288-A FESTA DO BOI VOADOR- História do Brasil

Coloca a pena no suporte do pesado tinteiro, asperge um finíssimo pó secante sobre o parágrafo recém-escrito e, recostando-se na poltrona estofada, de fino lavor, relê o que escrevera:

...”Saibam, pois, os ilustres diretores da Companhia das Índias Ocidentais que as dificuldades financeiras estão chegando a um ponto crucial. A falta de dinheiro impossibilita prosseguir na realização do formidável projeto que por aqui estou realizando: a construção de uma verdadeira cidade para sede de nossa administração.”

Dando-se por satisfeito, Maurício de Nassau assina o relatório com a determinação própria de sua forte personalidade. Lacra a mensagem com cuidado. Chama seu ajudante particular, ao qual determina:

— Doktor Von Gaarten, providencie a remessa desta mensagem pelo navio que está partindo esta semana para Haia.

Apenas cinco anos haviam se passado, desde a chegada, em 23 de janeiro de 1637, do Conde Maurício de Nassau ao Brasil. Mais especificamente, à povoação de Recife. A cidade era sede do comando holandês para a colonização numa região costeira que ia do Maranhão ao Sergipe, aprofundando-se algumas léguas para o interior. Era a mais importante cidade daquela porção do litoral: estimava-se a população em seis mil habitantes, com cerca de mil casas amontoadas em uma área pequena, situação de pouco ou nenhum agrado ao Governador-geral. Sendo uma das mais antigas colonizações portuguesas, a cidade fora construída desordenadamente. As casas e casebres, barracões e abrigos rústicos se amontoavam em vielas, ruas estreitas e becos imundos. Movimentada e barulhenta, era de fácil acesso através dos meandros dos rios Capibaribe e Beberibe, que confluíam num delta de terras baixas, formando diversas ilhas e ilhotas.

Homem de múltiplos atributos, Maurício de Nassau era militar, estadista, construtor, arquiteto, patrono das ciências e mecenas das artes em sua terra natal. Estava com 33 anos ao chegar ao Brasil. De mentalidade avançada e de um dinamismo raro, vivia acostumado ao conforto de boas residências e castelos de que era proprietário na Holanda. Não quis residir no Forte Orange, construído na ilha de Itamaracá, a 50 quilômetros ao norte do Recife. Também não lhe agradava morar na cidade de ruas tortas, mal-cheirosa e, curiosamente, onde os aluguéis e os preços dos imóveis chegavam a ser exorbitantes. .

Projeta, então, a construção de uma nova cidade, situada na ilha chamada de Antonio Vaz. Para tanto, necessariamente se fazia a construção de uma ponte, pela qual transitariam os trabalhadores e seriam levados os materiais necessários. O planejamento foi idealizado pelo próprio Nassau: ruas largas e simétricas; jardins artificiais; água canalizada, diques, além de outras pontes. A residência do governador, no centro da nova cidade, era um palácio de linhas inspiradas na arquitetura das magníficas mansões de sua querida Holanda. Um outro palácio, também de linhas contemporâneas, foi erguido para abrigar os serviços burocráticos. Ao redor dos palácios, obedecendo ao rigoroso traçado urbanístico, foi erguida a nova cidade : a Cidade Maurícia.

A construção da nova cidade foi concomitante a inumeráveis iniciativas do governador, em todos os setores administrativos. Na cidade do Recife mandou construir milhares de pequenas casas para os que não tinham onde morar. Construiu escolas em diversos locais da região. Convocou a Assembléia Legislativa, a primeira em todo o continente americano. Liberou os senhores de engenho das pesadas obrigações que tinham com o poder central, concedendo-lhes empréstimos para reorganizarem a produção de açúcar. Mandou vir milhares de livros da Europa e deu as primeiras diretrizes no sentido de criar uma universidade. Da sua comitiva constavam, além de 3.000 soldados e 800 marinheiros, quase 50 cientistas, artistas, sábios e hábeis artesãos.

Era um liberal não só na política como na religião: deu liberdade de culto aos judeus, perseguidos na Europa, permitindo a construção de sinagogas. Trabalhou para um bom entendimento entre católicos e calvinistas. Apenas um preconceito se fazia presente no espírito tolerante de Nassau: desprezava os jesuítas e durante todo o seu governo os padres da Companhia de Jesus ficaram longe da colônia holandesa.

As dificuldades financeiras pelas quais passava o erário da colônia deviam-se principalmente às despesas com a construção da nova cidade. Ainda que administrando com critério os fundos que tinha à sua disposição, uma vez começadas as obras não deviam ser paralisadas. A primeira ponte havia sido concluída e necessário se tornava terminar a segunda. Graças à confiança que inspirava ao povo e aos grandes proprietários e negociantes, Nassau recebeu ajuda sob a forma de empréstimos, os quais contava pagar a longo prazo. Quando resolveu recorrer aos fundos da Companhia das Índias, seu débito na praça chegava a mais de vinte mil florins, importância vultuosa para a época.

As relações entre Nassau e a Companhia jamais tinham sido tranqüilas. O governador era dinâmico demais e sua administração cercada de mais absoluta honestidade, era objeto de muitas críticas pelos seus superiores na metrópole. Por isso, o pedido de um subsídio de vulto foi a gota d´água. A reação dos diretores da Companhia das Índias Ocidentais foi totalmente contrária ao solicitado pelo governador da colônia.

— Temos de deter a megalomania desse Conde, ou a Companhia irá |à falência! — O mandatário-mor da Companhia ficou exasperado com o pedido de mais dinheiro. — A colônia é um sorvedouro de recursos.

Por determinação dos diretores da Companhia, foi expedido um documento que, ao contrário de atender às reinvindicações de Mauricio de Nassau, determinava a sua volta imediata à Holanda, destituído do cargo e sujeitando-o a rigorosa prestação de contas.

— Não quero deixar dívidas pra trás, a serem pagas. Isto vai atrapalhar a administração do novo governador.— Falou Nassau com o seu secretário de confiança, grande financista e sábio conselheiro, Docktor Von Gaarten. — Vamos pensar como resolver essa situação.

A solução chegou ao Governador quando ele viu, num campo defronte à Igreja de N. Sra. Do Rosário, um folguedo dos negros. Uma imitação rústica de boi, feita de panos coloridos, vestida por dois pretos, era objeto de chacota e brincadeiras por parte do povaréu reunido na praça;

— É isso! Já que eles gostam tanto de bois, vamos fazer uma festa em que apresentaremos um boi voador!

— Boi voador, Excelência? — O secretário estranhou a idéia.

— Sim. Veja como faremos para atrair o povo. — E em seguida expôs seu plano ao ajudante imediato.

Tudo foi tramado em segredo de estado, a fim de acicutar a curiosidade popular.

— Temos de manter o máximo segredo, para não estragar a surpresa. — Recomendou o Governador ao seu ajudante imediato. — Chame o Melchior e seu boi, pois vamos precisar dos dois.

Melchior compareceu por convocação do governador. Acompanhado de seu boi, o conhecido “Boi do Melchior”. Um gordo animal de pêlo amarelo, conhecido em toda a cidade por sua mansidão.O boi entrava nas casas quando encontrava a porta aberta e até subia escadas.

A população inteira atendeu as notícias da Festa do Boi Voador, no dia 28 de fevereiro de 1644. A idéia era incrível, ainda mais sabendo-se que o Boi Voador seria justamente o boi do Melchior, pesadão, gordo e lerdo.

— Aposto como o boi não irá voar.

— Pois cubro a aposta. O Governador disse, ele faz.

— Para mim, isso é um grande enganação. Onde já se viu boi voar?

— Pois vamos lá, para tirar esta história a limpo.

As apostas cresceram e o interesse do povo, mais ainda. Ao entardecer daquele domingo festivo, uma multidão dirigiu-se para a ilha Antonio Vaz ou para as imediações.

Os que puderam, atravessaram a ponte e se dirigiram ao pátio do palácio do Governador. Muito ficaram nas praias outros se espremiam barcos ao longo do rio.

A festa foi uma espécie de quermesse, pois as vendedoras de quitutes apareceram com seus cestos e tabuleiros. Circulavam entre o povo, apregoando suas quitandas e doces.

Ninguém viu, ou se viu, não prestou atenção, à fiação que corria entre as altas copas das palmeiras imperiais. Um entrelaçamento de cordas e fios de arame, pintados de negro. Bem de tardezinha, o sol já quase sumindo no horizonte, o governador apareceu na alta sacada de seu palácio, tendo ao seu lado o famoso boi de Melchior. A população ovacionou a presença de ambos, talvez mais entusiasmada com o boi que iria voar. Em seguida, o animal desapareceu por uma porta lateral, enquanto uma sombra bem definida, na forma exata de um boi, começou a “voar” entre as árvores. Lentamente, com imponência, por diversas vezes, o boi passou por sobre as cabeças do povaréu. Gritos de entusiasmo e de assombro subiram da multidão. Todos julgavam estar vendo o Boi do Melchior, que, alem de manso e guloso, era agora também, voador.

Não sabiam que estavam vendo, na realidade, o couro de um boi de pelagem amarelada, recheado de palhas e painas, preso aos fios invisíveis à noite. É claro que a festa do boi voador foi um sucesso — não só pela invenção do Boi Voador, como também pela importância arrecadada. Naquela festa, através de contribuições e pedágio cobrado na ponte, foram arrecadados vinte mil e oitocentos floris, importância suficiente para liquidar os débitos contraídos pelo Conde Maurício para a construção de sua Cidade Maurícia.

O êxito da festa que ficou na história da cidade não foi capaz de diminuir a tristeza do Conde. No bolso de seu gibão adornado com as dragonas representativas de seu posto militar estava a mensagem que determinava seu retorno à pátria.

Rapidamente o Conde, destituído do cargo de governador, acertou suas contas e, em 11 de maio de 1644, exatos 73 dias após a Festa do Boi Voador, embarcou para a Holanda, deixando definitivamente sua querida Cidade Maurícia, o Recife e o Brasil. Aqui ficaram sua fama de homem culto, administrador de visão e de espírito alegre, capaz de proporcionar ao seu povo um espetáculo mágico como a Festa do Boi Voador.

ANTÔNIO GOBBO —

BELO HORIZONTE, 14/JUNHO/2004

CONTO # 288 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/07/2014
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