270-ESTIGMA - Racismo

— Você não pode imaginar como estou satisfeito e contente. Feliz, de verdade. — Ele diz.

— Apesar da minha partida? — Pergunta a moça.

— Sim. Você vai, mas logo voltará. E virá para ficar. — Um sorriso alvo ilumina-lhe a face negra e feliz. — Então, iremos morar naquela praia deliciosa, na Bahia.

No aeroporto mais movimentado do país, Flávio e Doris aguardam a chamada para o embarque. Doris é uma linda moça, de porte médio, loira, de pele clara com algumas sardas nas maçãs do rosto. Os longos cabelos dourados cascateiam-se por sobre os ombros e se agitam a cada movimento de cabeça. Esbelta, de porte médio, traja roupas confortáveis, apropriadas à longa viagem que a levará à Suíça, sua terra natal. Flávio é magro e alto. Ficaram noivos no dia da formatura do rapaz. Aproveitaram a ocasião para assumirem o compromisso. Há exatamente três dias atrás.

A formatura de Flávio constituía, tanto para ele como para a família, uma vitória, uma prova da competência e do esforço do jovem estudante da Faculdade de Odontologia de Guarulhos. Filho de um policial militar aposentado, sempre fora esforçado e com muita dificuldade fez um curso técnico de protético. Montou seu pequeno laboratório de próteses em sua residência, isto é, na casa do pai. Decidiu ser algo mais: cirurgião-dentista. Ingressou na faculdade, que freqüentou com muita dificuldade. De todos os tipos: financeira, de tempo disponível para conciliar trabalho e estudos, e até com a sua condição de negro. O preconceito velado o perseguiu em cada dia de seu curso.

Enfim, eis o jovem de 28 anos formado. Na festa de formatura, alguém faz gozação:

— E aí, Flávio, o que é que você vai ser quando crescer?

— Bem, primeiro de tudo, vou me casar com essa loira que vocês tão vendo aqui. Depois, vamos pra Bahia. Descobrimos uma praia ao norte de Salvador que é o paraíso. Vou trabalhar lá, pois há falta de dentistas. Um lugar lindo, com gente maravilhosa, sem preconceito contra dentista negro.

Flávio lembra-se desse diálogo, com um sorriso no rosto, ao dirigir-se para a ruela lateral ao aeroporto, onde deixou seu Fiat.

O aeroporto de Guarulhos está contaminado pela violência que grassa o país. No início de 2004, a criminalidade atinge índices inauditos. As quadrilhas agem dentro e fora do movimentadíssimo terminal. Dentro, olheiros munidos de celulares dão as dicas para os comparsas, sobre os viajantes que transitam com caros relógios de pulso, celulares e lap-tops, alvos preferidos dos bandidos. Fora, em ações instantâneas, os assaltantes furtam não só os passageiros, mas veículos de todo e qualquer tipo. A polícia está em estado de alerta, os vigilantes são premidos pelos superiores no sentido de agirem contra a bandidagem.

— Temos de prender esses bandidos, acabar com a raça. Custe o que custar. Nossa obrigação é essa. Nosso prestígio está no chão. — A recomendação do comandante é repetitiva e incisiva.

Uma unidade da policia militar, composta por um tenente, um cabo e quatro soldados chega ao aeroporto e se dispõe a fazer um giro de reconhecimento.

— Cabo, você segue com os praças Adauto e Lídio pela ala esquerda. Eu, Carlos e Silva vamos pela direita, Nos encontramos do outro lado, no estacionamento de carros. — O comando do tenente Rosalvo é incisivo. — Olho vivo, gente. Vamos!

Passam pelos saguões, pelas áreas de lojas, balcões de check-in, salas de embarques. A movimentação de pessoas é intensa e os olhos perscrutadores dos vigilantes nada veêm de suspeito. Chegam quase que ao mesmo tempo à extremidade norte, na área de estacionamento.

— Vamos dar uma olhada ali na saída dos carros. Venham comigo. — O cabo ordena aos seus acólitos fardados.

Quando saem na rua lateral, vêem um homem preto tentando abrir um carro, estacionado no meio-fio. Sem pensar duas vezes, Adauto saca da arma e atira contra o negro. Tiro certeiro que atinge o homem no tórax, à altura do coração. Lídio e o cabo correm na direção do homem, que tomba, salpicando de vermelho a lateral do carro.

— Putz, que pontaria! Cê acertô na mosca. O cara tá morto. — Grita Lídio.

O tenente e seus dois auxiliares chegam correndo. Ouviram o tiro e vêm ajudar os colegas.

O cabo vira o corpo e procura documentos. Encontra-os. Ao examiná-los, verifica o terrível erro do subalterno. O homem veste roupas boas, está barbeado, “elemento limpo”, no jargão policial. A identidade prova ser Flávio Silveira e nada mostra de comprometedor. O que parecia ser um assalto era simplesmente o proprietário do carro, um modesto e surrado Fiat, com dificuldade em abri-lo com sua própria chave.

— Porra, que serviço é esse, soldado Adauto? — O cabo grita com o auxiliar, com raiva.

O tenente assume a situação. Vê a enrascada em que se meteram. A morte de um homem sem qualquer abordagem, nem ao menos uma voz de prisão.

— Temos de acertar esta situação, Lídio, sai por ai, encontra um zé-mané pra testemunha. Antes, me entrega seu revólver. — Lídio passa ao tenente o revólver, uma arma que havia surrupiado de um bandido, dias antes. Em seguida, sai, atarantado, procurando uma pessoa, um zé-mané, como dizem entre eles, para ajudá-los na constituição do “caso”.

Encontra na esquina o senhor gordo, de óculos. Ele observava a cena com curiosidade e não se surpreendeu com a chegada do soldado. A abordagem é rápida: o soldado pede-lhe para acompanhá-lo, sem dar explicações. Intimidado, o gordo segue o soldado.

— Negócio seguinte. — Fala o tenente, com determinação, dirigindo-se ao gordo. — Você estava passando por aqui, foi assaltado por esse negro ali e nós o livramos do assalto. Me dê sua carteira. — O gordo, abalado com a visão do homem morto no chão, não retruca e passa a carteira de dinheiro e documentos ao tenente. Fica mais alarmado ainda quando vê sua carteira sendo colocada perto do corpo, em cuja mão direita está um revólver.

— Sua história é essa, entendeu? = O tenente fala incisivo. O gordo concorda com um movimento da cabeça.

A história da armação feita pelo tenente Rosalvo e seus beleguins não convenceu o comandante, que determina investigação mais profunda. Os soldados caem em contradições em seus depoimentos. O “zé-mané” envolvido pelos policiais na armação, o gordo de óculos acaba por revelar a verdade, num segundo depoimento. Seu depoimento é secreto, pois pode sofrer represálias dos policiais que o envolveram na trama. Para relatar o que viu sem querer ver, conta com a proteção da própria polícia, que o coloca sob sua guarda.

A família de Flávio recebe a visita do Major Rocha, enviado pelo Comandante da Polícia Militar, para apresentar a versão oficial dos fatos e as condolências pela morte do filho. É um gesto de respeito pelo velho colega aposentado.

— Aceito suas condolências. Porém, não acredito numa vírgula do que os policiais contam. — O pai não se conforma com a morte do filho. — Meu filho foi morto porque era negro.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 19 DE FEVEREIRO DE 2004

SERIE MILISTÓRIAS = CONTO # 270

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/07/2014
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