261-SARGENTO GARCIA E OS SACOLEIROS-Burocracia e corrupção

—Claro que vale a pena correr o risco. A gente já sabe o dia e a hora em que os guardas estão mais vigilantes.

—Sei não. Tenho medo. E, além de tudo, se perder meu dinheirinho numa blitz policial, fico sem capital.

Ricardo tenta explicar ao amigo as vantagens de ir comprar mercadorias no Paraguai para vender em Belo Horizonte. Marcílio não se deixa convencer com facilidade.

—Cara, o lucro é de cem por dez. Não tem erro. Nosso ônibus é bem arrumado, tudo legal. E o motorista sabe dos horários mais convenientes de passar pelas barreiras.

—Tá bom, mas vou comprar pouca coisa. Só para experimentar.

—Tenho certeza de que cê vai gostar.

Marcílio foi com o amigo e mais doze pessoas.

— Onde é que estão os outros passageiros?

—Cara, nós vamos só em 14, 15 passageiros, no máximo. Assim, tem mais espaço no ônibus para carregar a mercadoria.

A viagem de ida foi normal. As compras no Paraguai decorreram com tranqüilidade. Marcílio se deixou levar pelo entusiasmo do amigo e comprou mais do que pretendia. Aplicou todas as suas economias em artigos de fácil colocação. Vinha satisfeito, contabilizando mentalmente o lucro que esperava da transação. Aliás, todos os participantes da viagem haviam comprado muito. O ônibus estava abarrotado. No bagageiro não cabia nem mais uma agulha. Na parte destinada aos passageiros, apenas as poltronas dos 13 passageiros estavam liberadas de carga. Caixas e sacolas. valises, malas e maletas entulhavam até o corredor que dava acesso ao sanitário, no fundo do veículo.

Tudo transcorria normal. Os postos de fiscalização no Estado do Paraná e de S. Paulo foram habilmente evitados pelo motorista Janjão, veterano na rota dos sacoleiros.

— Faz mais de dez anos que faço essa rota. Comigo não tem tempo rim. Conheço os guardas e eles me conhecem. — Dirigindo dia e noite, gostava de alguém ao seu lado para bater um papo e espantar a solidão ou o sono. Marcílio, sacoleiro de primeira viagem, ouvia atendo e de vez em quando perguntava alguma coisa. Só por perguntar. Confiava no amigo Ricardo, sabia que ele não iria pôr ninguém em risco.

— E quando a polícia pára o ônibus? Como é que você faz?

— A gente tem sempre algum brinde, presente já preparado. Uma TV, um CD player, às vezes um aparelho de som. Alguns preferem bebida: uma caixa de uísque, coisas assim.

No Posto de fiscalização que fica próximo à cidade de São Roque da Serra, na rodovia que vai a Belo Horizonte, alguma coisa estranha estava acontecendo. Ao amanhecer, hora apropriada para transitar por ali, alguns caminhões, carros de passeio e um ônibus estavam estacionados.

Epa! Ali tem coisa. Nunca vi o trânsito congestionado por aqui. Mas agora não dá mais tempo de sair da estrada, nem desviar.

Foi em frente. Parou atrás da fila e ficou aguardando. Procurando saber do que se tratava. Alguém informou:

— Tão bloqueando a estrada para impedir a fuga de uns traficantes que estão por perto de São Roque da Serra.

Janjão suspirou, aliviado. Nada a ver com nosso ônibus. Vou passar tranqüilo.

Enganava-se. Os policiais, desconhecidos de Janjão, quiseram revistar o ônibus. O primeiro sinal de que as coisas iam mal foi a exigência de um sargento:

— Não pode carregar essa mercadoria aí em cima, no setor de passageiros. Tem que colocar no bagageiro. — Mas logo viu que o bagageiro já tava entulhado.

— Bagulho quente, hein, camaradinha? — O sargento Garcia falou com Janjão.

—Quente e colorido. Tem uma caixa especial pro senhor, aí no assento 16.

—Já tenho TV colorida. Não preciso de outra.

—Uma caixa de uísque?

—Negativo. Vou enquadrar todos vocês. Desce toda a tralha da parte superior do carro.

Como se tratava de material de contrabando, alçada da Federal, o sargento tenta acionar a Polícia Federal de Uberaba, para registrar o flagrante. .

—Tamos aqui com um ônibus cheio de muamba. Assunto da competência de vocês. . —Negativo, sargento Garcia. Toda a nossa equipe já está em campo, não podemos mandar ninguém aí. Tente a Federal de Divinópolis.

Pelo rádio, novamente o sargento Garcia tenta a Polícia Federal sediada em Divinópolis. Da mesma forma, a resposta foi uma negativa: estavam todos os federais em outras diligências, não havia ninguém à disposição.

Porra! Eu com uma turma de sacoleiros safados, não posso prendê-los, nem encontro quem me ajude. Que merda!

Tentou, através do rádio, conexão com a Polícia Civil em Belo Horizonte, distante mais de 300 quilômetros. A negativa foi mais forte.

— Ora, Sargento, o senhor sabe como nós estamos por aqui de trabalho. Não temos elementos disponíveis para ir aí. Mesmo porque, não é nossa atribuição fazer flagrante de contrabando.

Quer saber duma coisa? Vou resolver este caso à minha maneira.

Dirigindo-se ao motorista, que aguardava pacientemente a solução do problema.

—Desce a caixa de TV e sobe a mercadoria para o ônibus. Vocês estão liberados.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 22 DE DEZEMBRODE 2003

Conto # 261 da Série MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/06/2014
Reeditado em 29/06/2014
Código do texto: T4863072
Classificação de conteúdo: seguro