Serralinda
SERRALINDA
Vivi em um lugar, onde a felicidade era quase completa, só não era total, porque de quando em quando, morria alguém já muito velho. Tão velho estava que já não conseguia mais fugir da morte.
Esta, já cansada de tanto esperar, sentava no meio da praça, sobre um toco chamuscado pelas velas das almas e ali permanecia até que o velho ficasse desatento e passasse junto dela, ai então, sem muito trabalho, era só foiça.
Estranho, agora estou lembrando que nunca vi uma mulher velha morrer em Serralinda. Ou então um amigo tem razão, quando diz que na Inglaterra mulher velha vira homem. Será que em Serralinda também?
Em Serralinda era assim: Quem mais sabia era minha mãe que era a professora, mas não havia colégio, e também pra que colégio se ninguém precisava. As coisas só devem existir quando se precisa. Lá ninguém precisava de nada, estava tudo ali, ao alcance das mãos. Mas também não se conhecia nada, mas pra que conhecer? Para depois ficar agoniado, sentindo falta de alguma coisa?
Vejam vocês, lembro agora que um amigo meu, numa ocasião, achou na beira do caminho uma caixa. Ela era muito bonita, toda colorida, ninguém sabia o que continha. O que estava escrito por fora, não era em português. Assim falou minha mãe, porque levaram para ela decifrar o enigma. Mas essa coitada, também não conhecia aquele idioma, e ficou o dito pelo não dito.
Resolveram então abrir a caixa. Achava-se que era alguma coisa de se comer, porque havia um desenho de uma mão com uma pá, derramando talvez o conteúdo numa xícara. Abriram, mas continuaram na mesma, na dúvida, resolveram então enterrar para acabar com o problema.
Depois do ocorrido, decidiram que ninguém mais iria pegar em coisas que não se conhecesse, e virou lei. Ninguém pegava nada, fosse o que fosse. E não fazia a menor falta. Quem sabe aquilo era veneno? Isso mostra como era sábio o povo de Serralinda. Se não sabe não sabe, se não conhece deixa pra lá, pra que ficar matutando, não vai adiantar nada mesmo.
Serralinda era muito pequenina, se a gente subisse no pé de Sabão de Macaco, e fosse bem lá para cima, no ultimo galho, via-se tudo.
Havia uma praça com uma capela bem no centro, em torno o cemitério, a venda e mais nada. Mas pra que mais, não se precisava...
Agora, lá havia uma coisa muito linda, aliás, tudo em Serralinda era lindo, mas o riacho era demais. A água era tão transparente que às vezes, se achava que estava rasinho, e era fundão. Malacacheta pelo fundo a refletir o sol, parecia faísca de milhares de diamantes, que ali estavam a nossa espera.
Nos meninos, vivíamos dentro da água, sonhávamos garimpando achar uma pedra preciosa. Quem havia nos colocado com essa idéia de garimpeiros foi o Atanagildo, um homem que vivia fugindo. Não se sabia do que fugia, mas dizia ele que era perseguido porque o tio dele havia feito uma coisa muito ruim para o País. Até que um dia sumiu e nunca mais apareceu.
Eu gostava muito dele, e como havia viajado muito, tinha muita coisa para contar. Eu vivia atrás do Ata, pedindo que me ensinasse tudo que sabia, porque eu o achava um sábio. Disse ter passado muito tempo no garimpo, lá dizia não haver lei, quem mandava era o mais forte.
Contou que um dia acharam um diamante muito grande, de tão grande, duvidaram da pedra, alguém disse que diamante não quebrava, resolveram então dar uma marretada para testar, e ela foi reduzida a diamantinhos, ria muito quando contava essa história.
Nos incentivava a garimpar, porque dizia que o rio tinha característica própria para o garimpo. Certamente em seu leito deitavam gemas preciosas.
Outra coisa muito linda era a venda do seu Anastácio. Encantavam-me os vidros coloridos, onde guardava doces e balas. O cheiro gostoso do açúcar mascavo, o lampião a querosene, preso ao teto por uma corrente de prata, as teias de aranha enegrecidas arrematando os cantos, os litros de pinga arrumadinhos na prateleira, a conversa fiada dos mais velhos cotando historias de assombrações, as mentiras dos pescadores, tudo isso era encantador.
O seu Anastácio, dono da venda não sabia roubar, bem que o Atanagildo andou lhe ensinado uns truques, mas não conseguia aprender, tinha a cabeça muito pequena. O Maximo que sabia contar era até cinco E também pra que roubar? Ele não tinha nada para fazer com o dinheiro, a não ser ter mais trabalho ainda, tendo que coloca-lo ao sol para perder o mofo.
O Atanagildo me ensinou trocar com o vendeiro moedas por notas de maior valor, assim fazia e levava a melhor. Não sei porque ele preferia as moedas? Meu pai muitas vezes foi lá destrocar, mas voltava sempre com as notas. Eu as guardava junto com o sal, o Atanagildo havia me ensinado, e elas não mofavam.
Eram sempre os mesmos os saquinhos de papel que embalavam as compras, agente passava a ferro quente, e devolvia a troco de um punhado de açúcar mascavo ou amendoim na casca.
Lembro que meu pai mais alguns amigos, no final das tardes tomavam cerveja sem gelo ou vinho, e comiam sardinha em lata com cebola e pão. Minha boca enchia de água, sempre tentava filar um pouquinho, mas meu pai nunca deixava entrar na venda dizendo que lá não era lugar para criança. Mas como sempre me mandava buscar rosca, era difícil de entender.
Perguntei a minha mãe qual a razão, ela falou que lá falavam nome feio. E eu dizia para ela, que eu já conhecia quase todos, pois meu tio havia me ensinado.
Achava muito estranho o que acontecia na venda do seu Anastácio. Eu via que os homens de pele negra, não entravam para fazer as compras, ficavam do lado de fora conversando baixinho com a cabeça abaixada, eles eram sempre magros e altos. Um deles era o pai do meu amigo Ananias. Um garoto forte e muito inteligente, ele vivia inventando coisas.
Uma vez construiu na valeta, um moinho, e vários brinquedos que se moviam através de quedas de água provocadas por ele.
Fez o maior sucesso, até seu Manduca o político da região foi lá ver com uma porção de homens.
Prometeram levar o Ananias para estudar, não cumpriram e foi até melhor, porque se ele fosse, iria apenas perder tempo, pois o máximo que chegaria seria até ao primário. Ai então não poderia mais fazer certas coisas, já tinha que ser algo mais leve, como isso lá não existia, ficaria sem ter o que fazer, isto é desempregado.
Os negros ficavam ali parados na frente da venda até que o Sr Anastácio quando lhe desse na telha, chamá-los para dentro. Demorasse o tempo que fosse, antes da ordem eles não entravam. Assim mesmo, a impressão que dava, era que iriam pedir alguma coisa, quando na verdade iam comprar e pagar como qualquer outro.
Um dia eu perguntei a minha mãe porque isso acontecia, ela me chamou num cantinho, e disse baixinho que era um negócio chamado discriminação racial, uma coisa muito triste que havia no país, resquício ainda da escravidão, nódoa que jamais sairá do Brasil.
Não entendi muito bem, mas falou para eu não ligar para o que via, nem chamasse atenção para o caso, pois como desconheciam o racismo eram felizes assim, achavam normal. Não viviam questionando, era como ficar na parte de trás na igreja na hora da missa. Se fosse coisa ruim o padre por certo não deixaria acontecer.
Ela falava também que todos sofrem discriminação, um é discriminado porque é rico, outro porque é pobre, mais um porque é feio, outro porque é muito inteligente. Não há quem um dia não tenha sido discriminado. Quanto ao sucesso pessoal esse então nem é bom falar, se conhece um verdadeiro amigo na hora do seu sucesso, aquele que vibra com você, e não aquele que diz estar junto na hora do seu fracasso, isso é muito fácil.
Minha mãe dizia que nunca se deveria provocar a discórdia, mais tarde os de pele negra irão mostrar seu valor, um dia todos iriam reconhecer que os Ananias da vida estão em todas as raças. Mas eu não me conformava achava que o Ananias deveria ser o primeiro a ser atendido na venda. Minha mãe sabiamente mostrava-me que isso também é uma forma de discriminação. – Por que? Porque ele é mais inteligente?Isto não justifica porque não o mais gordo?Eu então ficava sem saída.
Realmente eu nunca ouvi ninguém reclamar de nada em Serralinda, nem mesmo quando ficavam doentes, lá se achava tudo normal. Não havia acidentes e ninguém morria antes da hora. Quando muito uma picadinha de cobra que curavam com fumo de rolo e cachaça.
Agora uma coisa eles tinham muito, era medo. Nunca vi tanto medo assim, era de saci – pererê, de assombração, de mula sem cabeça. Mas pavor mesmo era de lobisomem, porque lá muitos já tinham visto o bichão.
Até minha mãe que não acreditava, tinha lá seus receios, eu não compreendia, e ela dizia: Meu filho nesse mundão de Deus tudo é possível, quem sabe, uma deformação da natureza em algum ser, que se esconde durante o dia por ser um monstro e coitado sai à noite para arranjar comida, e sem querer assusta as pessoas? É, eu achava que ela tinha toda razão e ficava assustado. Mas me disse também que todas essas histórias eram na verdade uma forma de se manter as crianças perto de casa, e os adolescentes com medo de se afastarem muito durante a noite. Essa proteção exagerada dos pais, mas dava certo.
No geral em Serralinda era assim: No domingo, dia de pouco trabalho, os homens iam para da frente da venda brincar de jogar malha.
Meu pai nunca deixava eu ver o jogo, dizia que poderia levar uma malhada na testa. Mas eu sabia que o motivo não era esse, e sim porque se ficasse ali, teria que ficar se preocupando comigo, por exemplo, não poderia xingar o adversário. E também não queria perder o jogo na minha frente, na verdade tirava sua liberdade.
Quanto ao vicio do jogo, ninguém pensava, pois todo mundo jogava, e se quase todos jogavam, quem não jogava é que era o errado.
Assim se pensava em Serralinda e sempre deu certo.
Jogavam o dia inteiro até escurecer. As mulheres ficavam conversando de namorados, e também gostavam de tomar banho na cachoeira. Eu às vezes ia às escondidas vê-las trocar de roupa. Até que um dia uma menina me viu, e contou para minha mãe, que me deu a maior surra. Doeu, mas também contei para a garotada, onde elas se escondiam para fazer a troca. Era atrás de uma touceira de capim melado.
A molecada então passou a ir ver a mulherada trocar de roupa, até que o Ananias de molecagem botou uma cabrita para comer a moita e acabou com a festa.
E por falar em cabrita, um belo dia meu pai apareceu com uma cabra amarrada pelo pescoço e disse: Filho cuide dessa cabrita, pois comprei para você, ela está para parir uma porção de cabritinhos.
Eu sabia que ele estava mentindo, na verdade não era uma mentira proposital, porque em Serralinda ninguém mentia. Mentir pra que? Não se precisava. Todo mundo conhecia tudo de todos. Falava por falar, como falaria qualquer outra coisa, queria mesmo era que cuidasse da Laurita, nome que batizei por parecer com uma velhinha que vivia mastigando.
Numa tarde linda de temporal, lembrei que laurita estava no pasto e tinha que buscá-la porque senão poderia ficar doente e perder os cabritinhos.
Gritei Licante meu cachorro e, partimos na disparada em direção a beira do rio onde Laurita assustada berrava, pois as águas haviam subido. A água já passava por cima da pinguela, um tronco de mulungu. Estumei Licante que negaciou, então tomei a frente e, assustado atravessei.
Desamarrei Laurita, que já estava quase indo de rio a baixo. Consegui trazê-la para margem sólida, e começamos a travessia de volta. Laurita medrou e não queria passar, puxei com força, e o laço de couro que prendia em seu pescoço alargou e soltou-se. Foi à conta Laurita caiu e foi arrastada pela correnteza.
Licante corria pela margem acompanhando, enquanto eu rezava para não tomar uma surra quando chegasse em casa sem Laurita.
Tião bundinha que ao longe tudo assistia, gritou para o meu pai que já me procurava, preocupado com a minha demora.
Foi um alívio quando meu pai apareceu, estava arrasado com a perda da Laurita com seus cabritinhos na barriga.
Vendo minha tristeza, prometeu comprar para mim um cavalo pampa, pois sabia que era uma coisa que sempre desejara.
Dessa vez cumpriu a promessa, em poucos dias já montava em vitiligo, nome que segundo meu pai já tinha quando comprou. Não gostei e troquei para Máscara. Senti que até o animal ficou com ares de mais importante.
A vida continuou como sempre, uma delicia, tudo dando certo e todo mundo feliz.
Mas, desde a morte da Laurita, parece até um castigo, percebi que alguma coisa mudava, a felicidade já não era tão feliz assim.
Apareceu em Serralinda um grupo de homens, que segundo meu pai, iriam mudar para melhor a vida de todo mundo.
Minha mãe, eu senti ficou muito assustada e como ela grande parte das mulheres. Dizia constantemente que Serralinda não era mais a mesma, meu pai dizia que minha mãe apesar de ser professora, era atrasada, não gostava do progresso.
Os homens que chegaram, apesar de não fazerem mal a ninguém, pois até ficavam num acampamento distante. Tenho certeza foram eles, que aos poucos foram mudando os hábitos das pessoas de Serralinda.
Uma grande tristeza começou a inundar o lindo vale, até o riacho, eu ouvia, lamentava-se.
Meu pai disse que eram topógrafos, e que estavam marcando o local por onde passaria uma estrada. Ficaram por ali uns dois meses, e depois foram embora.
Passado algum tempo, quando já começávamos a esquecê-los, e as coisas começavam a melhorar, pois se via novamente a alegria, chegou o fim de tudo.
Dezenas de homens e máquinas invadiram a minha querida Serralinda.
Na venda do seu Anastácio, meu pai proibiu a mim e a minha mãe de ir, não se podia mais tomar banho no riacho, ninguém saia mais de casa.
Seu Anastácio deveria estar gostando, pois a venda vivia cheia, até que um belo dia, passaram a faca na barriga dele.
Disseram que as tripas dele chegaram a sair da barriga, e que foi costurado com agulha de costurar sacos e barbante.
Nesse mesmo dia, durante a noite, meu pai arreou os cavalos, e fomos embora de Serralinda.
Licante ia à frente, com um lampião dependurado no pescoço, eu e o Máscara logo a seguir, depois minha mãe e finalmente meu pai que cantava . No caminho da maravilha bodega, tem porteira e tem batente bodega, também tem gente que mata gente bodega...
Lamentei ter deixado para trás um cacho de banana que estava dependurado no fumeiro sobre o fogão de lenha.
Nunca mais lá voltei, e nem vou voltar, pois quero ter sempre na memória aquela linda Serralinda, onde a felicidade era quase completa.