284-A MORTE MISTERIOSA DE TIO ARTUR-Memória
— Pois é, Lucinda, ainda existem as marcas dos tiros no forro do quartinho do vovô.
— Mas por que ele se suicidou? — A prima mostrava-se curiosa.
— Só quem sabe é a tia Constância. Ela é que conhece a história da tragédia.
As duas mocinhas conversavam, animadas, debaixo da enorme laranjeira, enquanto saboreavam as frutas douradas. Era mês de maio, de um ano muito antigo. Acima, pulando de um galho a outro, Jair ia enchendo o embornal de frutas. Não participava da conversa entre Laura, a irmã e Lucinda, a prima. Contudo, estava atento e seus ouvidos encompridaram-se quando percebeu que falavam de um assunto que era um mistério na família: a morte misteriosa do Tio Artur.
Quando ele desceu da árvore, as duas já tinham mudado de assunto, talvez por causa mesmo da sua presença. Era um garoto de apenas onze anos e não merecia entrar na conversa das duas meninas de narizes arrebitados que não lhe davam a mínima atenção. Mas as palavras ficaram na cabeça de Jair. Nunca tinha prestado atenção aos buracos no forro do “quartinho do vovô”. A partir daquele instante, contudo, a curiosidade foi despertada e o mistério começou a trabalhar a imaginação do menino.
No casarão construído pelo avô, havia muitos locais interessantes, como o porão alto, sob os assoalhos ou o sótão, acima do forro, que, não sendo de acesso proibido a Jair e seus irmãos, tinham algo de misterioso. A fantasia de Jair povoava todos os cantos escuros do porão, que ele e Laércio usavam para esconder seus “tesouros”. Quanto ao sótão, era de difícil acesso, só mesmo usando a pesada escada de madeira que ficava no quintal. Apenas uma vez Jair subira no sótão. Foi atrás do pai, para ajudá-lo a acabar com uma ninhada de gambás, que estava dizimando as poedeiras e os frangos no galinheiro. Só se lembrava da poeira densa, na qual pés e mãos se afundavam, fina com talco.
Com a revelação de Laura, o quartinho do vovô tornou-se, para Jair, o lugar mais exótico da casa. Quando vovô era vivo, nenhuma criança entrava ali. Nele, vovô Lorenzo dormia e tinha todas as suas coisas: roupas, calçados e haveres particulares. Só a Tia Constância é quem tinha acesso ao quartinho, para limpeza e arranjo geral. Agora os moradores do casarão estavam reduzidos a sete pessoas:. Dona Maria (filha de vovô Lorenzo) e seu Pedro, o marido, os quatro filhos do casal e tia Constância. A tia era uma solteirona que vivera por conta de cuidar de Vovô Lorenzo, até sua morte. Depois, ficou morando com a irmã e o cunhado, ajudando a tomar conta dos sobrinhos.
A casa já fora habitada por três gerações de Lucatos. Houve um tempo em que mais de vinte familiares viveram a um só tempo na enorme residência. Guardava em cada quarto, corredor, sala e mansarda (tinha três, que se abriam para o quintal) a história e os segredos das muitas dezenas de pessoas que ali haviam morado.
A morte de tio Artur ficou latejando na cabeça de Jair.
— Tia, por que o tio Artur suicidou?
A pergunta inopinada pegou a tia de surpresa.
— Que é isso, Jajá? Não é assunto pra gente miúda. Pega um livro e vai estudar.
Agora sim, o caso ficou mais interessante, a curiosidade aguçada pela negativa da tia em esclarecê-lo. Jair sabia que da mãe nada obteria. Procurou o pai, já de maneira diferente.
— Pai, como é que o tio Artur morreu?
Seu Pedro, homem de poucas palavras, talvez não soubesse a história da morte do cunhado, por isso nada de novo revelou ao filho.
— Não sei. Quando casei com sua mãe, ele já tinha morrido fazia tempo. Morreu muito moço, parece que não tinha nem vinte anos. — O pai não se deu nem ao trabalho de perguntar a Jair a razão de sua pergunta.
Será que a Lucinda já sabe? pensou Jair. Procurou a prima, que, sempre de nariz arrebitado para os menores, foi logo esclarecendo:
— Ainda não sei. Mesmo quando souber, não vou andar por aí espalhando os segredos da família.
Que antipática. Vou descobrir, mais cedo ou mais tarde.
Como que reunindo informações para desvendar o mistério, Jair entrou diversas vezes no quartinho do vovô. Agora, muitos anos após a morte de Lorenzo, fora transformado numa sala de costuras, onde a mãe e tia Constância passavam as tardes consertando roupas, retalhando velhos lençóis para fazer toalhas de mãos e de rosto, remendando as roupas de serviços de Pedro. A porta ficava aberta. Jair foi diversas vezes para verificar o forro do teto. Era de taquara trançada, como o de todos os outros cômodos do casarão, excetuando-se a cozinha, que não tinha forro. Os buracos lá estavam, perto do canto oposto à porta. De tal forma que nem mesmo era preciso entrar no quarto para vê-los. Eram dois. Um, bem redondinho, pequeno. Jair calculou: seria do tamanho de uma moeda de um cruzeiro, essa moeda prateada do novo dinheiro. Parecia ter sido feito com um dos formões do pai, que era marceneiro. O outro era um buraco de uns cinco centímetros, que deixava entrever a escuridão do sótão. As camadas de tinta branca, aplicadas nas taquaras, por muitas vezes através dos anos, em nada diminuíram o tamanho dos orifícios.
Lucinda e Laura, que eram mais velhas uns cinco ou seis anos, muito amigas, viviam em conversas “particulares”, às vezes cochichos, entremeados de sorrisos brejeiros.
Tenho de ficar ouvindo o que elas dizem. Um dia vão conversar sobre o assunto, aí descubro tudo. Jair ficava cada dia mais curioso. E, disfarçadamente, passou a vigiar a irmã e a prima.
— Sabe, Lucinda, descobri toda a história do suicídio do Tio...
— Ssssiiiii — Colocando o dedo sobre os lábios, a prima puxou a outra para seu quarto. — Fala baixo, as paredes têm ouvidos.
E Jair também. Corre ao quintal, dando a volta na casa, e coloca-se sob a janela do quarto de Laura.
As duas ficam à vontade. Laura revela o que descobriu.
— Ele era um rapazinho muito tímido. E era coxo.
— Coxo?
— É. Era manco. Tinha um pé defeituoso. Não andava direito. Por isso, não saía de casa, ficava só no quintal. Gostava de plantas, das flores. Cuidava do jardim no pátio perto da sala de visitas. Parece que a família implicava com ele. Os primos debochavam . Não queria estudar nem ajudava em nada em casa. Vovô Lorenzo quis que ele fosse caixeiro na loja, ele não acertou com o trabalho. Era um menino muito triste. Talvez por causa de ser aleijado.
— Como é que cê soube disso tudo?
— Mistério...! Conto o milagre mas não conto o santo.
— Mas, ele se matou mesmo? Como foi?
— Cê lembra do Tio Alfredo, aquele que mudou pro Paraná?
— Pai da Diva?
— Esse mesmo. Ele gostava de caçadas e tinha muitas armas. Ninguém sabe como, uma garrucha dele veio parar no quartinho do Vovô Lorenzo.
Laura faz uma pausa. Lucinda se impacienta.
— Então? Conta logo.
— Um dia, era de manhã, vovô estava na loja, quando ouviu dois tiros. Parece que vinham do seu quartinho. Correu pra lá. Enquanto corria, ouviu o terceiro tiro.
— Três tiros? Mas no forro só tem dois buracos...
— Pois é, sua tonta. Foi tio Artur quem disparou os três. Paaa-paaa-paaaa. Dois foram para cima, mas o terceiro acertou na sua cabeça. Quando vovô entrou, já encontrou tio Artur morto.
Jair ficou tão fascinado com a narrativa da irmã à prima, que levou um susto quando Laura imitou o barulho dos tiros. Despencou da beirada onde estava empoleirado para melhor ouvir e caiu sobre uma roseira, esfolando as pernas e espetando os braços nos espinhos. Não conteve um gemido. As duas meninas correram à janela.
— Ah! Seu safadinho! Ouvindo nossa conversa, né? — Laura se indignara coma revelação do segredo.
— Bem feito! — Lucinda batia as mãos, ao ver o primo estatelado na moita.— Isto é pra você não ficar espionando a gente.
Jair levantou-se, envergonhado, dolorido, mas detentor do segredo da morte do tio Artur.
ANTONIO ROQUE GOBBO –
BELO HORIZONTE - 11 DE MAIO DE 2004
CONTO # 284 DA SÉRIE “MILISTÓRIAS”