Quando o sol se for

Batem à porta. A mulher veio arrastando-se em suas chinelas de dentro da cozinha.

-Já vai! – Abriu a porta -... Mamãe?! – Assustou-se.

A senhora foi entrando. Lenço na cabeça, olhos fundos ,tristes.

-Onde estão Pedro e Vanessa? – Cega para outras coisas.

-Estão no quarto, mas... – Foi seguindo a mãe que se adentrou pelos corredores da enorme casa. O marido, na sala, apenas abaixou o jornal, tornou ler. A panela de pressão fumegava.

-Mas mamãe, o médico não disse que a senhora deveria descansar por estes dias depois das sessões?

-Eu me sinto bem obrigada... – Abriu a porta de um cômodo procurando as crianças, viu uma cama pequena desarrumada e um colchão de solteiro ao lado.

– Você e seu marido ainda não voltaram a dormir juntos.

A filha suspirou.

-Não, nós...

-Não foi uma pergunta. Vocês eram muito jovens, não souberam escolher direito um ao outro, quem amar, eu sei... – Olhando em volta.

A filha arregalou os olhos.

-Não é isso mamãe, nós nos amamos.

-Quem ama não ignora.

-Ele não me ignora.

A Senhora continuo seguindo o corredor, só que desta vez mais devagar.

-A não?

-Não - Disse a filha, indecisa de sua resposta.

-Então porque ele nem toca mais em você?

-Como a senhora sabe que ele não me toca.

-Eu percebi você um dia vai ser assim também, perceber as coisas, não é coisa da idade, é a vivencia, aprendi a pegar as coisas no ar. Eu percebi depois daquele dia em que eu vi vocês passando em frente a minha casa – Seu corpo vacilou, escorou-se de leve na parede.

-A senhora esta se sentindo bem? – A outra ignorou.

- Passaram em frente a minha casa e não pararam, por sinal. – Teve uma crise de tosse.

-A senhora devia estar em casa.

-Não... preciso levar meu netos para passear, eu prometi.

-Mais a senhora não está mais em condições de andar por Curitiba sozinha, é perigoso, e além do mais, Curitiba não é mais a mesma, não é seguro andar por essas ruas.

-Posso não estar... –Parou e olhou em volta, os quadros e as fotografias - Mas eu vou assim mesmo, eu prometi.

Vozes de crianças no final do corredor. Uma réstia de luz saia do cômodo adjacente. As duas mulheres foram aproximando-se devagar.

-Um solão desse lá fora e você deixa as crianças trancadas dentro do quarto com as janelas fechadas? É brincadeira...

-Elas podem pegar uma insolação.

-Eu sempre deixei você brincar no sol quando criança e você nunca teve insolação, não me venha com essa agora. Criança precisa de sol, precisa de vento no rosto, até mesmo de terra – Abriu a porta bem devagar.

-Vovó! –Gritaram as duas crianças ao ver a senhora, agarradas cada uma a um controle de vídeo game. Ela agachou-se e beijou os netos.

-A vovó vai levar vocês dois num lugar muito especial! –Disse ela, com voz muito materna.

-Onde? – Perguntaram os dois juntos.

-Num jardim.

-Jardim? O que é um jardim vovó. – Perguntou o menino. A Senhora olhou para filha com desdém. Voltou-se para as crianças:

-É um lugar mágico, vocês verão.

A duas crianças largaram os controles, voltaram-se para a mãe:

-Podemos ir mamãe?

Ela tombou a cabeça, os braços cruzados, recostou-se na porta.

-Não sei, disse ela, o outro assunto ainda não se fechou em sua cabeça.

Vanessa, a mais novinha, fez cara de choro, a mãe acabou cedendo.

-Eu deixo, mas que quero os dois arrumadinhos.

Já no carro, as duas crianças sentadas no banco de trás.

-Mamãe, tem certeza que não quer que César vá dirigindo? – Escorada na janela do carro.

-Imagine, seu marido deve estar ocupadíssimo lendo aquele jornal dele, que, aliás, estava de ponta cabeça. Mas não se preocupe minha filha, tenho meus 70 anos mais ainda estou jovem.

-Se não fosse o câncer não é mamãe – Disse a filha, em tom de riso.

-Não diga essa palavra – Tornou-se mais séria, olhando para frente.

-Me perdoe mamãe, mas é que a senhora não está realmente me condi...

-Não me venha com essa agora, estou muito bem obrigada. –Ligou o carro e partiu com as crianças antes que a outra continuasse a falar. A filha ficou a olhar a mãe se distanciar com o carro, ficando cada vez mais longe, mais inteligível, cada vez mais distante. Finalmente o carro dobrou a esquina da casa com muro de trepadeiras. Ela chutou uma sacola que a vizinha jogou do seu lado da calçada e entrou, batendo o portão com força. A vizinha que a observava de dentro de casa pela janela saiu e tornou a colocar a sacola de lixo no lugar de antes.

Pararam em um sinaleiro, a senhora olha pelo retrovisor, vê as crianças fascinadas com o palhaço fazendo malabarismo na faixa de pedestres, que derrubando os malabares, disfarçando com uma dança espalhafatosa indo na direção dos objetos coloridos espalhados pela faixa de pedestres.

-Estamos chegando meus anjinhos.

Ela estaciona o carro. Vê a estrutura de vidro do Jardim Botânico, um filme passa dentro da sua cabeça: A mãe, o pai, os irmão correndo por entre as plantas floridas. O pátio cheio de ipês coloridos, um tapete encantado. Solta as crianças do cinto de segurança. Aquelas tardes, sempre ensolaradas, quase um milagre isso em Curitiba, os doces que a mãe preparava, o cheiro parecia estar lá, esperando.

-Dê as mãos para mim, vamos atravessar juntos.

-Vovó, porque a senhora usa esse lenço? - Perguntou Pedro.

O vento soprou-lhe o coração, sentiu frio, o que responder a uma criança que ainda não conheceu o mundo e suas quimeras, dizer o que é morrer aos poucos, como? Não podia, até porque uma criança da idade de Pedro não sabe o sentido mais amplo de morrer, o mais subjetivo a criança até compreende: Morrer, dormir eternamente; porém o sentido pleno da palavra é muito mais complexo do que se pensa, muito mais etéreo.

-A vovó acha bonito usar lenços – Foi a única desculpa que encontrou. Sabia que quando mais velho Pedro entenderia certamente o que é a morte. Até então não se pode fazer com que uma criança entenda o que ela é.

-Será que um dia a mamãe irá usar um também?

-Espero que não, mas eu acho que sim.

-Eu acho que ela tem que ficar bonita para o papai.

-A é? Por que diz isso?

-Por que ele não acha ela bonita, e eu não quero outra mãe.

-Como assim? Ele disse que vai arranjar outra mãe para vocês?

-Sim, ele disse para um amigo que ela não se arruma, por isso ele vai arranjar uma se arruma – Consultou a irmãzinha –Como é a palavra que ele disse mesmo?

-Eu não me lembro. - Tapando o sol com a mãozinha branca.

-Alguma coisa a ver com fogo vovó.

-Misericórdia – Disse ela, baixo ao vento.

-Onde estamos indo vovó. –Perguntou à pequena.

-Estamos indo num lugar especial, onde meu pai me levava quando eu tinha a idade de vocês dois. Nós vínhamos aqui toda semana para visitar essas flores e essas árvores, nunca faltamos a uma visita sequer.

Foram entrando pela entrada principal do jardim. Pedro e Vanessa queriam correr junto de outras crianças que passaram correndo por eles.

-Podemos vovó?

-Mais é claro que podem agora vocês estão livres. Podem ir, eu vou me sentar ali naquela arvore.

Enquanto as crianças corriam junto das outras, ela foi até o gramado onde as pessoas deitam com seus lençóis para curtir a tarde lanchando e conversando. Ela foi na direção de uma arvore enorme e muito velha. Ficou frente a frente com ela.

-Você ainda está aí, inteirona, e eu... coitada de mim, estou velha... – Tocou no tronco da velha amiga de infância. – Faz tempo que eu não venho te ver, mais agora eu estou aqui não é.

Sentou-se. As crianças acenaram para ela.

-Vovó!

Ela retribuía com beijos jogados ao vento. As flores pareciam cantar de tanta alegria dentro da estufa. Curitiba é uma cidade feliz, pessoas passeiam pelos seus jardins, sentem-se em casa, sentem-se num verdadeiro lar.

A tarde caia lentamente, o vento parava de soprar e o frio começava. Uma folha seca caiu da árvore caiu no colo da senhora, que suspirou e fechou os olhos devagar. Vanessa aproximou-se.

-Vovó, vovó, o Pedro e eu achamos um sapo – Aproximou-se – Vovó...?

Pedro aproximou-se com o sapo nas mãos.

-Não a incomode, ela está descansando. Vamos brincar mais, antes que o sol se vá e ela acorde.

11/07/2013

Bego
Enviado por Bego em 22/06/2014
Reeditado em 02/05/2016
Código do texto: T4854343
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