Carta para Ulisses
Amar é mudar a alma de casa.
Mário Quintana, Sapato Florido
Amado,
Espero, com toda a minha fé e esperança, que você
esteja bem e a salvo e que esta lhe chegue em mãos. Sei
que você foi para o verdadeiro inferno do outro lado dos
mares, mas há muito tempo que não recebo mais notícias
e nem cartas suas e por isso a minha preocupação excessiva.
A última carta que recebi já está repousada em meu
coração há mais tempo do que gostaria. Porém, sei que
vives, pois meu coração ainda não adoeceu de angústias e
tristezas, dores essas infindas, que não cessam nem mesmo
no refúgio mais escuro da noite. Amado, quando chegarás
da cidade de inverno? Quando me esquentarás com o teu
sangue? Quando me acordarás com um beijo molhado?
Eu durmo só, em tua espera, em jejum de sonhos. Abro
as janelas e as nuvens cinzas não se dispersam. Ando bebendo
o café amargo das manhãs úmidas. Mas, todos os
dias, quando penso em você, quando o tenho ao meu lado,
quando o seu sorriso me desperta, eu vejo o sol despontar
no horizonte e descer. E o recebo amarelo e o sinto doce
como mel. Sinto seu abraço, ele me aquece com amor e
depois se despede. Espalha-se pela relva das campinas,
ainda orvalhada pelas lágrimas cinzeladas na noite, vai beijando
as copas frescas das árvores e cortejando jovens e
coloridas açucenas. Amado, o dia está aberto, o ar está seguro,
o céu, nascente, repousa de azul. Mas o que adormece
ainda é escuro. Hoje visto longo branco e acompanho a
lenta cadência das nuvens e a maré enjoada das águas que
descem. E o vento nu, o sopro quente de seu hálito, me
acaricia e afaga. E entrego-me a íntimos pensamentos... E
alieno de exatar as horas. Meus olhos aquosos se movem,
buscam o pão fresco da bela manhã de uma nova alvorada.
De tarde, contemplo as verdes vivas colinas, nesse mágico
horizonte distante. Mas estou só, irremediavelmente só,
presa ao fastio dos dias circulares. Amado, não quero mais
ter de regar meu jardim de saudades. E nem sufocar as
minhas vontades mais prementes. Não quero mais ter de
me ferir nos espinhos quando abraçar a rosa da solidão.
Não quero mais me enforcar nas mãos doces da ilusão,
no desamparo de sua ausência. Eu caminho pelas ruas,
dá-me vontade, bato em todas as portas e pergunto pelas
viúvas... Sinto o cheiro da chuva, enterrada na terra molhada
do cemitério. As portas dessa embaixada da saudade
carregam a maldição eterna de sempre estarem abertas.
Amado, acaso não sentes minhas lágrimas, que te lambem
o rosto, a cada palavra suspirada em seu nome? Não quero
mais viver e nem triste te ver, sob a sombra ameaçadora
de um cipreste. Volte amado, venhas alegre e recolhas no
vento todas as minhas carícias que andam perdidas, desprendidas
de minha sonâmbula alma. Volte para o palácio
esquecido do seu império, para o quarto aquecido de meu
amor. O caminho estará florido e o pote cheio de mel, eu
lhe garanto. Amado, quero secar logo esse meu pranto,
quero senti-lo entranhado sob minha pele. Serei sempre
vulnerável ao toque de seu corpo. Venha me cobrir com
seu sagrado manto. Venha feito um colibri, se saciar do
néctar puro que lhe ofereço com as pétalas abertas. Venha
beber da minha boca, venha reviver, em nossa cama,
a chama e o encanto de nossos velhos hábitos. Esqueças o
vazio que lhe persegue. Recuse as dores da guerra. Renuncie
a todos os dissabores do mundo. Escute, amado, por
favor, escute o meu canto. Sou eu que te amo tanto... Não
se preocupes, meu amado. Nunca vou te esquecer. Cada
noite longa, para mim, é uma ressaca dos mares das saudades.
Mas não me desabito de você e não me desafio a lhe
deixar. Gostoso era quando respirávamos juntos. Queria
tê-lo mais uma vez suave em meu colo, a lhe tatuar beijos.
Por que a nossa ponte íntima tornou-se invisível? O que
nos impede de atravessá-la, de furarmos essa distância que
nos seca? Nem o destempero da ideia de uma perda e nem
o desespero que dessa espera possa resultar em fracasso
me farão abandonar a ilha de nosso amor. E a ninguém
permitirei herdar os meus tesouros, pois somente a você,
o meu senhor, eles pertencem. Amado, não vou demolir
minhas pobres ruínas. Afinal, elas são a minha história, e
ainda que minha história esteja abreviada e incompleta, ela
foi escrita em você.
Sua amada sempre fiel,
Penélope.