304-BOA NOITE CINDERELA - Criminal

No ponto de ônibus do bairro Barreiro de Cima, o senhor esperava o ônibus que o levaria ao centro de Contagem, aonde iria se encontrar com dois amigos, para uma sortida noturna.

A mocinha chegou com jeito matreiro, perguntou as horas.No relógio de pulso recém-adquirido olhou: passava um pouco das vinte e uma.

— Nove e cinco. — Respondeu à moça e falou consigo: — Porra, estou atrasado.

Era um senhor de aparência séria, não muito alto, moreno e bem apessoado. Bigodinho, barba feita, roupas bem assentadas. Sapatos limpos.

— Atrasado pra que, meu bem? — Ela se insinuou, uma cobrinha miúda preparando o bote. Pequena de estatura e de corpo proporcional, bem feito. Cabelos longos, castanhos, com mechas brilhantes. Muito maquiada, preparada, evidentemente, para algum encontro ou evento. Usava blusa semitransparente e mini-saia. Equilibrava sua leveza sobre um par de “plataformas” de cortiça e plástico.

— Nada não, um encontro...

Outra mulher se aproxima dos dois: mais alta e encorpada que a primeira, da qual é conhecida. Cumprimentam-se com beijinhos e abraços. O senhor é incluído nos abraços.

Apresentações. “Sou Marly, ela é Cristina...” — “Prazer, muito prazer...Sou Norivaldo...”

As moças também esperam um ônibus. A conversa se anima.

— Por que não vamos tomar alguma coisinha num bar? Cristina sugere.

— É. Assim a gente não fica impaciente, esperando este ônibus que nunca chega. — completa Marly.

No bar, as moças pedem caipivódkas, ele pede uma cerveja. Depois, passa para a bebida mais forte, que elas tomam alegremente. A conversa fica animada, por conta das duas. Ele fala pouco, mas vai relaxando. Daí a pouco, revela:

— Moro aqui perto. Sou vigia de uma academia de musculação ali na avenida.

— Então, vamos levar umas bebidas pra tomar no seu apartamento — Marly mostra-se eufórica, passa as mãos pelo ombro e sobre a nuca de Norivaldo. Ele aprecia a delicadeza da moça.

A principio, ele reluta. Mas a insistência das duas e o efeito das bebidas o levam a concordar com as mulheres. Mesmo porque — pensa — pode “rolar” alguma coisa com uma delas...ou com as duas, quem sabe?

E lá vão os três, rumo ao pequeno apê habitado por Norivaldo, apenas dois cômodos quentes sobre a laje do barracão da academia. As moças se mostram entusiasmadas. Levaram uma garrafa de vodka e algumas latinhas de cerveja. Colocam-se à vontade e deixam o homem excitado. Mas, antes que se envolvam em uma ação mais positiva, ele sente-se subitamente indisposto, cansado e cai num sono profundo.

No dia seguinte, Norivaldo acorda sob os chacoalhões do zelador.

— Acorda, Valdo, vai abrir a Academia. Cê tá atrasado, sô.

Uma ressaca terrível. Gosto de saibro na boca, a língua grossa, seca. Um branco na cabeça. A última coisa de que se lembra é a bebida que tomou com as moças. Acorda de vez ao notar a falta do aparelho de tevê.

— Aquelas piranhas! Me deram alguma coisa pra dormir. — Além da televisão, haviam levado roupas, o relógio de pulso, o ferro elétrico, e a sua bolsa de viagem. E pequena importância em dinheiro, suas economias, escondidas num vaso.

A polícia foi chamada e a queixa, registrada. Os policiais não levaram muito tempo para deter Cristina e Marly, conhecidas no distrito policial: eram mestres em aplicar o golpe conhecido como Boa Noite, Cinderela, do qual Norivaldo fora vítima. Sem muita “pressão”, elas confessaram que haviam colocado na bebida do homem gotas de colírio conhecido como ciclopégico, que contém em sua fórmula poderoso anestésico.

Este seria mais um caso banal na crônica policial daquela delegacia de Contagem, estado de Minas Gerais. Mas seu desdobramento é muito mais interessante do que o dossiê policial. O qüiproquó que se seguiu é um exemplo kafkaniano de como agem as autoridades tupiniquins.

Além de todas as mazelas de que padece o sistema judiciário, há de se acrescentar outra, de caráter inusitado: o desconhecimento da própria jurisdição sobre bairros e regiões urbanas.

O golpe aplicado por Cristina e Marly em Norivaldo ocorreu no bairro Barreiro de Cima, município de Belo Horizonte. O processo, entretanto, foi iniciado numa delegacia de polícia de Contagem. As duas cidades se mesclam em bairros que se misturam. A justiça da comarca de Contagem (MG) demorou dois anos e seis meses para descobrir que o bairro Barreiro de Baixo pertence a Belo Horizonte.

Desta maneira, trinta meses após a ocorrência, o processo que apura o Boa Noite, Cinderela de Cristina e Marly foi remetido pelo juiz José Cintra Filho, da Comarca de Contagem para o juiz Alfredo Deoclides Mota, de uma Vara Criminal do Fórum Lafaiete em Belo Horizonte..

Até o momento em que esta história está sendo relatada (quatro anos após o evento), o processo está “em andamento”.

Belo Horizonte, 15 de setembro de 2004.

Conto # 304 da série MILISTÓRIA

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/07/2014
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