A alma das coisa 1 a cadeira de balanço

Se as coisas falassem

nos contariam as histórias

de suas vidas.

Ouviriamos, então, a alma das coisas

Me encontraram semana passada, escondida num canto, lá no pequeno cômodo existente no fundo do quintal desta residência

Eu estava alí havia bastante tempo...

Minhas armações de madeira, antes cobertas com verniz, estavam cobertas de pó e os espaços entre elas estavam cheios de teias, tecidas por uma pequena aranha que não se cansava de me fazer cócegas .

A bonita palhinha que cobria meu espaldar e meu assento estava rompida em muitos lugares. Meus pés, de um arqueado perfeito, estavam firmemente calçados, impedindo o movimento suave que me deu o nome. Sou uma cadeira de balanço...

Fui colocada naquele cantinho num dia chuvoso e triste, bem diferente daquele em que cheguei a esta casa.

Eu havia sido comprada para uma finalidade que despertou em mim uma grande ternura. Quando aquele homem, jovem ainda, entrou na loja em que eu estava à venda e pousou em mim seus olhos negros e profundos, carregados de terna alegria, simpatizei imediatamente com êle. Mas, ao ouvi-lo dizer ao vendedor que precisava de uma cadeira de balanço para o repouso de sua esposa, que estava nos primeiros meses de gravidez fiquei deveras emocionada.

Naquele momento desejei ardentemente poder falar e dizer com que alegria eu executaria aquela tarefa...

Mas cadeiras de balanço não falam, e, assim, só pude ficar ali, quieta, desejando ser a escolhida.

Nem preciso falar da alegria que me invadiu ao sentir de novo sôbre mim os olhos negros daquele homem e ouvir sua voz firme dizer: ----Levarei esta...

E assim, numa radiosa manhã, com o sol brilhando num céu azul imaculado, fui levada ao meu novo lar.

Fui recebida com palmas de alegria e carinhosamente fui colocada no lugar mais aconchegante da ampla e florida varanda .

Imediatamente o dono daqueles olhos negros e profundos foi ao encontro da esposa e a conduziu até onde eu estava.

Conheci então aquela que seria minha constante companheira, a quem dedicaria toda minha ternura, durante toda a minha vida...

Era uma mulher muito jovem. Longos cabelos castanhos emolduravam seu rosto de beleza angelical. Maravilhosamente bela em sua gravidez, parecia saída de um conto de fadas.

Aproximou-se de mim fitando-me comovida com olhos de turmalinas, e, enquanto pronunciava terna saudação, acariciou meu espaldar com dedos de porcelana...

E nos dias que se seguiram todas as tardes a bela senhora se aconchegava em meus braços e, embalada por suave balançar que eu lentamente executava, adormecia, tendo antes me confidenciado planos e mais planos para o futuro do filho que a cada dia se formava em seu ventre.

Outras vêzes, com voz trêmula de emoção, me falava do esposo, do quanto ela admirava sua bondade, sua retidão de caráter . Me falava do momento em que se conheceram , do profundo amor que os unia .

Muitas vezes êle a encontrava adormecida em meu espaldar.

Seus olhos negros e profundos a fitavam com tanta ternura que, ao inclinar-se para beijar- lhe a face, deixavam cair em meus braços uma lágrima de amor .

Sentava-se então aos seus pés e se deixava ficar por horas a fio como em adoração.

E os mêses iam passando. A Natureza havia completado seu trabalho e num ditoso dia a casa entrou numa alegre agitação.

Todos corriam apressados com a felicidade estampada nos rostos. Um choro de recém-nascido chegou até a varanda onde eu estava.

Duas semanas depois, a bela senhora apareceu na varanda com um lindo menino nos braços e, aproximando-se de mim disse baixinho : ----Agora vou precisar que você me ajude a embalar este mocinho......

E assim foi pelos dias que se seguiram, que se transformaram em mêses que se tornaram anos . O tempo corria, venturoso .

Logo eu tinha um travêsso garotinho encarapitado em meu assento, balançando-me vigorosamente como a domar um potro selvagem .

Um dia, porém, a nuvem negra da dôr envolveu a todos .

A caminho do trabalho, um acidente. No hospital, o homem de olhos negros travara desesperada luta contra a morte.

Perdera...

As lágrimas da bela senhora correram sem cessar durante dias. Abraçada ao seu filho ou debruçada em meu espaldar seu pranto rolou até que o tempo enxugou seus olhos. Embora já não chorasse, tinha o coração esmagado pela ausência do esposo querido.

E os anos se passaram, lentos e tristes.

Um novo espinho veio lacerar ainda mais o coração combalido de minha senhora...

Seu filho, agora um belo adolescente, estava de partida para a Europa, onde terminaria seus estudos.

Durante os preparativos da partida e mesmo durante as despedidas a bela senhora se manteve firme, sem derramar uma única lágrima sequer. Não queria que o filho se detivesse pela piedade, ao ver suas lágrimas.

Mas, depois que o jovem se foi, correu para os meus braços e deixou rolar em cascata o pranto amargo da solidão.

Alguns mêses depois, o coração da minha senhora dava sinais de que a dôr o estava vencendo,e , numa manhã sem sol , recostada em meu espaldar , aconchegou-se em meus braços e adormeceu para sempre....

Dois dias depois dos funerais, os criados da casa me retiraram da florida varanda e fui levada para o pequeno cômodo no fundo do quintal. Era um dia chuvoso e triste. Acomodaram-me num cantinho, calçaram firmemente meus pés arqueados e ali fiquei, entregue às recordações.

Nós, cadeiras de balanço, sabemos que a vida é como as ondas do mar, que ora se arrojam em fúria sobre os rochedos, num frenesí de destruição, ora acariciam ternamente a areia da praia, refletindo a luz da lua. Assim, me deixei ficar.

E o tempo passava, trazendo consigo o bálsamo do consolo, a benção da resignação.

Semana passada percebi alguma coisa estranha no ar. Pelas frestas das janelas o sol entrava mais radioso, os pássaros cantavam com mais alegria.

Logo cedinho abriu-se a porta do pequeno cômodo dando passagem a um belo rapaz, de olhos negros e profundos que me fizeram recordar outros olhos, que me fitaram em outros tempos. E quando senti sôbre mim aquele olhar carregado de ternura, reconheci, comovida , o filho dos meus senhores , que voltava para a casa dos pais...

-----Aqui está ela! Felizmente a encontrei!

Sua voz, idêntica à do pai, foi como música para mim.

E assim, depois de alguns dias na oficina de um gentil marceneiro, aqui estou, de volta ao lugar mais aconchegante da florida varanda.

Lindo verniz brilhante cobre minhas armações de madeira e toda a palhinha foi substituida. Estou pronta para o trabalho.

Eis que entra na varanda o rapaz de olhos negros e, para minha surprêsa, traz pela mão uma bela jovem, em adiantada gravidez. Inclina-se sobre mim e, apoiando ambas as mãos em meus braços, trêmulo de emoção, diz:

----Querida esposa, esta cadeira foi a melhor companheira que minha mãe teve em vida. Foi comprada por meu pai, para que ela repousasse, quando eu ainda não havia nascido.

A jovem se aproxima mais de mim, e acariciando-me, fala baixinho :

----Vou precisar de você agora, para acalentar este mocinho...

Se eu não fôsse feita de madeira e palhinha, por certo choraria.

Para minha surpresa, fiquei sabendo que a velha governanta que acompanhava a família há muitos anos se tornara avó. Uma de suas filhas dera à luz uma linda menina.

O rapaz de olhos negros, em reconhecimento aos trabalhos prestados por ela, trouxe sua filha e a netinha recém nascida para morar na casa.

Reinava então grande alegria, que se tornou maior quando, alguns dias depois, nasceu o filho tão esperado.

Logo eu recebia em meus braços a jovem mãe e seu filhinho.

Aí, então, foi como um sonho...

A criança pousou em mim olhinhos negros e profundos, carregados de terna alegria...

Olhos que me levaram a um outro tempo, a um ditoso dia, na loja em que fui vendida, há muitos anos atrás...e eu o reconheci...

Minhas juntas estalaram de alegria. Todas as fibras de minha madeira vibravam de felicidade...

Eis que entra na florida varanda a velha governanta, trazendo nos braços sua netinha, para que a jovem mãe a conhecesse...

A jovem mãe aconchega ao colo as duas crianças, que se olham ternamente...A menininha me olha comovida com seus olhinhos de turmalinas ... seus dedinhos de porcelana acariciam de leve meu espaldar como se dissesse “aqui estou...”

Nós, cadeiras de balanço, acreditamos que a vida é como as ondas do mar, que estão sempre recomeçando...

Deus existe. Somente dele vem o milagre dos recomeços...

Palavra de cadeira de balanço.

M P Lima
Enviado por M P Lima em 04/07/2014
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