310-O APOSENTADO MILIONÁRIO-Tesouro sem valor

A prosperidade chegou para Nicanor Fernandes com alguns anos de atraso. Ou, melhor dizendo, ele descobriu-se rico quando não podia realmente dispor de sua fortuna. O caso, que mais parece uma criação fantástica do autor destas Milistórias, aconteceu realmente e foi reportado, com detalhes, pelos jornais e revistas no início de 2004. Com respeito ao modesto protagonista da história, seu nome, bem como o de outras pessoas envolvidas, foi mantido sigilo, substituído por nomes fictícios.

Nicanor era um trabalhador da roça. Nunca teve seu pedaço de terra. O pequeno espólio que lhe coubera por herança paterna estava guardado numa sacola de plástico, que mantinha dentro do travesseiro. Trabalhava como diarista nas diversas fazendas da região.

Sem ter nem mesmo um lugar onde cair morto, morava com a irmã, viúva e dona de pequeno sítio, havido por herança. Os dois viviam tranqüilos, ele ajudando a irmã na manutenção do sítio e, eventualmente, ajuntando algum dinheirinho ao guardado na sacola do travesseiro.

Tudo corria nos conformes até o dia de desgraça, pânico e dor para o jeca: enquanto fazia a arruação no cafezal, uma jararaca, arrastada pela enxada, saltou e atingiu, com suas presas mortais, a perna de Nicanor. Seus gritos de dor foram ouvidos pelos companheiros e o socorro foi imediato. Mas se o soro, aplicado ao chegar na Santa Casa, o livrou da morte, não impediu a gangrena do local da picada. A amputação da perna direita, à altura do joelho, aconteceu em seguida. Nicanor sobreviveu mas ficou impossibilitado de voltar ao trabalho.

A aposentadoria constituiu uma renda certa. Como não sabia ficar sem fazer nada, Nicanor aprendeu a lidar com taquara e logo fazia cestos, balaios, peneiras e outros artefatos, que lhe agregavam mais um dinheirinho. De tal forma que a desgraça de perder a perna se transformou quase que num benefício.

Durante mais de trinta anos a vida foi assim. Até a morte da irmã, em julho de 2002, quando Nicanor se viu obrigado a procurar amparo com sua sobrinha, residente em Cuiabá.

— Que sacola é esta, tio? — Quis saber a sobrinha, mulher de espírito prático e olhar observador, ao notar que o homem não largava por um instante a sacola escura e desgastada.

Na sua simplicidade, Nicanor revelou o conteúdo:

— É meu patrimônio. Minhas economias. Tudo o que economizei na vida taí.

— Mas...temos de levar esse dinheiro ao banco. É muito perigoso manter em casa. Aqui na cidade tá “assim” de ladrão.

Foram os dois à Caixa Econômica com a sacola. Falaram com o gerente.

— Vocês estão certos, lugar de dinheiro é na Caixa. Vamos, abram a sacola, vamos ver quanto tem aí.

Aberta a sacola, constatou-se que Nicanor era milionário sem saber: sua fortuna montava a um total de CR$ 1.598.000,00. Isso mesmo: um milhão, quinhentos e noventa e oito mil cruzeiros. Tudo em notas de Cruzeiro, Novo Cruzeiro e Cruzado; moedas que, desde o aparecimento do Real, em 1992, nada mais valem.

ANTONIO ROQUE GOBBO –

BHTE, 28/OUT/2004

CONTO # 310 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/07/2014
Reeditado em 19/07/2014
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