246-A CIDADE DOS MISTÉRIOS -Mistério

— Nesta cidade tem muita coisa misteriosa. Muitos segredos. — Boanerges Bicalho toma ares de autoridade, falando como professor. Dirige-se aos companheiros de prosa fiada, reunidos diariamente na Farmácia Central. — Este sumiço do cobrador de promissórias é mais um mistério que vem juntar-se a tantos outros.

— É, mas o delegado Spinoza vai solucionar este logo, logo.

— Há! Duvi-de-o-dó. Ainda mais se tratando de Calimério Carranca.

— Olha o nome! Cuidado, Genival.

Comentam o mistério mais recente de Sapetaperê, cuja trama começou há muitos anos atrás, quando a cidade ainda era um vilarejo e todos aqueles senhores, de cabeças brancas ou carecas, ainda vestiam calças curtas. Começou bem antes, e muito longe dali. Pois era um dos mistérios mais antigos do local a origem da fortuna de Calimério Camargo Maciel, mais conhecido por Calimério Carranca.

Da vida pregressa do mais misterioso personagem da cidade, todos tinham conhecimento. O homem tinha sido, na mocidade, um brigão, arruaceiro, amigo das garrafas de branquinha, do carteado e das putas. Vivia aprontando confusão na zona de meretrício, até que um dia, numa briga inesquecível, causou a morte de um dos fregueses da Eduína Polaca.

Foragido, perseguido pela polícia, tornou-se um matador de aluguel. Ficou conhecido em todo o estado e até além, para as bandas de Goiás, pela Bahia e até no Espírito Santo. Onde quer que houvesse um serviço do tipo, sabia-se, o bandido era o responsável. A ele eram imputadas dezenas de mortes. Nunca foi apanhado e as provas de seus crimes inexistiam.

— O povo aumenta, mas num inventa. Carranca tem pra mais de vinte mortes no cangote. — Genival não tinha papas na língua, era atrevido e sabia de todos os assassinatos nos quais Calimério estaria envolvido.

— Olha como fala. O homem não gosta do “tratamento”.

Carranca foi o apelido apropriado que adquiriu, com a fama. Era um homem grande, forte, de má catadura. Sobrancelhas espessas sobre olhos enormes, negros. Bigode desabando sobre os cantos da boca, nariz achatado. Boca cruel, o lábio inferior estendido, numa expressão de desdém e escárnio. Nunca ninguém o viu sorrindo. Calimério Carranca era o terror de quantos o conheciam, e, mais ainda, dos que sabiam de sua existência só por ouvir contar.

— O bandido tem proteção do capeta. — Licurgo Praxedes se persignava ao dizer o nome que não deveria ser dito. — Só pode ser. Fazer tanta desgraça e nunca ser pego.

Mais de trinta anos decorreram desde o crime na casa da Polaca, quando Calimério evadiu-se, e sua volta a Sapetaperê. Aconteceu quando morreu o velho Coronel Marcondes Andrade e a viúva, sem filho, herdeira única, quis vender o imóvel.

A Fazenda das Paineiras tinha para mais de trezentos alqueires mineiros. Além da extensão considerável, havia um óbice adicional.

— Só vendo de porteira fechada. — A viúva respondia aos que perguntavam sobre as condições da venda, preço, essas coisas. Era uma venda quase que impossível, pois a condição “de porteira fechada” incluía no negócio mil e duzentas cabeças de gado de cria, uma olaria que funcionava na beira do Ribeirão da Tabatinga, além de muitas benfeitorias, mais de cinqüenta eqüinos de serviços, enfim, um inventário difícil de ser avaliado, e ainda mais difícil de ser negociado, pelo seu vultuoso valor.

Mas, quando alguém quer vender, sempre encontra outro que quer comprar. E assim foi com a herança do Coronel Marcondes. Para grande surpresa de todos, surgiram os boatos, confirmados em seguida, segundo os quais o pretendente à compra era, nada mais nada menos, do que o temível Calimério Carranca.

O que jamais se soube na cidade foi a origem da fortuna necessária à compra do importante patrimônio, o mais valioso, aliás, da região. O fato é que a proposta foi feita por um emissário, o negócio foi fechado por um preposto e a viúva recebeu em dinheiro de contado, em grandes notas de quinhentos mil réis, a importância fabulosa de duzentos mil contos de réis.

Calimério instalou-se na Fazenda Paineiras sem alarde. A remissão de seu passado famoso foi automática. Quem seria capaz de atribuir a tão importante proprietário um passado tão tenebroso? Não tendo família, passou a residir na sede, sozinho, servido por meia dúzia de empregados e empregadas. E passou a freqüentar a cidade, não só para fazer seus negócios, como, principalmente, para jogar.

Começou jogando na roda de carteado que funcionava todas as noites nos fundos do Bar do Zé Birita. Depois, foi aparecendo no carteado do Clube Social. Duas, três vezes por semana, a princípio. Admitido como sócio, dentro de pouco tempo era famoso por seus lances.

Gostava de jogar e era um jogador atirado, fazendo grandes apostas. Nos ganhos, recebia o que o perdedor oferecesse: relógios antigos, lotes e casas na cidade, e documentos (promissórias, principalmente). Apostava esses ganhos e quando os perdia, não se incomodava muito. Por vezes, passava para a frente, endossando títulos que recebera na jogatina. Havia confiança mútua entre os companheiros de baralho.

Os fazendeiros estavam se recuperando da grande seca de 1922, quando chegou à cidade uma figura misteriosa. Habitante do sul do país, gaúcho de falar alto, com a cuia de chimarrão sempre o seu lado, faca atravessada na guaiaca e chapelão quebrado na testa. Bombachas largas e botas brilhantes completavam a elegância do sujeito.

Aquiles Melgaço ficou em Sapetaperê uns seis meses. Sua aceitação entre os principais da cidade foi imediata, pois era um bom jogador. Dizia que queria comprar umas terras, mas jamais visitou o interior do município. Seu negócio era o jogo. Ganhou pequenas fortunas dos jogadores locais. Para as mãos do gaúcho foram muitos contos de réis dos companheiros de carteado. Calimério foi um dos maiores perdedores. Além de dinheiro vivo, vários títulos, notas promissórias, escrituras de imóveis, passaram de Calimério para Melgaço.

O gaúcho, ao deixar a cidade e os companheiros, deixou também boas lembranças. Foi-se e nunca mais deu notícias. Passados alguns anos da estada de Melgaço, eis que chega à cidade um outro visitante do Sul, procurando por Calimério Maciel Camargo. Era portador de diversas notas promissórias endossadas por Calimério, emitidas por Maneco Silveira, falecido há coisa de três anos. Vinha cobrar de Calimério as dívidas do carteado.

— Ah! O senhor se refere ao Calimério Carranca — foi a primeira informação que obteve do porteiro do hotel onde se hospedou. — Ele fica jogando todas as tardes no Clube. Depois das cinco, e até de madrugada, é lá que o senhor encontra o Carranca. — O que o porteiro não explicou é que Calimério não gostava nem um pouquinho de ser chamado de “Carranca”.

Na tarde quente de novembro, lá foi o cobrador ao Clube Social, onde se reuniam os tradicionais freqüentadores da roda do carteado. Encontrou os jogadores antes do início de uma tarde de jogatina. Pela informação do porteiro, logo identificou o seu devedor. Após pedir licença, dirigiu-se ao sisudo jogador.

— Ainda que mal lhe pergunte, o sr. é o seu Calimério Carranca?

O indagado não fez questão de esconder a indignação. Falando devagar, mas alto e em bom tom:

— O Senhor está falando com CALIMÉRIO MACIEL CAMARGO. — Calimério Carranca está nos quintos dos infernos, que é pra onde vou lhe mandar, se ficar aí parado com essa cara de boi sonso. — E levou a mão direita à cintura, do lado esquerdo, debaixo do enorme paletó. Que voltou com o faiscar de aço de um revólver prateado.

O cobrador tentou contemporizar

— Calma, seu Calimério...

O primeiro tiro fez voar o chapéu. Reagindo com esperteza, o cobrador fugiu. Correu pelo corredor do clube e ganhou a rua. Ouviu outro tiro. Disparou na direção do hotel, onde chegou esbaforido.

— Filho da puta, vou lhe mostrar quem sou. — Correu atrás do estranho. Ao chegar ao hotel, foi recebido pelo gerente, já inteirado do que se passava.

— Calma, seu Calimério. O homem não falou por mal. Ele não sabia...

— Vai ficar sabendo agora. — Devolveu o revólver à cintura. — Quem é esse idiota? Pra que está me procurando?

— Me falou que está com uns títulos do finado Maneco Silveira, que o senhor passou pra frente, numa partida de carteado.

— Ah, já sei do que se trata. — Acalmado, determina ao gerente: — Manda ele me procurar amanhã cedo, na fazenda. Vou acertar com ele esse negócio das promissórias.

O cobrador saiu do hotel de manhãzinha, com a recomendação do porteiro:

— Nunca mais o chame de Carranca, ele fica doido com esse apelido.

— Devia ter me avisado quando cheguei. A fazenda fica longe?

— Cerca de seis léguas. Deve ir de carro. Com essa chuvarada, a estrada tá muito ruim.

Pegou o carro de praça de Juca Brioso.

— Vamos levar coisa de uma hora pra chegar na fazenda Carranca. — Informou o dono do carro, ao ajustarem a corrida.

Chegaram pelas dez horas. Hora do almoço de Calimério. Convidou o cobrador para entrar e despachou o motorista:

— Temos muita coisa pra acertar, deixa que de tarde levo ele pra cidade.

À tarde, o senhor Calimério apareceu sozinho no Clube. Do cobrador de promissórias, nem sinal. Ninguém se atreveu a perguntar ao feroz fazendeiro sobre o paradeiro do seu visitante da manhã.

O cobrador não apareceu no hotel naquela tarde, para onde deveria ter voltado. Não apareceu naquela tarde nem no dia seguinte, nem em qualquer outro dia. Nunca mais apareceu.

— Esta cidade tem muito mistério pro meu gosto. — Comentou Boanerges Bicalho, ao se despedir dos companheiros de papo fiado da farmácia.

ANTONIO ROQUE GOBBO ESCREVEU EM 2 DE OUTUBRO DE 2003

CONTO # 246 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/06/2014
Código do texto: T4852639
Classificação de conteúdo: seguro