289-O CÓRREGO DO MOINHO-Drama familiar

— Onde está o Dodô? — Cumprimentado a cunhada com um abraço meio desajeitado devido a enorme barriga, perguntou pelo irmão.

— Ara, foi com as crianças pra cidade. Hoje é domingo, foram assistir à missa. — responde Leocádia. — Senta, Margarida. Estou que não agüento mais. A criança tá um peso, deve ser menino homem. .

Margarida se acomodou na poltrona de palhinha, desconfortável e desconjuntada.

— Lino, fica brincando aí fora, na grama, mas num sai de perto de casa, viu? — Falou com o filho, menino esperto de cinco anos, que sai da sala correndo.

— Aproveitei e trouxe pra você essas roupinhas...

A conversa entre as duas animou o esirito de Leocádia. Ela está às vésperas de dar à luz, e Margarida veio m visitá-la, como tem feito quase todos os domingos, nos últimos meses. Entrega um pacote com roupinhas e coisinhas para o nenê.

Avelino brincava sozinho no campinho gramado, ao lado da casa. Aos cinco anos, é miúdo e tímido. Adora passar os domingos no sítio de Tio Dodô e Tia Cádia, brincando com os primos mas, na maior parte do tempo zanzando sozinho entre as árvores do pomar.

No sítio moravam o tio Salvador, a tia Leocádia, os três primos e vovô Lorenzo. Não gostava muito do avô, pois o velho éra sistemático, só se dirigia aos netos para zangar com eles. A figura do avô era esquisita e, para Avelino, assustadora: a cabeça completamente pelada e lustgrosa, uma barba branca muito longa, amarelada ao redor da boca, os olhos brilhando no fundo de cavidades escuras, sob sobrancelhas brancas espetadas em pequenas touceiras de grossos fios revirados para cima.

Vive num quartinho só dele, desde que a mulher, vovó Caliméria havia morrido; com porta independente da casa, saindo diretamente para a área defronte à casa.

Trepado numa goiabeira, o garoto viu o avô saindo de seu quarto, passando direto pela casa, sem notar que a filha e a cunhada estavam na sala. Dirigiu-se ao pomar em passos cambos.

Vai pro moinho, pensa Lino. Vou atrás dele.

O sítio tinha muitos atrativos para a Avelino que, quase todos os domingos, era levado pela mãe, onde passava o dia em muitas brincadeiras com Zeca, Juca, Neca e Dito, os primos. Os garotos viviam então em inteira liberdade: subindo nas laranjeiras, jabuticabeiras, mangueiras e dezenas de outras arvores frutíferas; passando pela olaria e pisando, descuidados, nos tijolos ainda frescos, postos a secar; correndo atrás dos cabritinhos e sendo perseguidos pelo irascível Bode Véio, preto e feio, de chifres afiados.

A única proibição era brincar no córrego que passava no fundo do sítio e movia o moinho de fubá. A proibição era severa e final, e nunca ninguém explicoara aos garotos o moivo de não poderem “nadar” no córrego.

— Vô, pá onde o senhor vai?

— Vou pegar fubá no moinho. Cê fica aí, perto de casa. — Casmurro, o avô respondeu sem lhe dar atenção.

O garoto fingiu que obedecia e quando o velhinho desapareceu por entre as árvores, tomou a mesma direção seguida pelo avô.

Vovô Lorenzo caminhou lentamente por uma trilha estreita e bem batida, passando pelo meio do pomar, em seguida ao lado do canavial e abrindo-se em uma área limpa defronte ao moinho.

A construção de alvenaria era pequena, suficiente apenas para abrigar o mecanismo de moer milho com o depósito em forma de funil acima da mó e um caixão onde o fubá cai em minúscula cascata de pó amarelo. Vista de longe parecia uma casinha de brinquedo.. Fora construída pelo Vovô Lorenzo, que era hábil carpinteiro, entendido o bastante de mecânica e de engrenagens, além de ser muito bom como pedreiro. Era um homem de sete instrumentos e tudo o que fazia, fazia bem feito. Depois da casa do sítio, erigida por ele, a construção do moinho fora fácil.

Apenas teve de mandar fazer a enorme roda d’água, toda de metal, que movia as engrenagens do moinho. Ela fica atrás da casinha. A água do córrego, correndo com rapidez por um canal de alvena largo e fundo, despencava sobre suas pás, fazendo-a girar e movendo as engrenagens do moinho.

Dia e noite, sem parar, o moinho triturava os grãos de milho e os transformava no pó fino, dourado, usado nas quitandas feitas por tia Cádia, ou trocado por milho, ou, enfim, vendido na cidade, para dois ou três comerciantes na praça do Cruzeiro.

O córrego, desviado de seu leito, formava um pequeno açude, antes de seguir pelo canal para movimentar a roda do moinho. No movimento, a força da água era multiplicada pelo girar da roda, e ao ser liberada, se esboroa em uma forte cascata sobre as lajes, numa grota escura e úmida, cujas paredes, cobertas de líquens e samambaias, formam um paredão de mais de vinte metros de altura.

O menino chegou à beira do córrego sem ser visto pelo avô. Experimentou a água com o pé descalço. A manhã já ia a meio e o sol estava quente. Rápido, tirou a roupa e a colocou à sombra de um pé de jatobá. Entrou na água. Fria demais. Brrrr. Foi caminhando devagar, pois não sabia nadar, e chegou até onde a água lhe dava pela cintura. Mais para frente o poço formado pelo represamento era fundo, não dáva pé, e ele não se atrevia a chegar até ali. Abaixa-se num rápido mergulho, molhando-se por completo. Do outro lado estava uma moita de bambu. À margem era formada de terra limpa coberta apenas pelas folhas secas do bambual. Bom para secar-se ao sol.

Por algum tempo, permanece deitado, de olhos fechados, sentindo o calor gostoso do sol secando a pele.

Dona Margarida, numa premonição materna sentiu a ausência do filho. Procurou ao redor da casa e não o encontrou. Adivinha para onde o filho teria ido: ao córrego do moinho.

— Agora pego esse levado de jeito. — Na mão levava uma varinha para lhe dar o corretivo, quando o encontrasse. Chegou de surpresa. Avelino já estava atravessando o córrego, de volta para a margem onde deixara sua roupa, quando a mãe chegou, bufando de zangada.

— Ah! Minino danado! — Ela gritou, agitando a vara na mão direita. — Falei procê ficar perto de casa. Cê vai ter um acesso de asma!

Avelino assustou-se com a chegada da mãe, Tropeçou ou escorregou e perdeu o pé. A forte correnteza o derruba. A mãe viu quando o filhinho começou a ser arrastado pela água na direção do canal.

Desesperada ela se jogou na água, tentando agarrar o filho. Mas a correnteza era forte e arrastava rapidamente o menino para o canal.

O velho Lorenzo ouviu a gritaria, acima do moinho, apesar do barulho da água que cai e das engrenagens. Saiu do moinho. Acima, no barranco, viu a filha gritando e depois, desaparecendo de sua visão, ao entrar na água. Seu olhar foi atraído para o canal: um braço de criança apareceu e desapareceu, num lance.

O menino foi levado pela correnteza que no canal se torna mais veloz. Por uma única vez deu um grito, logo abafado, pois estava se afogando. Impotente, com a água atingindo-lhe os seios, a mãe viu quando seu filho foi jogado por sobre a roda.

Vovô Lorenzo olhou para a extremidade do canal e viu o garoto agitando os braços quando foi jogado por sobre a roda d´água que, com seu giro, o impulsiona ainda mais.

O menino agitava as mãos e pés, enquanto era precipitado, em meio à cachoeira, por mais de vinte metros. Caiu sobre as lajes onde a cachoeira estoura em espumas alvíssimas.

A mãe chegou à beira do canal e olhou para baixo. Não viu o filho sendo jogado sobre s pedras escuras, lisas umas, pontiagudas outras, mas adivinhou a tragédia. Gritou desesperadamente.

O velho viu, em câmara lenta, o desenrolar da tragédia. Parecia que o tempo estava quase parando. Um pesadelo que não tinha fim,alongando-se e alongando-se, sem chegar ao fim. Tudo muito silenciosamente. Como se estivesse acontecendo bem longe dali, num outro mundo... Não suportou o susto. Sentiu uma súbita dor por todo o corpo e caiu de borco, o corpo desfalecendo sobre a terra negra e molhada.

Após a morte de Avelino, a tragédia se desdobrou. Vovô Lorenzo, ao voltar do enterro do neto, tomou de um pesado machado e se dirigiu ao moinho. Apesar de sua fragilidade, estava cheio de uma energia louca e destrutiva. Com poucas pancadas, destruiu a coluna central das engrenagens e quebrou ao meio a pesada mó, parando de vez o funcionamento do moinho.

— E não quero que ninguém vá consertar o maldito. — Foi sua ordem, acatada por Salvador.

Dona Margarida, traumatizada, não se perdoou pela morte do filho único.

— Eu sou a culpada. Se não tivesse assustado meu filhinho....

Deu em ficar, horas e horas, sentada no banco da cozinha, os olhos fixos no fogo ou nas brasas do fogão de lenha. Eu sou a culpada...sou culpada... Pensava, quando não falava em voz alta. O marido tenta de tudo para trazê-la à realidade. Inutilmente. Antes de se passar um ano da morte do pequeno Avelino, foi internada no Manicômio de São Damião.

O moinho ainda está lá. No mesmo lugar. Em ruínas. A roda d’água, parada , enferrujada, a água descendo por sobre vãos e buracos.. As águas passam por sobre o canal, transbordando, caindo pelas beiradas. Samambaias cresceram assustadoramente. Nem mesmo os primos gostam de passar pelo sinistro local, nas suas andanças pelo sítio.

— É um lugar maldito. Tem assombração. — comentam.

ANTÔNIO GOBBO =

BELO HORIZONTE, 16 DE JUNHO DE 2004

CONTO # 289 DA SÉRIE MILISTÓRIAS =

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/07/2014
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