AS TRÊS PEPITAS
AS TRÊS PEPITAS
Anselmo já estava quase desanimando depois de mais um dia sem proveito. O sol começava a descer atrás das árvores que circundavam a clareira da área do garimpo, mas ainda fez brilhar duas estrelas no cascalho do fundo da bateia.
O seu coração acelerou e ele afundou a bateia novamente, tinha a impressão que eram das grandes. Ficou agitando devagar até que os outros começassem a deixar o garimpo para vender o produto do dia - aqueles que tiveram sorte - e espantar o cansaço com conversa fiada nas biroscas.
Ele também não podia ficar muito tempo ali para não motivar suspeitas e, certo de que a sorte tinha chegado naquela hora, enfiou rapidamente dois punhados do conteúdo da bateia nos bolsos, tomando a precaução de não guardar na boroca para não chamar a atenção. Certificando-se de que o resto no fundo da peça era somente pedrinhas de rocha, limpou a bateia, deixou a grupiara e foi direto para o seu quarto, ansioso para conhecer o seu achado.
Esvaziou os bolsos jogando tudo sobre a mesa. Lá estavam elas, duas bem grandes, refletindo a luz mortiça do candeeiro, do tamanho dos olhos da Marina.
Ele sabia que a primeira regra do garimpo era jamais dizer a verdade, mesmo que estivesse cheio de ouro, o seguro morre de velho. A melhor coisa a fazer era dizer que estava na barrela, tomando osso da boca de cachorro. Quantos ele soube que amanheceram mortos depois de se revelarem bamburrados na currutela, gastando dinheiro com bebidas, na jogatina, nas biroscas e nas boates? Alguns até combinavam com donos de bordéis uma avionada de mulher para festejar. Naquele tipo de ambiente, as pessoas tinham que ter muito cuidado com o que se fala e para quem. Precavido morre de velho, por isso não se deve confiar em qualquer um.
Correu a tomar banho e foi para a currutela disposto a encontrar a Marina. Era noite de lua cheia, fazia um calor que deixava a pele melada. A lua amarela, grandona e redonda, lembrava a pedra que tinha no bolso. Estava pensando em pedir a Marina que guardasse junto com os ganhos dela. A outra ele escondeu embaixo do assoalho despregado, sob o pé da cama. Ali ela estava bem segura, ele achava, enquanto se desenrolavam os seus pensamentos a respeito do que fazer com aquele achado repentino.
Torcia para que a Marina não estivesse com ninguém naquela hora, achava que podia confiar nela. Ele a conheceu numa noite em que foi lá no brega para matar a necessidade de mulher. Sabia que precisava quando começava a ficar irritado com qualquer coisa. Homem sem mulher fica até doente, aí precisa se aliviar, gastar a energia. Achava que depois que conheceu a Marina estava tendo necessidade mais vezes. Sentia que era por causa dela também, não era só coisa de homem. Alguma coisa tinha mudado depois da primeira vez que esteve com ela. O rosto bonito e aquele corpo moreno e pequeno, de pele mestiça, cor de chocolate, os olhos na cor da penugem do uirapuru lhe mostraram que na relação homem mulher tem alguma coisa a mais que trepar e gozar. Ele gostava de ficar conversando com ela depois de fazer amor, dizendo bobagens só para alongar o tempo e ter motivo para ficarem juntos um pouquinho mais, olhando a lua pelo vão da janela, por onde entrava sem convite, anunciando a realidade. O som de música que, de vez em quando, era empurrado para outro lado por uma lufada de vento mais forte trazia em seu lugar o trinado dos grilos lá no mato. Ele brincava com os peitinhos dela dizendo que era a mulher mais bonita da currutela e que um dia ainda ia levá-la embora dali. Ela respondia que se ele bamburrasse até que ela iria, porque também gostava um tantinho assim dele. Achava que ele era diferente dos outros, que eram muito brutos e nem sabiam a diferença entre uma mulher e uma cabrita.
Ela confidenciou que carecia de tomar cuidado:
“A dona do brega logo procura se desfazer das meninas que se apaixonam. Diz que a gente perde a cabeça e acaba entregando o corpo de graça, porque só com um xodó é que a gente tem prazer. A gente só goza quando faz com quem se agrada, ela diz. Pra ela, onde há muito homem tem que ter um brega e muita mulher e só dá lucro e ganha dinheiro a garota que gosta de luxar, que tem amor pelo ouro e pela liberdade.”
Anselmo sentia uma pontadinha de ciúmes quando pensava que ela se deitava com outros cabras.
“Por que uma menina tão bonita foi se meter nessa vida? Também, se ela não tivesse fazendo isso ele não a teria conhecido e não estaria agora sonhando com uma coisa que ele nem sabe se ela iria querer mesmo ou se falava aquilo só pra agradar” – ficava matutando.
Ele pensava que ela podia sentir prazer com outro sujeito, afinal ele não ia lá todos os dias e nem podia.
“Imagine se o pessoal sabe que eu estou apaixonado por uma quenga?!” – Vivia se perguntando.
O fato é que não gostava que ela ficasse lá, satisfazendo outros homens. Ele a queria para si e agora parece que a oportunidade estava chegando. Só pensava em um dia poder deixar aquele lugar e levar a Marina com ele.
Por conta disso, estava resolvido a ir para o coração do garimpo, não dava mais para ficar pagando ao Tião boca de ouro - desnecessário dizer o porquê do apelido – que era dono de parte do garimpo só por que chegou primeiro. O sujeito não metia a mão na bateia, fazia acordo com os outros que trabalham para ele, como era o seu caso.
Anselmo queria alcançar a grota rica, onde estão as maiores e melhores pedras. Tinha que achar uma daquelas bem grandes, cheias de pureza e combinar direitinho com a Marina para irem embora dali, daquele ambiente hostil, tirá-la daquela vida de prostituição, emergir da floresta e desatolar dessa imundície, dessa lama podre que umedece até a alma e lança um cheiro de fezes humanas no ar. Desse ambiente que tira a integridade do homem, cheio de doenças, afundados na lama, morrendo de malária, pneumonia e infecção intestinal. Do imenso buraco em que homens e mulheres procuram a sorte para arrancar o ouro das entranhas da terra. O garimpo é como um caldeirão, onde cozinham lentamente as paixões humanas, num enredo de esperança, cobiça e sexo. Onde os homens vivem como se não fossem humanos, chafurdados na lama.
Durante o dia, os homens vivem arrancando da terra o que vão gastar à noite na currutela, onde jogam, comem, bebem, dançam e namoram as poucas mulheres que por lá se aventuram. As mulheres, por sua vez, são cozinheiras, vendedoras, e à noite prostitutas. No cabaré fazem strip-tease para divertir e excitar os homens. Mas como são poucas geram intrigas e paixões. Elas também se apaixonam e às vezes sentem prazer.
Os bons ventos andavam soprando a sorte para o seu lado. Nos dias que se seguiram ao achado das duas pedras grandes, Anselmo encontrou outras pequenas. No terceiro dia, mais abaixo um pouquinho, outra do mesmo tamanho das primeiras veio na bateia e reluziu ao sol da manhã. Decidiu pedir à Marina para guardar aquela também. Ela tinha aceitado ficar com a outra, entendeu, portanto, como uma aceitação tácita do acordo elaborado durante os carinhos, após fazerem amor.
Chegando ao brega, encontrou o ambiente em rebuliço, uma agitação esquisita. Algumas meninas choravam. Assim mesmo, resolveu perguntar à dona do estabelecimento se a Marina estava ocupada, acrescentando em seguida que esperaria por ela se fosse o caso.
Foi então que ela baixou os olhos para as mãos que se esfregavam mutuamente sobre o colo e lhe disse:
“Moço, eu bem que estava desconfiada que vocês estavam enrabichados e que eu ia ter problemas com a Marina por causa disso. Mas, se fosse o caso de ela ter vontade de deixar a vida, tudo bem, não iria atrapalhar a sua vida. Mas a menina está morta, mataram ela há poucas horas. O desgraçado já está morto na ponta do terçado, estriparam ele, o safado. Ele veio aqui, e eu mandei ela se deitar com ele. Bem que a coitada tentou escapulir dizendo que estava enjoada, que eu podia passar pra outra. Mas eu desconfiada que a causa do enjoo era o homem que está aqui na minha frente, botei olho firme e não teve jeito, ela foi. Estou muito arrependida, o safado matou a pobre infeliz, fugiu com a riqueza dela. Devia estar blefado e devendo até as calças. Quando ele foi embora, eu achei que ela estava demorando a descer, aí mandei uma menina pra chamar por ela. A garota voltou apavorada, chorando, dizendo que a Marina estava morta. Corremos todos lá pra cima. A coitada estava deitada no chão, o corpo cheio de sangue, atrapalhando a abrir a porta, foi esfaqueada. Acho que ela tentou lutar, mas já devia estar sem forças. Bem que eu aviso a elas pra não deixar as suas economias à mostra. Ele levou tudo o que ela tinha, e deixou a caixinha onde ela guardava jogada na cama. Mas assim que os homens souberam do acontecido, saíram à cata do safado e o resultado ta lá, jogado nem sei onde. Me entregaram o ouro e o dinheirinho dela, vou procurar a família, eu sei de onde ela veio. Vou ver se consigo dar à mãe dela.”
Anselmo recebeu a notícia como um golpe muito grande. Cada palavra da cafetina ia apertando mais o nó na garganta. Uma lágrima muito doída e ardida desceu de cada olho, a mão apertando cada vez mais forte a pedra que trazia no bolso. Perdeu o ânimo, toda a vontade. Era o mesmo que ter morrido junto com ela.
No dia seguinte juntou as suas coisas na boroca, pegou o primeiro ônibus e foi embora.
Publicado no Livro Antologia de Contos fantásticos vol. 10 - Editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores -CBJE - 2007