285-O HOMEM QUE BEBEU TRÊS BARES

A língua-de-vaca do bar do Zé Bedeu era o máximo do tira-gosto. Vinha gente de longe, do Lavapés, do Alto do Seminário ou da Vila dos Italianos, só para provar ou comprovar a qualidade e o sabor da iguaria. E levar pra casa.

Ele mesmo preparava a língua, que, tal como a dobradinha, os rins e outros miúdos de bovinos, necessitam de cuidados especiais para se transformarem em pratos saborosos, sem odores estranhos. Começava de manhã, e tudo era feito no seu próprio bar. Enquanto esperava os fregueses de aperitivos, que iam chegando pelas dez horas, Zé Bedeu colocava a língua num enorme caldeirão com água quente, para dar uma ferventada. Nessa água, jogava uma colherinha de cal, que era para eliminar o cheiro forte. Depois, era limpar com afiado facão de cozinha, voltar com a língua na mesma panela, e deixar cozinhar por umas três horas. O molho de tomate com pimentão, muita salsinha e cebolinha de cheiro, mais meia dúzia de pimenta cumari, era feito mais tarde e sua receita constituía segredo.

— Conheço o segredo — Juca Das Dores contava, entre uma pinga e outra — Cê observa só. Inquanto ele prepara a língua, tempera com doses de cachaça. Cada dose ele reparte: toma metade e bota a outra metade no cozido.

Como Juca andava sempre “alto”, ninguém acreditava no que dizia. Mas que a língua do Zé Bedeu era supimpa de boa, ninguém que a provasse poderia negar.

Que Zé Bedeu também bebia à larga, todo mundo sabia. Montou o primeiro bar após ter perdido o braço esquerdo num acidente de trabalho. Quando isso aconteceu, o patrão o socorreu com tudo o que precisava. Foi num tempo de antigamente, quando as relações entre patrão e empregado estavam mais para a amizade. Além de ajudá-lo em toda a situação hospitalar, deu-lhe uma indenização, com a qual montou o primeiro bar.

Bem falante, sempre de bom humor, adquiriu prática em abrir garrafas, limpar copos e servir bebidas com a única mão, com uma destreza invejável. Ajuntava-se aos velhos companheiros, os ex-colegas da indústria, ou os amigos de caçadas, para relembrar os bons tempos, e... beber. Bebia muito. Acompanhava até o derradeiro freguês na “saideira”. Jamais foi visto tonto ou com qualquer sintoma de beberrão. Isso foi sua desgraça. Quando começou a sentir-se mal, com dores no estômago, consultou o doutor Ezequiel.

— Você precisa parar de beber. Do jeito que vai, pega logo uma cirrose. Vou lhe receitar estes remédios, mas com a condição de parar de beber.

Por essa ocasião, o estoque de bebidas do bar já era bem reduzido. De tanto beber a própria mercadoria, o capital inicial foi escorrendo pela goela do proprietário. Quando o médico recomendou que parasse de beber, havia apenas umas poucas garrafas de cachaça, outras de fernete e vermute. As prateleiras estavam empoeiradas e cheias de teias de aranha.

— Aproveitem que vou fechar o bar. — Anunciou aos clientes.

Não pôde, ele mesmo, liquidar o bar. Caiu de cama com cirrose hepática. Coube à mulher fechar definitivamente o estabelecimento, pagar as dívidas, acertar tudo. O marido ficou por alguns meses recolhido em casa, em tratamento. Sem beber, melhorou e sarou.

— Não agüento ficar sem fazer nada. — Confessou aos amigos.

Tentou vender bilhetes de loterias e não deu certo. Como lanterninha do cine Fênix ficou algum tempo: era ágil com a mão esquerda e delicado com os freqüentadores. Todavia, não foi longe nesse emprego.

Voltou a se estabelecer com o bar, principalmente devido ao pedido de amigos, saudosos freqüentadores do antigo estabelecimento, os quais se cotizaram para lhe fornecer o capital necessário..

— Volta com a língua-de-vaca, Zé Bedeu . — Pediram os amigos — Só com este tira-gosto, você ganha a vida.

Por alguns anos, foi tranqüilo. De repente — ou gradativamente? — voltou a beber. E foi tão violenta a recaída no vício, que em menos de seis meses bebeu o estoque do segundo bar. A mulher não agüentou e o abandonou. Ele fechou o bar e ficou trancado dentro de casa por alguns meses. Ele e Zulmira, a empregada, uma preta velha, antiga no serviço.

A terceira vez em que abriu o bar, foi mais por capricho, talvez para demonstrar a si mesmo e aos amigos que era capaz de gerir um bar sem beber. Agora, já era uma simples porta aberta ao público rarefeito, no final da rua de bairro pobre. Ficou sem beber alguns meses. A partir do sétimo mês, voltou a tomar aperitivos, a beber cerveja. Sempre forte. Agüentava chegar, bebendo, aonde a maioria dos fregueses não chegava.

Aconteceu que foi bebendo, bebendo, até o dia em que, sem dinheiro e sem crédito na praça, abriu a última garrafa.

Não havia freguês naquela manhã, quando, após abrir a única porta do bar, pegou a garrafa, tirou a rolha e tomou, no bico, uma boa talagada. A tarde encontrou-o cochilando sobre o balcão. A freguesia era esparsa, já não tinha o chamariz da língua nem outros petiscos.

Ao escurecer, a luz do poste bem defronte à porta do Bar do Zé Bedeu iluminou o interior da bitácula. Êle estava escornado no balcão, a cara de lado sobre o tampo de madeira encardida de sujeira. As luzes do interior permaneceram apagadas.

Pelas nove horas da noite fria de junho, um magote de retardatários, vendo a porta aberta e o recinto às escuras, entrou no bar.

— Gente, o Zé Bedeu tá mal mesmo. Nem fecha mais o bar...

— Está isolado. Bebeu demais.

— Vamos levá-lo para casa.

Ubaldo, o mais despachado da turma, agarrou Zé Bedeu por um braço, jogou às costas (era um homem miúdo) e virou para os companheiros:

— Fechem o bar.

Os três homens se revezaram ao carregar Zé Bedeu . Quando chegaram à sua casa, uns doze quarteirões distante, abriram a porta, entraram e o colocaram na cama.

— Dona Zulmira, faz um café bem forte. Ele tá mal.

— Convém chamar o Dr. Ezequiel.

— Sim. O homem tá muito ruim.

Meia hora após, chega o médico. Senta-se na cama, ao lado do homem estendido.

— Hei, Zé Bedeu ! De novo, hein?

Aplicando o estetoscópio no peito, pega a única mão.

— Desse jeito, você acaba....Puxa vida!

Tenta abrir-lhe a boca. Não consegue. Olha para os três homens que o rodeiam, a ansiedade em cada olhar.

— Mas...mas... ele já está morto!

ANTONIO ROQUE GOBBO =

BH, 21.MAIO.2004

CONTO # 285 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/07/2014
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