273-JOSÉ, O CARPINTEIRO-Gratidão

As dificuldades são tantas que não há como escapar. A família de italianos luta com garra. O patriarca, Antonio Borghini, não esmorece na labuta diária. O rendimento da olaria, entretanto, é pouco e as bocas para sustentar são muitas. Por isso, antes mesmo de terminarem o curso primário, os filhos devem ajudar o pai, num trabalho estafante e sem perspectiva. A mãe se desdobra no cuidado da casa, dos filhos e ainda lava roupa para duas ou três famílias abastadas. Sem descuidar da assistência diária à missa das seis da manhã, nem dos ensinamentos religiosos aos filhos.

José é o segundo na escala de quatro filhos. Terminado o período escolar, passou a trabalhar o dia todo — e isso significa do raiar ao pôr-do-sol — na olaria. Batendo tijolos, que é o mais pesado. Consegue bater mil por dia, uma proeza de força e resistência. De índole tranqüila, difere totalmente do pai, dos irmãos e da própria mãe. O pouco que comunicam entre si acontece de maneira rude e com o mínimo de palavras. O pai é calabrês, a mãe, napolitana. Conheceram-se e se casaram em seguida à chegada ao “país do futuro”, quando vieram cavar a América.

A devoção religiosa da mãe conseguiu roubar José da sina que se lhe destinava: continuar oleiro, como os irmãos. Por influência do padre Marchiori, José consegue ingresso no seminário da diocese, cujo imponente edifício se assenta na parte mais elevada da cidade. Constituía motivo de orgulho para as famílias daqueles tempos ter um filho padre no seminário ou uma filha em convento. Era um degrau na difícil escalada social, principalmente para as famílias pobres e, especialmente, para as famílias de imigrantes. Assim, tanto José quanto seus pais sentiram-se alçados a uma posição melhor no conceito dos parentes, amigos e conhecidos.

No seminário, mesmo sem vocação, dedica-se aos estudos, e ganha elogios de seus professores. Capricha na letra. Sua grafia é a mais bonita dentre os colegas. Lê tudo o que lhe é permitido e revela apurado senso crítico. No segundo ano do noviciado, discute temas teológicos com os mestres e nem sempre é convencido pelos seus argumentos e sofismas.

De constituição forte e afeito à vida dura de trabalhador desde menino, é requisitado pelo Padre Constanzo para ajudá-lo na reforma de um velho galpão. Quando estão iniciando o destelhamento, o padre torce o pé e não pode mais continuar na obra. José prossegue sozinho: arregaçando a sotaina e enfiando-a na corda que cinge a cintura, sobe ágil a escada e faz todo o serviço: retira as telhas, corta caibros e ripas, substitui o madeirame estragado, repõe as telhas e, antes do tempo previsto, eis o barracão em condições de novo.

— Este noviço é um excelente carpinteiro! Faz jus ao nome. — O elogio do padre acidentado compara José ao carpinteiro de Belém.

— Então me deixa trabalhar na oficina do seminário. — Pediu o rapaz.

No que foi atendido. O regime exigia que todo seminarista prestasse serviços à comunidade do seminário. Assim, José passou a trabalhar na oficina de consertos de móveis do seminário e das duas igrejas da paróquia de São Roque da Serra. Aprendeu os segredos da marcenaria em pouco tempo. Caprichoso em tudo o que fazia, José, em seguida, está construindo móveis: bancos, confessionários e mesas, além de reparar com esmero os altares, púlpitos e tudo o que necessitasse de suas mãos habilidosas, familiarizadas com formões, goivas e outras ferramentas delicadas.

José está com dezoito anos quando o pai fica doente. Por longos meses o velho Borghini definha na cama. Período difícil para toda a família, principalmente para o seminarista, impossibilitado de estar com ele. Por deferência especial do diretor, o rapaz é autorizado a passar, uma vez por mês, um fim-de-semana com a família. Por mais de um ano, esta permissão ajudou a amenizar a dor da ausência do convívio com o pai e a família.

A habilidade artesanal de José chega ao conhecimento de Elias Fachid, famoso marceneiro que adorna seus móveis com entalhes de baixo e alto relevo. Visita o rapaz quando ele está com a família.

— Preciso de um ajudante. Já vi seus trabalhos de reparos no altar da igreja de São Roque. Você é a pessoa de que preciso. Já estou velho e não tenho tempo para atender tantas encomendas de peças entalhadas.

— Não posso, seu Elias. Faltam poucos anos para a ordenação.

— Não gosta de entalhar? Pois então! Poderá ganhar a vida como entalhador. Prometo-lhe um salário bom, até você começar a trabalhar por conta própria.

Os dias que José passava com a família eram muito diferentes daqueles vividos entre os muros do seminário. Gostava de ficar ao lado do pai, sentado à cabeceira da cama, orando e meditando. Mas chegavam visitas, vizinhos vinham saber como ia o velho, os irmãos entravam e saíam abruptamente e a mãe aparecia sempre que podia, oferecendo-lhe uma fruta, um copo de vinho, um prato de sopa. Tudo muito perturbador. Exceto a visita da prima Ana Maria.

Ela impressionava José. Não afeito ao trato com moças, sentia-se pouco à vontade na presença da elegante professora, que preferia visitar o tio e a família justamente nos dias em que o seminarista também estava na casa. Contudo, gostava de suas conversas. Era uma mulher de idéias avançadas — tanto quanto podiam ser as de uma professora de escola primária de uma pequena cidade interiorana. Alguns anos mais velha, tratava com o primo sobre qualquer assunto, até mesmo religião e filosofia. Falavam a respeito de tudo, uma palavra, uma idéia, eram motivos para longos diálogos.

— Olha, primo, pelo pouco que o conheço, vejo claramente que sua vocação não é o sacerdócio. Você é muito crítico, não aceita os dogmas sem discuti-los, e, além de tudo, não gosta de rituais. Não sei mesmo o que o mantém preso ao seminário.

Não foram apenas uma nem duas vezes que o melífluo libanês tentou José com suas ofertas.

— Ensino-lhe tudo o que sei e sei que você será um grande entalhador.

— Não, seu Elias. Muito obrigado. Não posso. — Respondia com convicção. Entretanto, o velho era insistente, sutil, sedutor.

A morte do pai abalou profundamente o seminarista marceneiro. A tal ponto de colocar em questão a possibilidade de viver com a mãe, já que os irmãos, casados e com famílias próprias, pouca ou nenhuma assistência prestavam à viúva. Seu Elias viu nessa mudança a possibilidade de ter José como ajudante e aumentou o assédio.

As conversas amigáveis com Ana Maria adquiriam outros significados. Os longos silêncios entre os dois, mais do que os diálogos, deixavam dúvidas atrozes na mente e no coração do rapaz.

Seguiu-se um período em que José mergulhou fundo na sua consciência, à procura do caminho. Retiros espirituais, confissões e penitências, conselhos dos mestres do seminário, encontros com o bispo Dom Agostinho, conversas com a mãe e com Ana Maria, e oração, muita oração.

Enfim, a resolução foi tomada. Não sem dor, José decidiu deixar o seminário.

— Excelente! Esta peça é a coisa mais bonita que já vi em toda minha vida!

Seu Elias não poupava elogios ao trabalho de José. Era apenas um principiante, mas o mestre entalhador, com a eloqüência e a vivacidade de um oriental, não media louvores ao discípulo.

Além de habilidoso, José tinha imaginação. Aplicava em seus trabalhos uma rica fantasia, ampliando e aprimorando os desenhos vistos nas obras dos artistas clássicos, a cujas reproduções tivera acesso no seminário. Volutas, capitéis, folhas de louros, flores estilizadas, figuras emblemáticas ou mitológicas, tudo era motivo para os entalhes feitos pelo moço.

Em pouco tempo, alcançou e superou a habilidade do mestre. Sem deixar, contudo, de trabalhar na reforma de móveis e nos serviços de carpintaria. Reunia toda a sua capacidade de artífice e artista, produzindo peças de beleza surpreendente. Para o adro da Igreja de Santa Cruz, erigida no morro do Baú, construiu elegante cruz, à qual agregou cenas da Via Sacra, em bonitos baixos-relevos. À inauguração desse verdadeiro monumento religioso compareceu Dom Agostinho, que encerrou seu breve sermão com palavras dirigidas a José.

— Tal qual o carpinteiro de Nazaré, este moço José, que foi nosso discípulo no seminário, dedica sua vida a criar da madeira bruta verdadeiros monumentos à fé cristã. Não quis ser sacerdote, mas seu trabalho é uma prova da semente divina nele implantada.

De uma certa forma, tais palavras significavam a liberação de qualquer sentimento de culpa que José pudesse ter com relação ao abandono do seminário.

Seu Elias morreu placidamente, sem deixar herdeiros. Antes de morrer, intuindo a visita da Velha Senhora, chamou José, sua namorada Ana Maria e o professor Norato, diretor do grupo escolar.

— Não tenho bra quem deixar casa, oficina, ferramendas. São tudo de José, daqui bra frente.

Sobre o túmulo do mestre entalhador, José colocou um grupo de imagens feitas em peças especiais de pau-ferro, a madeira mais dura que existe, esculpido por ele, representando a fuga de José, Maria e Jesus para o Egito. Nem ele mesmo sabia explicar a inspiração que o levara àquela escultura.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BLO HORIZONTE, 11.MARÇO.2004

CONTO # 273 DA SÉRIE “ MILISTÓRIAS”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/07/2014
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