291-GAROTA DE PROGRAMA-Drogas,crime,obesidade

A mulher acordou com ruídos de passadas no jardim, gente caminhando rente à sua janela. Em seguida, um estrondo de madeira sendo estilhaçada. Era a porta da sala que vinha abaixo, entre gritos que encheram a noite de medo e pânico.

— A casa tá cercada! Não adianta fugir!

Ouviu passos pesados de pessoas adentrando-se pela sala e pela cozinha. A porta de seu quarto foi aberta com empurrão. Na escuridão, nada viu. A luz de uma lanterna varreu o pequeno recinto, passando pela sua cama, sobre ela, cegando-a momentaneamente quando atingiu os olhos.

— No outro quarto! A filha da puta tá no outro quarto!

A luz desapareceu. Voando em outra direção. Mais barulho de portas e janelas sendo destroçadas. A frágil estrutura do barraco balançava ante a violência das pancadas. No terror da noite não saberia dizer quantos homens estavam dentro da casa.

— Não tem ninguém aqui! A desgraçada fugiu!

Voltou a luz das lanternas. Agora eram três ou quatro fachos de luz, passeando por todos os cantos do quartinho, sobre ela, suas roupas, o armário de portas cambaias e os raros pertences em cima duma tosca mesa feita de tábuas de caixão.

— Corre pelos fundos, Miro. Ela fugiu pela janela!

— Pegue a velha! Vamos espremê-la!

Pela primeira vez a mulher viu que eram três homens: grandalhões, traziam armas em suas mãos. Entreviu canos de espingardas e revólveres. Encapuzados, de roupas negras.

Conseguiu superar o susto para suplicar:

— Pelo amor de Deus! Mas o que é isso? Me deixem em paz!

— Depois de falar onde está sua filha.

— Amanda? Tá no quartinho dela.

— Mentira! Num tem ninguém lá.

— Me deixa ver. Ela tava em casa quando fui dormir.

Ouviu-se um assobio vindo do mato que começava onde terminava o quintal. Um dos grandalhões saiu correndo na direção do barulho. Quase ao mesmo tempo, ouviram-se tiros. Alguém pega a velha pelo braço, arrastando-a para a sala.Uma lâmpada é acesa.

— Ceis são da polícia? Que é que vocês querem?

— Cala a boca. Nós é que fazemos as perguntas.

Forçam-na a sentar-se num banco rústico, como são todos os móveis do local.

— Reponde certo. Vou perguntar só uma vez. Onde está sua filha?

— Por quê? Que foi que ela fez?

Um tapa estrala no rosto da mulher. Sangue espirra dos lábios

— Não se faça de inocente. Cadê ela?

Ouvem-se mais detonações, um ra-ta-ta-tá sinistro, seguido de gritos de dor e desespero. Os dois policiais entreolham-se.

— Acho que pegaram ela.

Como que em resposta, chegam dois companheiros dos policiais que interrogavam a mulher. Arrastando uma garota ou mocinha, desmaiada ou morta. Jogam-na no centro da sala. O corpo obeso desaba no chão de terra batida.

A mulher livra-se de inopino das manoplas que a seguravam e salta sobre a menina.

— Amanda! Minha filhinha!

E voltando-se para os quatro, que agora rodeiam mãe e filha:

— Oceis mataram ela! Seus disgraçados! Oceis mataram minha filhinha!

Um dos homens arranca a velha de cima da jovem e a empurra para o quarto de onde fora retirada. Jogando-a sobre a cama, grita:

— Sorte sua que pegamos a menina. Pode morrer de chorar, mas fica de bico calado.

A mulher sucumbe entre lençóis amarfanhados e colchas ralas. Ouve os passos pesados dos homens arrastando a menina, como um saco de roupa velha.

— Essa foi boa, hein, brode?

— A diabinha tava lisa que nem peixe. Quase escapou.

— É, mas ela tava abusando. Além de não pagar o pedágio, tava invadindo a zona de outros legais.

— E tava mandando brasa. Nunca vi tanta droga voando baixo em tão pouco tempo.

— A menina tava bem escorada. Gente grande ajudando. Podes crer,camarada.

— Mas agora, tá ferrada.

— Tá muito ferida?

— Levou um balaço no lado da cabeça. Num sei se foi só de raspão. A ferida tá feia, sangrando demais.

— O cabelo tá emplastrado de sangue.

— Vamo levá ela pro hospital. Avisa a delegacia.

Zonza pela pancada na cara e pela ação violenta dos policiais em seu barraco, a mulher permanece sobre a cama. A dor maior é pelo seqüestro da filha. Ai, meu Deus! Me dá força. Que eles vão fazer com ela! Ai, num vou agüentar de tanta dor no coração. Tem momentos de semi-inconsciência, tamanho é o sofrimento. Mas por que levaram ela? E por que ela tava fugindo? O desespero da mãe aumenta à medida que as perguntas batem numa parede de incompreensão.

O amanhecer a encontra prostrada, sem ânimo para nada. Aliás, nem se deu conta de que já era dia claro, quando percebeu uma mão suave passando-lhe pelo rosto, chamando-a baixinho.

— Dona Maura...Dona Maura...

Abre os olhos. Reconhece Sá Zica, vizinha de frente.

— Coitada! Que foi que aconteceu?

Ela tenta sentar-se na cama, mas dona Zica a impede.

— Fica deitada. Vou fazer um chá.

Dona Maura entrevê outras pessoas na sala, ajeitando a porta, conversando baixo. Seu Afonso está encostado no portal, cede caminho para Sá Zica passar, depois se dirige para o catre.

— Que aconteceu?

— Sei não. Eles entraram aqui procurando Amanda. Deram um tiro nela e arrastaram ela. — A velha tem dificuldade em falar, o rosto já inchado e os lábios sangrando.

— Quem eram eles?

— Sei não. Tavam encapuzados. Num me falaram direito. Só queriam ela.

Dona Zica chega com o chá. Seu Afonso senta-se num caixão, ao lado. Enquanto dona Maura bebe, com dificuldade, o chá ralo, Seu Afonso relembra alguns fatos a respeito da mulher e de sua filha Amanda.

Era muita desgraça para uma pessoa agüentar. Abandonada pelo companheiro, que a deixara com três meninos pequenos e com barriga de sete meses, vivia num casebre em terreno encravado entre boas propriedades, na zona nobre da cidade. O terreno era seu por direito, tinha um documento que lhe garantia a posse, pois ali tinha vivido com seus pais desde que se entendia por gente. O documento fora conseguido por um candidato em véspera de eleição e garantia a posse por usucapião.

Às vésperas de dar à luz pela quarta vez, foi levada para a cidade vizinha de Graúna, onde a irmã poderia ajudá-la no cuidado com a criança por alguns meses.

Quando retornou ao lar, tinha acontecido.Uma grande construtora havia arrasado seu casebre, limpado o terreno e fincado as bases do que viria a ser um alto edifício de apartamentos. Com a ajuda dos conhecidos, conseguiu armar um barraco no fim da mesma avenida, já nos sopé do morro. Ele mesmo, Afonso, fora um dos que trabalharam na construção do barraco para Dona Maura, penalizado com a mulher e as quatro crianças vivendo ao relento.

De nada adiantaram as reclamações da mulher, primeiro com o capataz da obra em andamento, depois com os administradores da obra. Jamais pode falar com os donos da construtora. Nenhuma indenização, nenhuma satisfação, nenhuma explicação. Recorreu aos políticos, que também não lhe deram atenção.

Vivendo miseravelmente das esmolas que os três meninos (com seis, cinco e quatro anos) obtinham nas ruas, foi criando a recém–nascida Amanda. Os meninos não foram à escola, ou melhor, ingressaram na escola da marginalidade. Aos dez anos, o mais velho foi pego em flagrante e enviado para o “abrigo” de menores, onde acabou por se tornar um completo marginal. Os irmãos seguiram o mesmo destino. E, antes de Amanda completar sete anos, Maura já não sabia dos rumos tomados pelos meninos.

Após alguns anos da perda do terreno e do casebre, um advogado, conhecido de Afonso, e devido à sua insistência, concordou em processar a construtora. O processo correu lento, como acontece para quem não tem recursos de azeitar a máquina da justiça. Mas, enfim, alguns anos e eis que Dona Maura teve ganho de causa. Segundo a sentença, a posse do terreno lhe era confirmada, com tudo o que houvesse sido nele construído. Assim. Dona Maura era a legítima proprietária de um edifício de doze andares, com vinte e quatro apartamentos, num bairro nobre da capital.

Seguiram-se, porém, os recursos legais, pois os proprietários dos apartamentos se uniram para anular, nos tribunais superiores, a sentença inicial. Inutilmente. Até em instância superior Dona Maura ganhou a causa.

O que, por direito, tornava a mulher uma senhora rica, resultou, na prática, numa batalha. Agora diretamente entre os proprietários dos apartamentos e dona Maura. As ações de despejo não andavam, eram engavetadas numa ou noutra etapa do processo; novas ações foram iniciadas, movidas pelos moradores do prédio contra Dona Maura; enfim, um cipoal legal que amarravam e embargavam a legítima posse do edifício pela pobre mulher. Aliás, miserável, pois os recursos de sobrevivência eram cada vez menores.

Amanda crescera em tamanho, vivacidade e...obesidade. Aos quinze anos, já tinha quase um metro e setenta e pesava mais de 100 quilos. Loira e gorda, na escola não passara dos primeiros anos, e aprendera apenas o que lhe interessava: rudimentos de escrita e notável habilidade para fazer contas, principalmente de dinheiro. Nessa idade, conhecia meia dúzia de rapazes da favela e das vizinhanças, na companhia dos quais se encontrava com freqüência. A mãe, se por um lado se desesperava com as ausências da menina, que passava as tardes com a corriola e voltava ao barraco às altas horas da noite, conformava-se com o pouco dinheiro que a menina lhe dava. Inutilmente tentava saber de onde ela conseguia a minguada ajuda.

— Me fala donde cê arranjou esse dinheiro, minha filha.

— Num importa não, mãe. Roubado num foi.Fica fria.

O que Amanda dava à mãe era o mínimo necessário para a sobrevivência. Mas era certo que Amanda reservava para si a melhor parte de sua renda, pois comprava roupas boas, tênis caros, e essas coisas de moça vaidosa — esmaltes, batons, perfumes, lingerie.

Boatos começaram a correr na vizinhança. Afonso não dava curso ao diz-que-diz, mas também não via como o dinheiro obtido por Amanda pudesse ter origem honesta. Ajudava a vizinha no que podia e não se imiscuía no que não lhe dizia respeito.

Amanda estava na zona de semiconsciência. A cabeça fora raspada o necessário (quer dizer, apenas do lado esquerdo) para dar os pontos na feia ferida causada pela bala que passara de raspão e provocara profundo lanho. Não se lembrava dos acontecimentos da madrugada, e portanto nada pudera responder aos homens que a submeteram a intenso interrogatório, ainda dentro do hospital.

Entretanto, chegavam-lhe à mente, em ondas que permeavam sua inconsciência, lembranças de momentos, ocasiões, ações e emoções anteriores. As últimas entregas e distribuições da droga aos distribuidores, adultos e crianças, feita de um local bem escondido da polícia e dos informantes. As recomendações que davam aos “aviõezinhos” de fornecerem principalmente nos arredores do edifício “de sua mãe”. A luta contra outros distribuidores. A perseguição dos policiais do bairro, aos quais recusava pagar “pedágio”. Mantinha em sua casa, entre as tábuas das paredes, somente o que não conseguia distribuir. Coisa pouca, fácil de carregar na bolsa, jamais notada pela mãe, curiosa sempre de saber de onde vinha o dinheiro que ela, Amanda, lhe dava.

Amanda sabia da pendenga judicial da mãe desde bem criança. Isto nunca vai dar em nada, é tempo perdido. Os caras do prédio nunca irão sair ou pagar qualquer aluguel pra mãe.

Na companhia de amigos, todos marginais, ingressara no tráfico de drogas, primeiro como “aviãozinho”, e em seguida, assumindo postos até chegar a uma notável posição de mando e comando de importante posto no escalão de traficantes. Sua corpulência, longe de a prejudicá-la, ajudava-a em muito, pois era valente e não fugia da raia, quando qualquer entrevero se apresentava. Muito marmanjo forte experimentara a força de sua manopla e a rapidez de seus tapas e murros. Manejava armas com desenvoltura e logo se tornou respeitada na zona de sua influência.

Jamais dava à mãe dinheiro mais do que suficiente para a manutenção da vida de poucas necessidades. Assim, não despertava desconfiança de ninguém. Se pensassem mal, que pensassem. Deixou correr a fofoca de que era garota de programa. A mãe, que já considerava perdidos os três filhos mais velhos, procurava, na sua ignorância e na total falta de questionamento da conduta da filha, mantê-la ao seu lado.

Amanda morre ao amanhecer, no hospital. O corpo da moça foi devolvido à mãe, acompanhado do laudo da perícia legal.

— Ai, meu Deus, não tenho dinheiro para fazer o enterro. Por favor, seu Afonso, me ajuda.

Expedito, Afonso consegue da prefeitura o caixão, que chega à tarde. Conseguiu igualmente que o mesmo camburão que trouxera o caixão, levasse o corpo para o cemitério.

Ao colocarem o corpo da moça no esquife, a mãe comenta com os amigos:

— Puxa, o caixão é pequeno para ela. Não vai agüentar.

— Parece que ela ficou mais gorda depois de morta — Alguém cochichou.

O enterro foi marcado para as cinco horas. Dona Maura, Seu Afonso e alguns vizinhos foram juntos, espremidos no mesmo veículo. Dona Maura vai preocupada. O caixão não vai agüentar.

Vencem com dificuldade a rampa que vai da porta do cemitério ao local da sepultura. No percurso, ouvem-se estalidos. O caixão tá quebrando, pensa a mãe. O esquife é depositado ao lado da cova, sobre o monte de terra solta, para uma oração final de Dona Maura. Quando os quatro homens, ajudados pelos coveiros, levantam o caixão para depositá-lo na cova, a madeira do fundo cede, quebrando-se, e o corpo da moça rola, barranco abaixo, para o fundo da cova. Os homens e coveiros ficam surpresos e sem saber o que fazer. A mãe desmaia, sendo amparada pelo braço de seu Afonso.

Antonio Gobbo – São Paulo, 12 de julho de 2004 –

Conto # 291 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/07/2014
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