263-PACTO ENTRE CANIBAIS-Macabro

— Dei um beijo nele e comecei a rezar.

Com toda a naturalidade, um sorriso aberto, Meiwes prosseguia nas suas declarações durante o julgamento pelo bárbaro crime que sequer tem enquadramento legal na legislação criminal alemã.

Quem o vê, simplesmente, sentado à vontade na cadeira destinada às testemunhas, não consegue imaginar o quanto de loucura e insanidade se escondem debaixo da capa de educação do vil criminoso. A face barbeada, o rosto liso e sem rugas, a tez clara, cabelos castanhos muito claros, alourados nas extremidades, nariz bem feito e testa larga, tudo indica uma normalidade aparente. Os olhos — ah! os olhos, esses sim, podem denunciar o abismo de insanidade deste homem de 42 anos: debaixo de sobrancelhas claras, afundados em duas covas escuras, brilham com estranha luz. Muito juntos, dão a impressão de ligeiro estrabismo, o que é falso. Como, aliás, tudo é falso neste indivíduo.

Traja-se elegantemente, em consonância com seu porte e aparência: o terno lhe assenta bem no corpo, destacado pelo porte ereto.. A roupa escura destaca seu tamanho: tem 1 metro e oitenta centímetros de altura e pesa oitenta quilos. Braços longos e pernas idem, estão equilibrados com o tronco. A camisa também é escura, de um azul-petróleo, um pouco mais clara do que o paletó. A gravata de seda, discreta, de um verde oliva, o nó bem feito ajusta-se ao colarinho. Sapatos de cromo, negros e modernos. As mãos, escapando-se pelos punhos da camisa, são claras, delicadas. Unhas bem aparadas denunciam passagem pela manicure.

E prossegue, espontâneo, em seu depoimento. A voz é suave, quase que melodiosa. As palavras fluem, denotando um certo grau de educação. Já fala há mais de 3 horas. Com vagar. Parece saborear, ao narrar os eventos, de novo, todo o horror da macabra história.

Armim Meiwes é técnico em computação e, em conseqüência de sua própria profissão, um maníaco pela internet. Passava as noites defronte à tela, procurando sensações virtuais.

— Participei, durante anos, de grupos de discussão on-line, sobre os mais diversos assuntos. Nos últimos dois anos, entrei para um grupo muito especial. Um grupo formado por — digamos assim — simpatizantes do canibalismo. Existem muitas pessoas — eu diria centenas delas — que participam desses fóruns.

— O senhor admite que entrou nesse grupo com a finalidade específica de cometer esse crime bárbaro? — Indaga o Juiz de Instauração do Processo, Dr. Frederich Iansen.

— Todos os que fazem parte desses grupos estão a fim de levar sua curiosidade até o fim, atingir realmente seus objetivos. Nossas mensagens eram sempre em torno de como comer outros seres humanos ou de ser devorados.

Um arrepio percorre alguns dos presentes. Todos sabem do crime cometido por Armim, mas os detalhes do que ocorreu, contados pelo próprio autor, com sangue frio, são aterradores até mesmo para os calejados policiais ou experientes advogados presentes.

— Coloquei um anúncio em um desses grupos, mais ou menos assim: Venha para mim e eu comerei sua deliciosa carne. A mensagem permaneceu no sistema durante um ano. Nesse período, recebi 428 mensagens. Todas vindas de outros internautas, pertencentes ao mesmo grupo — isto é, de gente que queria comer carne humana ou que desejava ser canibalizada. Um dos que responderam me pareceu levar a coisa mais a sério que os outros: chamava-se Bernd Juergen.

Bernd Juergen era engenheiro, tinha 43 anos e trabalhava numa grande indústria eletrônica em Berlim. Solteiro, seu passatempo predileto era, como Meiwes, passar noite e madrugadas na frente do computador, procurando sensações virtuais. Quando viu a proposta de Armim Meiwes, respondeu afirmativamente. Começou então troca de e-mails entre os dois canibais virtuais. Trocaram fotos. Marcaram um encontro. O engenheiro viajou de trem, de Berlim, onde morava, até Rotenburg, a cidade de Meiwes. Conheceram-se pessoalmente na estação

— Fui buscá-lo na estação e lá mesmo combinamos o que iríamos fazer quando chegássemos em casa .

O juiz Iansen ouve as palavras ditas com sangue frio. Seu pensamento entra em divagações. O que leva as pessoas a tais atrocidades? Este homem, aparentemente sadio, vai em busca de outro, para comê-lo! Isto em pleno século vinte e um! Estaremos voltando à barbárie da pré-história?

— Depois que fizemos sexo, Bernd tomou uma caixa de analgésicos. Ficou em estado de dormência e nem pronunciava direito as palavras. Com a fala enrolada, me pediu para cortar seu pênis. Queria comer seu próprio pênis. Me fez prometer, também, que eu só o mataria quando ele estivesse inconsciente.

Os ouvintes estão todos atentos à narrativa. Alguns nem acreditam que aquela história seja mesmo verdadeira. Meiwes prossegue:

— Com a faca de cozinha, cortei o pênis de Bernd. Cortei-o em pedados e fritei. Servi os pedaços com vinho. Estavam duros demais. Intragável. Não conseguimos comer.

Meiwes interrompe por instantes, como que querendo saborear a impressão de terror que causava nos policiais e autoridades no recinto.

— Antes de desmaiar, Bernd exigiu que eu o esquartejasse imediatamente. Mas eu queria conhecê-lo melhor, antes. Tive de amarrá-lo à cadeira. Inconsciente, não havia como conversarmos e trocarmos impressões. Foi então que decidi esquartejá-lo.

A sessão já durava quatro horas ininterruptas e todos estavam exaustos, não só devido ao tempo decorrido como pela tensão provocada pela narrativa do assassino. O juiz determinou a suspensão da sessão até as quinze horas.

O crime acontecera em março de 2001 mas só tinha sido descoberto vinte meses depois, em dezembro de 2002, quando Meiwes colocou outro anúncio na internet, semelhante ao primeiro. Queria uma nova vítima e acabou se expondo.

Ao ser preso, não opôs resistência. Parece que já contava com a prisão. Era a maneira de mostrar-se, de se tornar conhecido pela sua façanha.

— Sempre tive essa fixação pelo canibalismo. — O criminoso tem um prazer mórbido em revelar-se e mostrar sua tara. — Desde criança. Quando tinha doze, treze anos, imaginava-me comendo os colegas da escola. Aqueles de quem mais gostava. Quando era adolescente, imaginei um irmão. Sonhava com ele e em meus sonhos, devorava-o a cada noite. Eram sonhos maravilhosos.

Submetido a exames psiquiátricos, não foi constatado nenhum problema grave, a não ser a vaidade e a vontade de querer aparecer, de se expor. Também depõe em seu favor (como se pudesse haver fatos ou atos que favorecessem tal barbarismo) a constatação de que Meiwes não tinha antecedente criminal.

Durante o intervalo determinado pelo juiz, técnicos instalaram um enorme aparelho de TV e o vídeo cassete player, para exibição de provas documentadas através de filme, feito pelo próprio canibal.

A sessão teve reinício. Meiwes retoma a narrativa, que faz com prazer.

— Decidi filmar tudo. Daqui pra frente está tudo documentado em filme.

Os aparelhos são ligados. A filmagem é boa, Meiwes é também um bom cameraman.

Mostra o bandido colocando avental e dispondo três facas grandes e uma machadinha de cortar peixe sobre a mesa, ao lado da vítima, amarrada em uma cadeira, a cabeça tombada sobre o peito. Estão na cozinha e não há sinais de sangue.

— Dei um beijo nele e comecei a rezar.

Qual será o deus para o qual esse monstro reza? Pensa Herr Carl Volkman, o delegado que chefia a equipe investigadora do tenebroso caso,

A seguir, desamarrou com facilidade o homem desmaiado e, revelando uma força e um jeito especial para lidar com o corpo, pendurou-o pela cabeça em um gancho na parede. O corpo estremece, na última manifestação de vida. Agora, está pendido e frouxo. Meiwes pega uma faca e, num golpe preciso, abre o peito da vítima, cortando-o até o ventre. Um balde está sob o corpo, para onde escorrem os órgãos internos, misturados com sangue abundante. Com a perícia de um magarefe, o canibal carneia a vítima. Tira postas de carne dos braços, coxas, pernas, costas e nádegas. Embrulha a carne em plásticos e coloca no congelador.

A tela do aparelho de TV fica azul. O filme termina, para alívio dos assistentes.

— Foram mais ou menos trinta quilos de carne... — Começa a explicar.

— E o que foi feito do resto? — Indaga o juiz, enojado mas determinado em ir até o fundo no esclarecimento do crime.

— A cabeça, os ossos, e as vísceras foram enterrados no jardim. Guardei o coração, que comi no dia seguinte.

Levanta-se um dos advogados de defesa de Meiwes.

— Meritíssimo juiz, peço licença para apresentar uma peça na defesa de meu cliente.

Em sua cadeira, Herr Volkman se mexe, desconfortável e irritado.. É incrível como os mais bárbaros criminosos sempre encontrem quem os defenda, pensa.

Autorizado pelo Juiz, o advogado prossegue:

—Peço que este Tribunal de Instrução leve em consideração os seguintes fatos, em favor de nosso cliente. Primeiro, o fato do sr. Armim Meiwes não ter nenhum antecedente criminal. Segundo, a não constatação de nenhum problema grave, de caráter psicológico. Terceiro, o teor deste documento que passo às vossas mãos. É um testamento do sr. Bernd Juergen, no qual, conforme se verá, ele admite que um pacto foi estabelecido entre os dois e que se submeterá espontaneamente a qualquer ritual de canibalismo, praticado por parte do parceiro.

Impassível, o advogado entrega ao juiz o documento que comprovará o acordo final do pacto de canibalismo.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 10 DE JANEIRO DE 2004

CONTO # 263 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/06/2014
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