268-EU QUERIA APENAS SER HEROI-Crime

Que estou fazendo aqui? Não, não pode ser! As grades, este catre...Deve ser um pesadelo.

Ainda não amanheceu, mas o céu se tinge de violeta e logo um sol frio estará surgindo, iluminando o edifício do Presídio Federal de Segurança Máxima de Potiramcaba, situado no meio da selva amazônica. Nem a luz direta nem o pouco calor chegarão à cela de Jonas, que se revira sobre o fino colchão. Uma sirena toca, plangente, pelo interior do edifício, acordando todos os habitantes da moderna prisão.

Não, não é sonho não! Meu Deus, estou mesmo na cadeia. É a sirene para o serviço do café. Tenho de me preparar.

Ainda não afeito à rotina a que estará sujeito nos próximos trinta anos, o novo preso senta-se, estremunhado, na beira da cama. A cela é pequena, cubículo de três por três metros: ao lado da cama está uma mesinha de cabeceira e no canto oposto, uma pia e o vaso sanitário. Sobre a cama, a dois metros do solo, uma prateleira larga serve de armário para roupas e poucos pertences do condenado. Um cheiro forte de desinfetante, usado para manter limpa a latrina de louça, impregna o ambiente, as roupas, lençol, colchão, tudo.

Que mau cheiro! Não agüento mais. Acho que vou vomitar.

Aproxima-se da pia. Com as mãos de longos dedos, asperge água sobre o rosto. A friagem da água elimina a ânsia. Enxuga-se com a rala toalha. Dos corredores da prisão chegam sons de gente se movimentando, guardas caminhando em passos decididos. Jonas aproxima-se da grade, que é aberta com estrépito pelo guarda alerta.

— Vamos, vamos. Hora do café. Não temos o dia todo. Depressa!

Jonas entra na coluna de presidiários que, como ele, se dirige ao refeitório. Não se vêem paredes, apenas grades por todos os lados. Alguns poucos conversam baixo, num murmúrio.

— Calem a boca! Sabem que é proibido falar! — Grita um guarda que está próximo de Jonas.

A disciplina é mantida com palavras e de muitas outras maneiras. Os guardas, escolhidos a dedo, treinados diariamente, entendem do ofício. As palavras saem de suas bocas como balas. Para cada dez presidiários há um guarda, que é presença constante e ameaça tangível em todos os momentos.

Assentam-se nos bancos toscos, presos ao chão. As mesas compridas comportam vinte homens de cada lado. Trocando olhares, comem em silêncio o fino pão com manteiga e tomam a xícara de café puro.

Além de tudo, essa porcaria de café. — Pensa Jonas. — Café três efes: frio, fraco, fedorento.—

Não se atreve a olhar para o companheiro da frente, tem medo do que pode descobrir nos olhos frios ou encolerizados. Parece que todos mantêm a cabeça baixa, concentrados no simples ato de tomar o café com pão e manteiga.

Atos tão simples assim que se tornam mais uma tortura, ali naquele antro. Jonas recorda-se do prazer que sentia ao tomar, na copa dos empregados, o breakfast , o café de todas as manhãs na mansão de seu ex-patrão, o milionário Dr. José Carlos Antunes de Miranda Filho. O “doutor” era um título gracioso, uma homenagem que seus pares lhe prestavam, pois o patrão nunca fora formado em faculdade. Mas era um doutor, ou melhor, era um verdadeiro mestre das finanças, o que lhe rendera imensa fortuna em poucos anos de atividade. Investimentos arriscados lhe proporcionaram bons resultados. Sorte no jogo. E uma notável intuição no jogo da bolsa de valores, que multiplicava dia a dia o capital.

Jonas sabia da fortuna e do poder do doutor Miranda Filho, muito antes de se tornar seu empregado de confiança, seu valet de chambre. Para conquistar esse emprego, usara de toda a sua persistência, paciência, esforço concentrado e até de influência de antigos patrões, aos quais servira com lealdade e dedicação.

Tempos bons...O patrão não era exigente, mas sempre fui o melhor, para ele. Só depois do enfarte é que passou a dar algum trabalho. Mas nada que eu não pudesse fazer para deixar o patrão sempre satisfeito.

Por mais de trinta anos, Jonas fora o empregado de confiança do milionário. Acompanhara sua carreira ascendente no mundo dos negócios, permanecendo sempre anônimo. Era uma figura praticamente invisível na mansão situada na região dos Jardins, na capital paulista. Só aparecia quando chamado ou nos momentos do dia-a-dia em que sua presença se fazia necessária. Discrição era a qualidade que o tornava quase que amigo do patrão.

Nunca deixei que a solidão tomasse conta do patrão. Por que ele não se casara? Sempre fora elegante e muito requisitado pelas mulheres. Era dado, sim, a momentos de melancolia e de depressão, mas nunca deixei que esses estados de espírito tomassem conta dele. Seus sobrinhos só apareciam para aporrinhá-lo. Quantas vezes afastei Lourenço e Gonçalo, até com mentiras, para evitar aborrecimentos ao doutor. A Jacira, não, era um doce de menina, que vivia viajando, só aparecia de vez em quando. Mas os dois, que pestes!

A família nada significava para o milionário, que atendia, sim, sempre que solicitado, aos pedidos de seus sobrinhos, da irmã e da sobrinha. A irmã era uma mulher apagada, o cunhado era um estróina, que jamais pisara na mansão do solitário milionário. Nunca abrira a casa para festas, embora participasse de festividades, principalmente as de cunho filantrópico ou artísticos. Sem ser um mecenas, ajudava aqui e ali a pintores, escritores e poetas, na produção de suas obras.

Nunca abusei da confiança do doutor. Bem diferente daquela maldita enfermeira que veio junto, acompanhando-o quando ele saiu do hospital. Ela foi a culpada de tudo. Desgraçada.

Aos 72 anos, o doutor Miranda Filho sofreu um enfarte. Atendido a tempo pelo leal Jonas, que o socorreu e providenciou atendimento a tempo de salvá-lo de conseqüências graves, permaneceu no hospital durante quarenta dias, durante os quais Jonas se desdobrou para manter o patrão informado de tudo o que se passava com seus negócios e suas propriedades. Ao deixar o hospital, foram-lhe oferecidos, e ele aceitou, os serviços de enfermeira experimentada, que o atenderia por alguns meses, até que seu restabelecimento total fosse constatado. Mariane, forte e competente, era, ao mesmo tempo, suave e encantadora. De alguma forma, cativou a atenção do velho.

Não havia necessidade dessa mulher cuidando do patrão.Eu estava ali , ao seu lado, dia e noite. De repente, entra essa dona, verdadeira mandona, alterando a rotina da casa, passando horas e horas ao lado do patrão, lendo os jornais para ele, conversando com ele. Foi pura sedução. Se eu não tomasse alguma providência, ela acabava conquistando o patrão. Quem sabe, ia até acabar em casamento. Casamento por interesse, claro.

Passaram-se meses. A assistência de Mariane transformou-se em companhia constante. Mesmo porque o doutor Miranda jamais voltou a andar. Preso a uma cadeira de rodas, era atendido sempre pela enfermeira. Jonas ficou em segundo plano.

Tenho de fazer alguma coisa para acabar com a influência dessa megera. Ela está planejando casar com ele, tenho certeza. Nunca fui com a cara dela, nem ela com a minha.

O incêndio irrompeu na tarde quente de verão e logo se alastrou pela mansão com voracidade inimaginável. Começou no terceiro pavimento, onde ficavam os quartos e o escritório do mega-investidor.

— Mariane foi quem gritou, pedindo socorro. Estava no segundo andar, justamente abaixo do quarto dela. Subi a escada correndo. O fogo já dominava o corredor e as labaredas lambiam a porta do quarto. Tentei pegar na maçaneta, estava quente demais. Mesmo assim, senti que a porta estava trancada. Joguei-me de ombros contra a porta, inutilmente. — O depoimento de Jonas foi a peça chave para que os investigadores chegassem às conclusões sobre o incêndio. — Corri até à garagem, onde apanhei um pedaço de ferro. Voltei ao terceiro andar, mas, então, as chamas tomavam conta de tudo. Tive de voltar ou podia morrer asfixiado.

A chegada do corpo de bombeiros evitou que o fogo atingisse toda a construção, mas quando conseguiram chegar ao quarto onde irromperam as chamas, encontraram os corpos carbonizados do doutor Miranda e da enfermeira.

Mas quem é que ia pensar que o patrão ia estar com Mariane no quarto dela, àquela hora? Que é que ela estaria fazendo com ele? Boa coisa não era...Minha intenção era que ela se apavorasse e deixasse de vez a mansão. Quando entrei no quarto do patrão e vi que ele não estava lá, adivinhei. A cachorra tinha levado ele para o seu próprio quarto! Com que finalidade?

— É muita choradeira pela morte do patrão. — O investigador Carlos Gomes cochicha para Lauro, seu companheiro, presentes no ato simbólico do enterro do milionário, ao observar o desespero inconsolável do fiel Jonas.

— Coitado, serviu o velho por mais de trinta anos.

— Pode ser. Por falar nisso, você já sabe se o testamento do velho foi aberto?

— Sim. Deixou tudo para os três sobrinhos. Deixou de fora a irmã e o cunhado.

— E o chorão, ali, não herdou nada?

— Nada. Seu choro deve ser mais por conta disso.

Sei que fiz mal, mas tudo o que fiz foi para ficar perto do patrão, para ajudá-lo e para salvá-lo das garras daquela megera. Desde os primeiros dias, vi que Mariane não prestava. Ela estava interessada na fortuna do patrão.

Os investigadores descobrem que o fogo fora proposital, havia indícios de que gasolina teria sido derramada na soleira da porta do quarto da enfermeira. Tudo levava à conclusão de que o quarto da moça havia sido trancado por fora, impedindo que ela saísse. Pela disposição dos corpos cremados, ela teria tentado abrir a janela, que permanecera fechada.

Abatido com a morte do patrão, Jonas não resiste à pressão do interrogatório policial. Entre soluços de desespero, acaba revelando a verdade.

— Eu queria só o bem do doutor Miranda. Só o bem. Aquela megera estava se aproveitando dele, ia acabar casando com ele. Isso não podia acontecer. Mas não foi por mal. Ia ser só um susto, eu mesmo ia pegar o patrãozinho e tirar do quarto, antes que o fogo alastrasse. Eu ia salvar ele. Eu queria apenas ser o herói desta história.

ANTONIO ROQUE GOBBO

CONTO # 268 DA “SÉRIE MILISTÓRIAS”

BELO HORIZONTE, 10 DE FEVEREIRO DE 2004

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/07/2014
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