299-O DANÇARINO NA AVENIDA - Drama.

Debruçada sobre o esquife, a viúva já não tem lágrimas para derramar. Aos primeiros momentos de desespero e de dor, sucederam-se as horas de cansaço do velório. Pela cabeça de Dona Fia já passaram todas as recordações de sua vida em comum com Agenor. A dor não passa. Entre as recordações, a preocupação do marido defunto estava toda em ter algum dinheiro para a velhice de ambos. Coitado, quem diria que ele nunca mais vai precisar da poupança. Pensa que agora poderá dispor da pensão do falecido, e do dinheiro que ele vinha ajuntando,, através de muitos anos e com muito sacrifício, a ponto de passarem algumas privações. Camisa nova? Pra quê? remenda o colarinho desta branca aqui, ó, que ainda dá para aproveitar muito tempo. Desta forma, com remendos nas roupas gastas e meia-solas nos sapatos, Agenor ia economizado.

— Pra quando não puder trabalhar. — costumava dizer à mulher e aos amigos.

Agenor, aos setenta, continuava organizado e metódico como tinha sido a vida inteira. Talvez por força de sua formação: era contador e trabalhara como empregado de banco durante mais de trinta anos. Previdente, tinha até adquirido um terreno no cemitério. O casal sem filhos não tinha muitas despesas, a aposentadoria era suficiente para viverem modestamente e até guardar algum.. Mas ele inventara ainda de fazer uns bicos, para aumentar a renda. Trabalhava como “boy”, fazendo serviços bancários e entrega de documentos numa firma do centro da cidade.

Usava, nas suas andanças entre bancos, repartições e escritórios, uma antiga pasta de couro que recebera quando terminara, com louvor, o curso de contabilidade. Era uma caixa de couro, retangular, com uma tampa que se abria, mais parecendo um pequeno baú, com fecho chaveado, muito segura. Seus cabelos brancos lhe proporcionavam certa vantagem nas filas: ia sempre para aquelas destinadas aos idosos, senhoras com crianças, grávidas e aleijados. Por isso, conseguia agilizar seu trabalho, percorria meia dúzia de bancos cada tarde, enquanto o outro rapaz só conseguia fazer o expediente no máximo em dois bancos.

O que despertava certo despeito (ciúme ou inveja seria demais para o Zaqueu, o outro boy da firma, ignorante e de mal com a vida). Que, aliás, enquanto seu Agenor estava lanchando, na hora do almoço, mexera na pasta, por curiosidade ou por maldade. E acabara quebrando o fecho de segurança , do que não se deu conta o velho, quando saiu para sua rotina da tarde.

Na tarde quente, Agenor estava atrasado nas suas tarefas. Uma demora no cartório e uma fila maior no Banco Atlântico deixavam pouco tempo para ir ainda a três bancos. Tinha de correr. Preocupado assim, aproveitou um momento em que o sinal fechara lá em cima, na Avenida Afonso Pena, para atravessar, fora da faixa de pedestres.

De uma rua lateral surgiu um carro em velocidade. Seu Agenor correu. A pasta de documentos se abriu e despejou o conteúdo bem no meio da avenida.

Nervoso, o motorista declara em depoimento policial:

— Como é que eu ia adivinhar que o velho ia voltar para apanhar papéis, em plena avenida, com um trânsito desses? Pois foi o que fez. Vi quando ele caiu, não sei se ele tropeçou. Papéis começaram a voar, alguns caíram no chão, e o velho saiu correndo, em ziguezague, tentando apanhá-los. Até gora não tenho certeza se fui eu quem o atropelou ou se foi ele quem bateu no meu carro. Na velocidade em que vinha, não tive tempo para fazer nada, pois o velho agia como um dançarino, sim, um dançarino louco, catando os papéis. Quando consegui parar, vi uma pasta aberta e o velho estendido no asfalto. Corri para ele, mas o homem já estava morto.

ANTONIO GOBBO =

BH, 23/SETEMBRO/2004 =

CONTO # 299 DA SÉRIE MILITÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 14/07/2014
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