272-SORTE É PARA QUEM TEM- Loteria e Carteado
Ganimedes Gomes apostou seu último recurso num carteado que varara a madrugada. O grande ganhador da noite, Alonso Córdoba , além de bom jogador, era um danado dum sedutor: arrastava suas vítimas para os últimos lances da partida, elevando as apostas de maneira capciosa e sutil e terminando por “arrancar até a camisa” dos companheiros de mesa.
Aquela noite tinha sido particularmente feliz para Alonso, pois conseguira ganhar pequenas fortunas do Coronel Zelito, do doutor Epaminondas (Coletor Federal) e de Radamés Pedrosa, comerciante atacadista e, como Alonso, um grande jogador.
No centro da mesa redonda, as pilhas de moedas, notas e títulos (promissórias, principalmente) se amontoavam irregularmente. Todos os demais jogadores haviam abandonado a partida, na última rodada, já combinada de antemão. Ganimedes e Alonso eram os últimos, que estavam levantando as apostas ao máximo e levando seus companheiros, homens de sangue-frio e acostumados a grandes lances na roda de pôquer, ao paroxismo grupal.
Num último lance, o derradeiro, a oportunidade última de ganhar ou perder tudo, Alonso Córdoba apostou todo o ganho da noite, ali sobre a mesa.
— Ou tudo ou nada! — exclamou, ao empurrar toda aquela riqueza na direção de Ganimedes que já havia perdido tudo. Suas eram as promissórias de mais de cem contos de réis cada uma, e que, quando tivesse de pagar, o levariam à falência.
Ganimedes vasculha os bolsos do paletó, no encosto da cadeira onde se sentava. Encontra um papel dobrado, que joga no centro da mesa.
— Ou vai ou racha! —
— Que é isso? Alonso, entre uma baforada e outro de seu charuto, já nem quer examinar o papel apostado.
— É um bilhete da federal para amanhã. O prêmio é de trezentos contos de réis. Cobre tudo o que está aí na mesa.
— Bilhete de loteria ? Pra amanhã? Endoidou, Ganimedes?
— Tenho certeza de que tá premiado. Na cabeça. — Blefou mais uma vez. — Como tenho certeza de que vou levar tudo isso aí comigo.
Alonso Córdoba até acha graça da conversa do companheiro de mesa. Mas, num lance de bom humor, responde:
— Tá bom. Vá lá, aceito esse bilhetinho aí.
Um novo baralho é aberto para o jogo final. Agora, só os dois se movimentam para apanhar as cartas. No centro da mesa, um monte de fichas, dinheiro, vales, notas promissórias. No topo, dobrado em quatro, o bilhete da loteria. Cada jogador examina suas cartas. Vem a primeira compra. Ganimedes compra uma carta, compra outra. Alonso também faz suas manipulações e pedidos de cartas. O suspense atinge o clímax. Ninguém fala nada. Todos observam, impassíveis. Nervosismo. Os dois jogadores estão atentos aos lances. Examinam-se mutuamente. Cada qual quer ver na face ou nos movimentos de mãos e dedos, um sinal, um aviso, uma pista. O silêncio é pesado. Parece que mantém a fumaça dos cigarros e charutos presos em uma nuvem sobre a mesa. Mais cartas são pedidas. Lentamente, os jogos são formados. O silêncio é quebrado repentinamente por Alonso, que fala em bom inglês:
— Royal Flush! — E põe sobre a mesa uma seqüência de ouros, de dez a ás, completada pelas figuras impávidas do valete, dama e rei.
— É, meus amigos, a noite não foi boa pra vocês, não. Mas, amanhã é outro dia, vocês podem ir à forra. — Assim gozando os companheiros de vício e adversários de mesa, Alonso Córdoba vai embolsando as moedas, dobrando as notas e ajeitando os papéis. Ao pegar o bilhete da loteria, faz um muxoxo de desprezo e comenta:
— E ainda vou ter de esperar pelo resultado da Federal, amanhã à tarde...Quem sabe se o azar do compadre Ganimedes não vira sorte na minha mão?
Na tarde do dia seguinte, veio o resultado da Loteria Federal. O bilhete que Ganimedes perdeu na mesa de jogo foi contemplado com o prêmio maior: trezentos contos de réis.
— Na cabeça? — perguntou, atônito, Ganimedes.
— Na cabeça! — confirmou Juca Bilheteiro.
ANTONIO ROQUE GOBBO
CONTO # 272, DA SÉRIE “MILISTÓRIAS”
1O. DE MARÇO DE 2004