271-MILIONARIO DEPOIS DE MORTO-Macabro

Joaquim Furtado só tinha um terno, de casimira azul-marinho, reminiscência de tempos melhores, quando, como professor do Ginásio Municipal, primava pela elegância. Agora, usava-o para ir à missa, aos domingos, acompanhando a esposa, a virtuosa Dona Minervina, e nas poucas vezes em que saia à rua, a fim de fazer compras de miudezas para a mulher, uma revista na banca de jornal e um bilhete da loteria. Este era adquirido no final do mês, após receber sua pensão. Era hora de “arriscar a sorte”.

— Vai um gasparino hoje? — Oferecia Juca da Sorte, vesgo e estropiado, mostrando um bilhete da Loteria Estadual.

— Não, seu Juca, hoje ainda não é dia. No fim do mês. No fim do mês compro-lhe um inteiro.

Joaquim era freguês de Juca da Sorte, que vendia bilhetes da Federal e da Estadual, as poucas modalidades lícitas de apostar na loteria, no final da década de 1930. Não gostava do jogo do bicho, primeiro, por ser ilegal, e segundo, por pagar uma ninharia.

— Quando acertar quero ficar rico de vez. — Avisava.

De vez em quando Dona Minervina lavava o terno, retirando dos bolsos algum papel esquecido, por vezes, o bilhete corrido, em cujo bolso interno Joaquim guardava para ser conferido na lista.

Quando Joaquim morreu, repentinamente, num ataque fulminante do coração, o terno estava limpo. Apenas uma escovadela foi o suficiente para que os amigos o achassem em condições de vestir o defunto. E assim foi Joaquim Furtado enterrado com seu único terno de roupa.

Dois dias depois do enterro, chega o Juca Bilheteiro à casa de Joaquim Furtado.

— Cadê o Joaquim, dona Minervina?

— Uai, Juca, morreu anteontem. Tá descansando nas graças de Deus, que ele merece.

Joaquim se espanta. Como é que não ficou sabendo da morte do amigo? Que coisa mais incrível, ali naquela cidade pequena, todo mundo sabendo de tudo.

— Mas, vamos entrar, sente-se aqui. Aceita um café?

Joaquim, muito sem jeito, aceita o convite. Agora a conversa com a viúva tinha de ser delicada. Não queria desrespeitar o luto, mas o assunto era sério. Depois de algum rodeio, falando do falecido, de suas virtudes e qualidades, atacou no assunto principal:

— Dona Minervina, ele lhe falou do bilhete que comprou na minha mão, na semana passada?

— Falou não, seu Juca.

— Pois olha, o bilhete tá premiado. Com o prêmio maior. Deu na cabeça.

— Uai, mas eu num sei onde ele pôs o bilhete, não, seu Juca.

— Quando eu vendi o bilhete, ele botou no bolso do paletó, aquele bolso de dentro. O paletó azul-marinho.

— Ai, seu Juca, ele foi enterrado com o terno azul. Que era o único terno que ele tinha. E ninguém tirou nada dos bolsos dele, não.

— Pois então, dona Minervina, o Joaquim foi enterrado com o bilhete premiado. E o prêmio maior. Quinhentos contos de réis.

Dona Minervina ficou mais assustada com o fato do marido ter sido enterrado com o bilhete premiado do que com a menção do valor da fortuna do prêmio. Mulher simples, sempre ocupada com a casa, o fogão, a roupa lavada, não tinha noção exata do que eram quinhentos contos de réis.

— Agora é tarde, ele já tá enterrado...

— Mas, dona Minervina, deve ter um jeito de recuperar. Vamos falar com Padre Adolfo.

O Padre Adolfo compreendeu a situação. E tratou de convencer dona Minervina de que recuperar o bilhete premiado não era profanação nem pecado.

— Ai, seu Padre, se o senhor deixa, então eu concordo.

O padre acompanhou dona Minervina até a polícia, a fim de obter do delegado a autorização necessária. Feito o desenterro, na presença do padre Adolfo, do delegado de polícia, do Juca da Sorte, e mais alguns curiosos, foi recuperado o bilhete, que estava, intacto, no bolso interno do paletó do defunto. Dona Minervina teve um ataque de nervos, desandou a gritar, e teve de ser afastada do local. Padre Adolfo foi amparando-a até a sombra de um cipreste.

O coveiro entregou o bilhete para o delegado, que fez questão de conferir na lista de Joaquim se o bilhete estava mesmo premiado.

— Deu na cabeça, doutor. Olha aqui o número!

Era mesmo o bilhete premiado. O delegado pegou o bilhete e dirigiu-se para o cipreste sob o qual dona Minervina repousava, recostada no tronco áspero.

— Aqui está o bilhete, dona Minervina. São quinhentos contos de réis. — Entrega-lhe o bilhete, dobrado diversas vezes. — Cuidado para não perder.

A mulher, ainda com os olhos úmidos, pega o bilhete e entrega-o ao padre.

— Fica com ele, padre Adolfo. Reza tudo em missa pro meu falecido marido.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 24 DE FEVEREIRO DE 2004

CONTO # 271 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/07/2014
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