extraterrestres e acabou num hospício. O outro filho montou três fábricas de estofados populares, faliu nas três tentativas e fugindo dos credores e do próprio fracasso, sumiu no mundo (dizem que se filiou a uma Igreja onde comparece aos Cultos das sextas-feiras) e a filha fez uma tatuagem no quadril e foi correr atrás do sonho de ser rica (milionária, mesmo, tia!).
Assim, solto e sozinho, perguntou-se de que lhe serviria aquela liberdade? Só depois, ele entenderia o que Sartre disse quando afirmou que “estamos condenados à liberdade”. Mas, sem opção, juntou o que era seu, ou seja, a roupa do corpo e o caderno de caligrafia e atravessou o portão do Presídio. Após aqueles anos sentiu que o sol de Valdiso feria-lhe a vista e que a indiferença de quem antigamente lhe bajulava, feria-lhe a alma. Contudo, apesar desses ferimentos, sentiu-se feliz por ver que agora tinha uma alma.
E como Valdiso não tem montanhas e Rubenito sabia que tinha que descobrir “A Verdade” que elas escondem, decidiu partir.
Quatro caronas e um bom trecho a pé levaram-no até Poças, a terra do velho canceroso. Ali existiam montanhas e, talvez, houvesse o quê descobrir. Exausto, dormiu sob a marquise de um grande edifício e na manhã seguinte, com relativa facilidade, leu no frontispício do prédio: Biblioteca Municipal.
Sim Senhor! Dormira, então, sob a marquise do epicentro do Saber. Olhou-se e viu que estava um lixo. Coberto por uma roupa que é “nova há três anos”, calçando sandálias de borracha, com a rala barba por fazer e com os grisalhos cabelos totalmente embaraçados, era a figura do fracasso. E foi como fracassado que perambulou pelas ruas e chegou ao sopé da montanha onde o velho fizera os exercícios da guerrilha que pretendeu tomar o poder das “Gloriosas Forças Armadas, Unas e Indivisíveis”. E ali ficou até que a escuridão da noite refletisse a de seu interior.
Então, como na noite anterior ninguém lhe jogou água e nem ameaçou queimá-lo, Rubenito voltou para frente da Biblioteca e novamente se instalou sob a marquise do Saber. Com o estômago forrado pela sopa que as entidades filantrópicas forneciam aos mais necessitados, Rubenito estranhou que o sono não chegasse. Não que ali, o chão fosse mais duro porque o clima era mais frio. Afinal, a sujeira de seu corpo era um amortecedor e um cobertor muito eficiente. O certo é que depois de muito rolar sem achar a posição ideal, Rubenito desistiu e se pôs a divagar. Imagens confusas, desconexas. Lembrou-se da mãe, a quem chamava de parasita. Do pai, que o surrava com o metro de madeira. Da irmã, que era adolescente aos sessenta anos. Tentou imaginar o que teria sido feito dos filhos; sentiu novamente a dor das traições da mulher, as quais, aliás, só tinha percebido há pouco tempo. Recordou-se de Valdiso e percebeu que Valdiso não existia. Olhou para si e entendeu que ele próprio nunca existira. E, então, chorou. Choro rasgado, cortante, dolorido. E desse choro que liquefaz as mágoas só despertou com o cassetete machucando-lhe as costelas. Rubenito estremeceu e num salto ágil colocou-se em pé, cruzou as mãos atrás das costas e respondeu:

SIM! SENHOR!

O guarda municipal ajeitou os óculos escuros que usava mesmo à noite e lhe ordenou:

- Documentos!
- Pois não, SENHOR!


O jeito daquele “elemento” falar “SENHOR” indicou ao agente da força policial que ele era, ou melhor, tinha sido um “milico”. Sim senhor, um irmão de armas! A certeza dessa ex-condição impediu que ele imaginasse que o “elemento” fosse um ex-presidiário e, também, serviu para que ele – apesar de manter a autoridade policial – tratasse o “irmão de armas” de maneira quase fraternal.

- Qual é o seu nome?
- Rubenito Descartes, SENHOR! Igual ao filósofo, SENHOR!
- De onde você é?
- SENHOR! Eu descobri que não sou.

Fatos, lugares e personagens fictícios. Qualquer semelhança com a realidade será mera coincidência.
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Produção e divulgação de Pri Guilhen, lettré l´art et la culture, assessora de Imprensa e de Relações com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.