265-CALÚNIA EM CURSILHO -

Se alguém precisasse de um advogado cheio de tretas e trapalhadas, era só procurar o doutor Carvalhinho. Filho do emérito Comendador Artemísio Carvalho da Silva, e carregando o nome do pai com todas as letras, o doutor Artemísio Carvalho da Silva Júnior não honrava o nome nem o sobrenome.

Já nos tempos de estudante revelou a índole para o escuso, para as tramas de caráter imoral. Fora expulso do Ginásio Municipal e fez um curso de direito que levou oito anos para ser concluído. Apesar da influência do pai, sua triste fama o precedeu no fórum e iniciou sua carreira como “advogado de porta de cadeia”.

Granjeou antipatia e desafetos por toda a vida. Sua atividade de jurisconsulto sempre foi entremeada de negócios próprios. Compra e venda de terras, de casas, de imóveis, sempre objetos de contestações. Foi o idealizador e construtor do primeiro motel da cidade, escandalizando a moral recatada dos seus habitantes. Organizou o Clube Campestre Éden, só para homens, que nada mais era do que um bordel instalado numa chácara confortavelmente próxima à cidade.

Foi, durante muitos anos, sócio de Joaquim Serapião Gambeta, nos negócios do jogo-do-bicho. Essa sociedade, aliás, teria sido conseqüência da soltura de Serapião, preso pela prática do jogo. Não se sabe como, a sociedade com o doutor Carvalhinho trouxe certa liberdade de ação ao cambista.

— Dizem até que ele tem “interesses” na casa de Berta Armond. — O comentário era do Emerenciano, na roda de conversa da Pharmácia Central. A casa de Berta era o melhor rendez-vous da cidade e, tal qual o jogo-do-bicho, a proteção fora assegurada à casa de prostituição.

De uns tempos para cá, entretanto, as coisas andavam mal para o Dr. Carvalhinho. Os processos que defendia na sua banca eram examinados com rigor extremado pelo Juiz de Direito. A polícia começara a importunar Berta e Serapião. O motel e o clube de campo eram seguidamente visitados por agentes da polícia civil.

— Sinto que tem alguém muito poderoso por trás disso tudo. — Confidenciou o advogado ao seu amigo íntimo, Moisés Hassam, que bancava o jogo no Éden.

— Ora, doutor, o senhor não vê porque não quer. Tudo começou com a chegada do doutor Teófilo. Já se esqueceu? Desde que ele se tornou o promotor da comarca que a gente não tem mais sossego.

Hassam estava certo. O impoluto Doutor Teófilo de Mendonça era a nuvem negra que se abatera sobre a ilegalidade da cidade, e, por conseqüência, sobre Carvalhinho e suas atividades, quer como advogado, quer como “empresário”. Após esta observação, o diabólico advogado passou a prestar atenção e começou a elaborar um plano de retaliação ao promotor de justiça.

Primeiro, a constatação de que o Dr. Teófilo era um freqüentador assíduo da igreja católica. Depois, de que era recém-casado com uma linda senhora da capital do estado, que estava grávida, esperando o primeiro filho. Outras constatações eram a do caráter absolutamente incorruptível e o afã de galgar rapidamente novos postos dentro da hierarquia judicial do estado.

O Monsenhor Eudóxio tratava de dar grande divulgação aos Cursilhos que estavam sendo realizados na diocese. A população católica da cidade já contribuíra com elevado número de fiéis que freqüentaram os três primeiros. A organização do 4o. Cursilho da Diocese contou com a inscrição de diversas pessoas da nata social de Bentópolis, incluindo-se o nome do doutor Teófilo de Mendonça . Carvalhinho, que sequer freqüentava a igreja mas se dizia católico por conveniência, quando soube dessa inscrição, viu aí uma forma de dar um cheque-mate no promotor. Inscreveu-se também como participante. Já sabia de alguma coisa que acontecia alí, embora os participantes fossem muito discretos em revelar as atividades desenvolvidas.

Embarcaram, pois, no dia aprazado, os futuros cursilhistas, no mesmo ônibus para a sede da diocese. Por coincidência, Carvalhinho e o promotor viajaram juntos, e conversaram animadamente — e hipocritamente — durante toda a viagem.

Carvalhinho tinha em vista o ato final do Cursilho, que consistia num auto de fé e confissão comunitária, na qual cada participante se levantava e declarava, perante a assembléia de companheiros, de viva voz, em alto e bom tom, os seus maiores pecados, seguido de contrição e arrependimento. Era o clímax do curso. Todos saíam dali “de alma lavada”, puros e inocentes como Adão antes da queda.

A tranqüilidade, o silêncio, o recolhimento e a paz de espírito povoaram os corações e mentes de todos. De todos, não. A mente de Carvalhinho não descansava um instante, maquinando, inventando e revendo todos os passos que tomaria para a realização de seu plano diabólico.

O último dia do cursilho começou com missa solene, cantada, com toda a pompa e circunstância devida aos novos Cavaleiros da Cristandade. Seguiram-se horas de meditação e reunião para avaliação. A parte da tarde foi toda ela reservada para o Exame Final.

Reunidos em assembléia no grande Salão Nobre do Palácio Episcopal, todos os cursilhistas mostravam-se extremamente cônscios de seu papel naquele conclave. Imagens contritas, rostos solenes, atitudes piedosas e corpos tensos. Começou a Confissão Geral. Cada qual, levantando-se, foi revlatando seu rol de pecados e pecadilhos. Alguns, atabalhoadamente, querendo terminar logo a via crucis. Outros, com vagar, detalhando e humilhando-se perante os pares, prolongando-se no mea-culpa.

Carvalhinho foi o último da longa lista de confessandos. Os confrades que o conheciam esperavam pela longa enumeração de suas cavilações, fraudes e trapaças. Mas, não foi assim. Ele levantou-se e de cabeça erguida, como que orgulhoso do que iria dizer, começou:

— Meus irmãos, minha consciência arde de ansiedade para confessar-lhes o mais vil, o mais negro, o mais terrível ato pecaminoso. Sou o mais indigno homem, indigno de estar com vocês, privando dessa hora; Indigno de estar vivendo. Pois meu pecado é a luxúria, é o da prevaricação, é o descumprimento do sétimo mandamento. Pequei pelo desejo e pela prática da cobiça e da posse da mulher do próximo. Meu pecado, minha maior falta, é ter desejado e tramado a posse, e ter, de fato possuído uma mulher digna, fiel enquanto pode resistir ao meu assédio. Essa mulher, pura antes de ser por mim conspurcada, está grávida e o filho que traz em seu ventre é meu. Essa mulher é, meus queridos e pacientes irmãos, ela é a digna esposa do nosso confrade aqui presente, Dr. Teófilo de Mendonça. Deste pecado maior e de todos os outros que aqui se tornam insignificantes, é que peço de vocês, queridos irmãos, o perdão e a absolvição.

Um arrepio de horror percorreu toda a assembléia. Ninguém se atreveu a dirigir um olhar sequer ao confrade mencionado pelo Dr. Artemísio. Os olhos de todos baixaram-se em contrição. Mas dois pares de olhos se encontraram: tomado de surpresa, o promotor fulminou o reles chicanista com um olhar de ódio, e leu nos olhos do adversário o cinismo e o gozo diabólico de uma trama infernal.

— É mentira! — Sua voz elevou-se no silêncio contrito, ecoou nas paredes e na abóbada do recinto e voltou contra si, como uma bala ricocheteando loucamente.

A cerimônia terminou ali.

As palavras atiradas ao vento nunca mais podem ser recolhidas. Por mais proba e digna que fosse a vida do Doutor Teófilo, por mais isenta de qualquer suspeita fosse sua esposa, por pior que fosse o conceito de Carvalhinho, as palavras, que todos sabiam ser mentirosas e com o propósito de destruir o promotor, atingiram o objetivo de quem as proferira.

O promotor não quis enfrentar com procedimentos legais a vil calúnia. Preferiu a via diplomática: solicitou e obteve, em menos de uma semana, a transferência para uma comarca bem distante de Bentópolis. A esposa, uma flor imaculada envolvida pela insídia do ignóbil advogado, sofreu na carne o terror da calúnia: sua gravidez complicou-se e perdeu o filho no quinto mês de gestação.

Carvalhinho continuou na prática cada vez maior de atos suspeitos e à margem da legalidade. Conseguiu até eleger-se vereador municipal nas eleições de 1960. O que foi a porta aberta para uma carreira política de muito sucesso.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE , 19 DE JANEIRO DE 2004

SERIE MILISTÓRIAS = CONTO Nº 265 –

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/07/2014
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