248-A EXCOMUNHÃO DE PORTUGAL - História

Na noite de desgraça e de pressentimentos aziagos, o rei a custo conseguiu adormecer. Dormiu pouco, contudo. Ainda na madrugada fechada, sentindo o frio enregelador do castelo e ouvindo o piar soturno das corujas, saltou do leito. Ergue-se, num repelão, os olhos mal afeitos à escuridão do aposento real, estremunhado, o raciocínio lerdo, qual um leão saltando de seu covil, incomodado por algum inimigo invisível.

A determinação, porém, chegou-lhe num átimo. Embrulhou-se numa capa de tecido rústico mas quente, rubra como as chamas do ódio que o atormentava, amarrou com destreza os pesados calçados reforçados, meteu sobre a cabeça o barrete real e ajustou o braço nas correias de couro que sustentavam a adaga.

Acordados estavam, no grande salão do castelo, Fernão Peres, o vedor, responsável por toda a administração do imóvel feudal, em companhia de Braganção, o fiel companheiro de muitas batalhas, mais do frade confessor, ingênuo e humilde.

— Vamos a ver quem excomunga quem! — Gritou o rei, sem se dirigir a ninguém em particular. Surpresos, os três não puderam fazer um gesto sequer que pudesse deter o determinado guerreiro. Acorrendo ao pátio do castelo, viram quando o senhor daquele torreão saltou, com agilidade inesperada para tamanho vulto, sobre o lombo de um grande cavalo sem arreios. Acicatando com fincas de brasas o ventre do animal, dirigiu-o para o portão escancarado, que atravessou e desceu, as ferraduras faiscando nos calhaus, o caminho estreito e em declive, entre os muros do Castelo de Coimbra.

— A esta hora, aonde irá Dom Afonso? — O frade, mais curioso e menos avisado, indaga-se em voz alta.

— Irá expiar a excomunhão? — A indagação continua, nas palavras do vedor.

— Pois, por certo, irá atrás de Dom Cardeal. Não viram estampada em sua face a ira real? — Correto na sua assertiva, Braganção podia adivinhar o desfecho daquela empreitada noturna do valente guerreiro portucalense.

Era justa a ira de Afonso Henriques. Culminava uma série de fatos que pareciam escapar do controle do chefe da Província Portucalense. Ao expulsar, na semana anterior, o emissário papal, Afonso Henriques nada mais fizera do que ser coerente com os fatos antecedentes que o levaram à chefia da Província.

A história remonta à primeira metade do Século X. Em 1126, estando Afonso Henriques com quinze anos, morreu seu pai Dom Henrique, o primeiro mandatário, por ato régio controverso, da Terra Portucalense. Dona Tareja, viúva de Dom Henrique, imprimiu uma diretriz de governo à província que contrariou a aristocracia portuguesa, já briosa de sua importância. Uma revolta dos aristocratas contra Dona Tareja colocou o poder nas mãos do rapaz Afonso Henriques, então com dezessete anos. No embate dos exércitos em luta, venceu o de Afonso Henriques que, em resultado, aprisionou a própria mãe no Castelo de Guimarães.

Tal atitude não foi do agrado do Papa Honório II, que encarregou o Bispo de Coimbra de lavrar um protesto formal a Afonso Henriques. Braganção, sempre ao lado de Afonso Henriques, tal qual fiel escudeiro, lembra-se bem de como foi o encontro das duas eminências. O gigante ruivo, afeito desde jovem aos constantes exercícios de cavalaria e às refregas contra os mouriscos que dominavam o sul, era impaciente no trato diplomático. Não tinha tato nem papas na língua. Dispensou o Bispo com sua comitiva, com palavras ásperas e ameaçadoras.

Intimidado, o Bispo de Coimbra, fugiu na calada da noite. Ato contínuo, Afonso Henrique nomeou um novo bispo para Coimbra. O próprio Braganção fora encarregado de trazer, para a sagração, um clérigo desconhecido, chamado Saleima. A afronta era múltipla. Assumindo os poderes do papa, o rei não só nomeou o Bispo, como escolheu justamente um padre que vivia entre os mouros — por isso chamado de Saleima, o Moçárabe.

— Vamos ver quem manda nas terras portuguesas. — Desafiou o impulsivo governador.

A reação papal foi imediata. Um emissário especial conhecido como Dom Cardeal foi enviado a Coimbra, por aqueles tempos nova sede do Condado Portucalense. Chegou com Bulas Papais contra os atos de Afonso Henriques. Primeiro, condenando o cativeiro de Dona Tareja. Segundo, contra a perseguição movida ao Bispo de Coimbra. E terceiro, o mais importante, pela verdadeira heresia praticada na sagração de um bispo, ato inimaginável fora da esfera do poder do Papa. A Bula de Honório II considerava tal ato um verdadeiro cisma na Igreja.

— O Papa não aceita vossa atitude. Deveis jurar por vossa Fé em Jesus Cristo. — Exibindo a Bíblia, o bispo Dom Cardeal exigia de Afonso Henriques total subserviência a Roma e suas diretrizes. — A nomeação de Soleima como bispo de Coimbra é nula por princípio.

— E eu não aceito a presença de Vossa Reverendíssima neste Castelo nem em terras portuguesas. Vossa Reverendíssima e todo o vosso séqüito considerem-se expulsos do castelo e das terras portucalenses.

Ante tão inesperada atitude, Dom Cardeal se dirigiu à Catedral da Sé de Coimbra, onde, com toda pompa e circunstância, excomungou não só Dom Afonso Henriques, como a terra portuguesa e o povo de Portugal.

Tamanha catástrofe, desgraça de tal vulto, a excomunhão lançou todos os habitantes da terra de Portugal num verdadeiro limbo espiritual. Houve choro e ranger de dentes. As gentes saíam às ruas flagelando-se, gritando e chorando. As autoridades, estarrecidas, permaneciam sem ação. Que fazer? Ninguém, em sã consciência, atrever-se-ia a ir de encontro a um ato de tão extraordinário poder. De danação e condenação ao povo e à terra.

Afonso Henriques estava entre os atônitos. Surpreso, sim, mas jamais bestificado. Sabia que tinha de tomar uma decisão. Noites e noites de insônia, dias de discussões com seus fiéis amigos, tudo isso, sem trazer uma luz à questão, esgotava o governante, tirava-lhe o sossego necessário a uma decisão sábia.

Sabedor de que Dom Cardeal saíra de Coimbra ao entardecer do dia anterior, acompanhado de grande séqüito, o rei via que a situação estava piorando a cada hora. Urgia fazer qualquer coisa. Tomou, então, a decisão.

Montado na cavalgadura em pêlo, o chão sendo engolido em léguas sem fim por cavaleiro e montaria, as roupas avoengas agitando o ar, o rei persegue a solução que se lhe apresentara, na madrugada fria e insone. Ao encalço do cardeal. Urgia encontrá-lo ainda em terras da província, onde exercia total poder. As ferraduras do animal estrondeavam sobre as pedras do caminho e o vento açoitava cavalo e cavaleiro.

Pelas margens da estrada, o povo, tal qual rebanho de negros carneiros, dispersava-se pelos campos molhados de orvalho, ante a arremetida do fogoso corcel. Sem saber do que se tratava, erguiam as mãos crispadas, gritando palavras santas que se transformavam em maldições. A névoa deixava apenas entrever o populacho que se dirigia ao trabalho rural, espraiando-se pelos baixios. Árvores esgalhadas e nuas de folhas lançavam seus atormentados ramos sobre a senda, sentinelas fantasmagóricas da noite de terror. Corvos piavam, assustados, agitando as asas negras, gritando alvíssaras de terror.

O rei nada vê, nada sente. Açula cada vez mais a montaria, a poeira entupindo-lhe boca e nariz, ardendo os olhos vermelhos em brasa. A corrida devastadora rende léguas e léguas, a fúria atormentando-lhe ouvidos, uma vertigem dominando a mente, o vento flagelando as partes expostas do corpo rijo.

Ouvem-se, agora bem longe, os sinos de Coimbra: na tenebrosa noite dobram pela nação excomungada em acordes de desespero e angústia — Miserere...Miserere...

Esfalfados, cavalo e cavaleiro prosseguem a toda. A sombra negra e rubra do cavaleiro alevanta-se sobre lombo em pêlo do incansável cavalo. Procura divisar qualquer indício da caravana. Sem se deter, a montaria arremete-se resfolegando em altos haustos, acompanhando e se interpondo ao distante tanger dos metais — Miserere...Miserere...

Léguas engolidas, ultrapassam Beira e chegam à região de Poiares. Alçando-se ainda mais uma vez, Afonso Henriques divisa, lá em baixo, numa volta do caminho, um clarão difuso de luzes de lanternas dependuradas em hastes, para iluminar o caminho, e simples candeias. A fantástica luminescência avança na escuridão, pulsando ao ritmo lerdo das bestas e animais de cargas.

— Por Deus, lá está ele, o bispo maldito! — Brada o rei, ansioso por ação. —

Depois da excomunhão, o cardeal fugia. Deixava, mantida, a maldição. Levava consigo todo o acervo do bispado, acomodado nos lombos das bestas de carga, vigorosas e atreladas umas às outras.

Esse Bispo vai saber com que moeda Portugal vai cobrar a excomunhão. Não será impunemente que o Papa nos ameaça de tal forma. — Afonso Henriques já tem na mente como procederá para tirar de si, de seu povo e de sua terra a maldição do Papa Honório II.

O cavalo do rei mais do que galopa, voa sobre seus cascos. Corta o ar com seus refolgos. A rédea solta, o magnífico animal adivinha a urgência do montador e avança com ansiedade.

Na arremetida final, quando a figura do rei assoma-se negra, gigantesca, vingadora, o cavaleiro não está mais só. Alcançam-no em surdo martelar de cascos, as tropas leais de Braganção, de Espadeiro, do vedor e do Prior Teotônio. Caem como uma tempestade de pó, de relâmpagos das espadas desembainhadas, sobre a comitiva do enviado de Roma. A confusão assusta e dispersa clérigos, carregadores, portadores de candeias e lanternas, condutores de animais. O caos se estabelece. Espantados, os animais derrubam fardos, zurram, escoiceiam. Candeias e lucernas se apagam.

Dom Afonso, entretanto, não perde de vista a figura de Dom Cardeal, objetivo exclusivo de sua cavalgada noturna. Rápido, um raio em forma humana, adentra-se por entre a confusão e, em dois tempos, lança-se sobre a mula do Cardeal. Prende-o com manopla férrea. A mitra cai ao chão. Os olhos, aterrorizados, saltam das órbitas. O suor frio de terror empasta-lhe o cabelo, mancha-lhe a face e o pescoço.

Possesso de júbilo por ter o italiano em seu poder, o destemido rei urra de alegria. Já vai desfazer todo o mal que desastrado emissário eclesiástico vem causando nas plagas de âmbito do rei de Portugal.

— Cá está o maldito! Cá está...

Braganção, metido numa capa pardacenta, chega a tempo de evitar que seu impulsivo chefe, com a adaga suspensa sobre a nuca do reverendo, desfeche o golpe fatal. Gritam em coro os acompanhantes do emissário do papa e os amigos do rei:

— Piedade, piedade! Morte, não!

Afonso Henriques afrouxou o aperto férreo, aliviando o Cardeal. Meteu a adaga na bainha ao mesmo tempo em que lhe gritava aos ouvidos:

— Da morte escapas. Mas não escapas de desfazer a excomunhão. Já e Já. Livre a terra e o rei da maldição. Exijo a absolvição.

Livre e lívido, apavorado e inseguro sobre a mula ricamente arreada, Dom Cardeal apeou-se com dificuldade, ajudado pelos carregadores. Ordenou que desfizessem as trouxas com as vestes e objetos paramentais. Apareceram a capa apropriada para ser usada nas aspersões (ricamente tecida com fios de ouro, bordados em forma de alcachofras), a alva e o amicto, que o reverendo foi vestindo. Ajustou a alva e amarrou-a com o cíngulo. E, finalmente, trespassou a estola por sobre os ombros. Recolocou a mitra sobre a cabeça. Navete, turíbulo e vaso com água benta e aspergidor, tudo em prata lavrada, estavam em seguida à mão. No turíbulo as brasas receberam o incenso e o suave olor da fumaça santa se espalhou pelos campos adjacentes, preparados em leiras para a semeadura. A fumaça sacra se elevou pela galharia fantasmagórica das árvores. As lâmpadas de óleo foram reacendidas, bem como as lanternas.

Um dos carregadores exibia, elevado sobre sua cabeça, o crucifixo com o Cristo Ensangüentado, em nome de quem toda aquela confusão fora armada. E foi em seu Nome que, olhando de esguelha para o rei ameaçador, Dom Cardeal resmungou os termos oficiais declaratórios da absolvição.

Espalhadas pelo amplo espaço entre cavalgaduras, pessoas, autoridades e servidores, fiéis e aventureiros, juncados por panos e cordas, trouxas desfeitas, malas e bruacas quebradas, o tesouro da Mitra Episcopal de Coimbra brilhava ao albor. Ostensórios, cruzes e cálices de prata e ouro, frontões retirados dos altares da Sé. Tecidos raros e caros da Grécia, roupas finas de Chipre, tapetes da Ásia, sedas finamente trabalhadas e bordadas do longínquo Oriente. Esplêndidas roupas paramentais: alvas, dalmáticas, estolas, casulas, trabalhadas com esmero e arte. À luz do sol elevando-se a leste, faíscas refletiam-se dos objetos de prata e ouro, dos paramentos bordados com incrustações de diamantes e outras pedras preciosas. De algumas mulas pendiam arcas e baús cheias à boca de maravedis, moeda de curso comum entre Portugal e Espanha.

— Estais certo de que essas coisas não lhe pertencem, pois não? — Perguntou o rei. E sem esperar resposta: — Esta tralha voltará toda para Coimbra.

Afonso Henriques determinou que as bestas fossem recarregadas. Mandou de volta os guias e ajudantes da caravana de Dom Cardeal, com a preciosa carga, sob a guarda de Braganção e Espadeiro.

Ao dignitário eclesiástico, emissário papal, destituído de todos os bens e meios de viagem, abandonado no ermo, montado na sua besta com simples arreata, o rei gritou:

— E agora, Dom Cardeal de Roma, ide dizer ao Papa como eu sou hereje!

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 17 DE OUTUBRO DE 2003

CONTO # 248 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/06/2014
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