280-SE NON E VERO...-Religião

Discutiam de tudo os circunspetos senhores de cabeças brancas reunidos na pequena revistaria. Não havia assunto sobre o qual alguém confessasse ignorância. O dono da loja incentivava essas discussões, já que as vendas eram poucas, nas primeiras horas da manhã. Era uma maneira de parecer que o estabelecimento tinha movimento.

— Procês verem como são as coisas. Tanta gente devota padecendo nos hospitais e o milagre acontece logo com um herege. — Tião Patrício era quem, costumeiramente, lançavas as novidades, como um tema a ser discutido. Nada escapava ao olhar observador, aos ouvidos atentos e à língua ferina do aposentado, leitor de três jornais por dia.

— Ma, de chi fala o senhore? — Luigi Bercolini, apesar de mais de oitenta anos, tem a voz clara e fala alto, gesticulando, como todo napolitano.

— É daquele pastor que chutou Nossa Senhora. Passou na televisão. Cês lembram?

— Ah, sim! Era um bispo da Igreja Universal. — Raimundo Nonato tem boa memória, porém não acompanha os acontecimentos, como Tião Patrício. — Mas o que aconteceu?

— Chutou a Santa e recebeu um milagre. Ficou curado por obra de Nossa Senhora.

— Ma, come? Que cosa aconteceu?

Todos ficam curiosos. E Tião conta o que sabe.

Fala de uma notícia que correu primeiro pela Internet, tendo em seguida sido publicada em revista católica e divulgada através de alguns programas sensacionalistas por toda a televisão. Segundo o que foi passado pelos meios de comunicação, o pastor da Igreja Universal Sérgio Von Helder teria sido convertido ao catolicismo, depois de um milagre que lhe acontecera, atribuído a Nossa Senhora Aparecida, cuja imagem o mesmo pastor chutou em 1955.

Quando chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida, a seqüência do ultraje correu o Brasil e o mundo através da televisão. Um porta-voz da Igreja Universal — o magno negócio religioso de Edir Macedo — afirmou que as imagens tinham sido uma montagem, uma espécie de “pegadinha”, no que não foi acreditado. O bispo chutador ficou estigmatizado e, a fim de evitar maior repercussão, foi transferido para Nova York logo após o incidente. Na Big Apple (como os americanos se referem com carinho à megalópole) o bispo Sérgio foi acometido por uma dor inexplicável na perna direita, justamente a perna que tinha chutado Nossa Senhora. As dores degeneraram num mal inexplicável.

Internado em um famoso hospital americano (cujo nome as notícias não declinam), houve dificuldade no diagnóstico. Como seria possível que os médicos, auxiliados por máquinas e aparelhos superdesenvolvidos, não conseguissem chegar a uma conclusão sobre o mal que atingira o bispo brasileiro?

Durante os muitos dias em que esteve internado, sob observação e submetido aos mais diversos exames, o bispo ficou particularmente encantado com uma enfermeira negra. Era uma mulher miúda, de rosto redondo, delicada e atenciosa, que dedicava ao bispo uma atenção especial.

— Não se preocupe. — A enfermeira dizia ao bispo, nas suas visitas constantes. — O Senhor ficará curado. Basta ter fé.

E aconteceu que o bispo se restabeleceu, antes de os médicos fazerem um diagnóstico. Assim como veio, a doença se foi. Depois de curado, sem tratamento nem intervenção médica, Von Helder foi cumprimentar os médicos da equipe que o atendera. Quis agradecer pessoalmente à enfermeira que lhe dispensara tanto cuidado e o inspirara a ter fé, o levara à cura.

— Neste hospital não temos nenhuma enfermeira negra. — Ficou chocado com a informação e, inconformado, pediu licença e subiu novamente ao local em que havia permanecido, acamado, por mais de uma semana. Falou com os atendentes do andar, com alguns doentes que ainda estavam por ali. Somente um senhor, em restabelecimento, confirmou a presença da mulher negra, que visitara o pastor diversas vezes. Era um outro brasileiro, que afirmou, com certeza do que dizia:

— Sim, era uma mulher negra. Mas não era uma enfermeira, não senhor. Era Nossa Senhora Aparecida que vinha vê-lo todas as tardes.

Dizem que o pastor se converteu ao catolicismo.

— Eu não acredito que ele tenha se convertido. Foi uma pena, Nossa Senhora desperdiçar milagre em cima de gente que não merece. — Tião Patrício insiste na inutilidade do milagre.

Seu Carlos, o dono da loja, católico fervoroso, sempre tinha uma palavra do evangelho para explicar as mais diversas situações.

— Lembre-se que Jesus disse “mais vale recuperar uma ovelha desgarrada, do que as cem que permanecem no aprisco”. Certamente Nossa Senhora quer mostrar que perdoa o bispo que lhe deu o chute.

— Mas será que isto tudo é verdade? — Raimundo Nonato custa a acreditar no que está ouvindo.

— Olha que o povo aumenta, mas não inventa. — Tião Patrício gosta também de justificar os fatos com provérbios.

Sem esclarecer e colocando mais uma pitada de descrença na história toda, o italiano Bercolini finaliza:

— Se non é vero, é bene trovato. (1)

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(1) Se não é verdadeira (a história), é bem inventada. – Provérbio italiano.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 26.ABRIL.2004

CONTO # 280 DA SÉRIE “MILISTÓRIAS”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/07/2014
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