244-A RUA DA CONFUSÃO-Politicalha

A Rua Riachuelo, na pequena cidade de Sapetaperê, era uma das mais curtas. Mais curta e muito menos importante era a Rua do Conegundes. Ambas seriam uma só via, não fosse a separá-las os trilhos da estrada de ferro que, cortando a cidade pelo meio, impedia inapelavelmente o trânsito direto entre muitas ruas.

Veio o progresso, as rodovias chegaram e a ferrovia foi desativada. Os trilhos foram retirados e demoliram-se os muros que cercavam a área de trânsito dos comboios férreos. As duas curtas ruas passaram a constituir uma única artéria urbana. Com dois nomes bem distintos.

Avelino Conegundes fora um dos primeiros habitantes de Sapetaperê. Tinha sido tropeiro, dono de uma vintena de burros, bestas e mulas, com auxílio das quais exercia suas atividades. Até que elegeu Sapetaperê, apenas uma vila, na época dessa escolha, para se estabelecer. Vendeu a tropa e comprou uma casinha no fim da rua que nem tinha nome, e abriu as duas portas de sua vendinha. E por aí ficou. Não cresceu nem diminuiu. Foi um comerciante que conseguiu sobreviver, enquanto muitos outros, mais dinâmicos e atirados, prosperaram, fizeram fortuna e se tornaram nomes de ruas. Conegundes faleceu em 1850, sem deixar herdeiros, pois era solteiro. Seu nome, entretanto, ficou indelevelmente ligado à cidade. A rua curta, de apenas três quarteirões e meia dúzia de casas, ficou sendo conhecida como a Rua do Conegundes.

Zé Prequeté era um pobre coitado, uma dessas figuras comuns em qualquer cidade do interior, nos meados do século vinte. Vivia de limpar quintais, dar pequenos recados e coisas assim. Solícito e gentil, era querido da população. Acompanhava as pessoas que iam fazer piqueniques à beira do Rio da Paca Branca, carregando cestos com matulas e caminhando na frente, batendo a trilha, a fim de afugentar cobras e outros bichos. No sempre-lembrado piquenique promovido por Dona Ludovina com seus alunos de piano, Zé Prequeté consagrou-se o herói da cidade, ao salvar de afogamento a jovem Lucinda, que, levada pela correnteza, engolindo água, nem gritara por socorro. Salvara-a o Zé, que estava rio abaixo e viu quando a moça se debatia, arrastada pelas águas. Atirou-se e, para sua própria surpresa, nadou na direção da moça. Trouxe-a de volta à margem, onde diversos colegas ajudaram-no. A moça estava viva e Zé Prequeté tornou-se o grande nome na cidade, pelo menos por aqueles tempos. Isto foi pelos idos de 1940, e seu feito ainda era lembrado, principalmente pelos jovens estudantes que participaram do convescote.

O Vereador Hermógenes Xavier era um homem de grande visão política. Estava sempre farejando alguma coisa, uma novidade, para fazer um projeto de lei e apresentá-lo aos seus pares. Nessa ânsia de aparecer a qualquer preço, descuidava dos verdadeiros problemas da cidade e do município, e detinha-se em pequenas questões, fatos sem importância ou coisas que, por vezes, nada tinham a ver com Sapetaperê.

Quando as duas ruas se uniram, Xavier foi o primeiro a se dar conta e levou a questão para a edilidade.

— Temos um problema que compete a nós, vereadores, resolver. É o caso das ruas Riachuelo e Conegundes, no bairro da Lapinha. Agora, não são mais duas ruas, mas uma única. Uma rua com dois nomes. Eis a questão. Devemos nos deter na problemática que é para a cidade a existência de uma rua bi-nominal. E para os moradores, então, a questão é transcendental. Quem mora na Rua Riachuelo? Quem mora na Rua do Conegundes?

Antes de continuar, foi aparteado pelo seu colega, Flávio Líbero , advogado do fórum, mais conhecido por suas poesias, pelo seu espírito liberal e pela mordacidade de seu palavreado.

— Peço um aparte, ilustre colega. Não se vê aí nenhuma incompatibilidade. É deixar como está, todo mundo já sabe onde mora, qual é seu próprio endereço. Quem mora na Rua Riachuelo não irá se perder e procurar sua casa na Rua do Conegundes.

Outros apartes surgiram. A sessão da câmara esquentou. Acostumados apenas a aprovarem as mensagens do prefeito ou uma que outra lei de elogio a autoridades ou pessoas gratas, uma discussão, por mais tola que fosse, despertava os edis da sonolência crônica.

— Os senhores hão de concordar que nenhum dos dois nomes tem qualquer significado para nossa cidade. A batalha da guerra do Paraguai nada tem a ver com Sapetaperê. E quem foi Conegundes? Proponho, pois, a unificação das ruas sob uma única denominação.

— E qual será o nome que Vossa Excelência tem para essas ruas? — A pergunta foi do Presidente da Câmara.

— Devemos chamá-la de Rua Doutor Getúlio Vargas. Uma homenagem ao grande homem que governou com sabedoria este país por mais de quinze anos.

O vereador Flávio Líbero pulou de sua cadeira ao ouvir a proposta de Hermógenes.

— Perdão, excelência! Com todo o respeito, discordo de sua proposta. Todos sabemos que Getúlio foi um ditador e que aqui todos nós sofremos muito — principalmente a colônia italiana — por conta de seus desmandos.

Aquela sessão estava destinada a ser histórica nos anais da câmara de vereadores. Uma cisão se estabeleceu entre os representantes do povo. Um princípio de tumulto foi contido a custo pelo presidente.

— E qual o nome que Vossa Excelência, Doutor Flávio, sugeriria?

Apesar de ser tomado de surpresa, o edil não recua.

— Bem, se for para mudar, sugiro...que seja... Rua Zé Prequeté!

— Zé Prequeté! Que idéia mais maluca. Quem foi esse tal? Se é que existiu. — O sarcasmo de Hermógenes Xavier era visível e provocador.

O doutor Flávio Líbero sabia do incidente. Aliás, fora um dos participantes. Mas antes de dar aos colegas a biografia de Zé Prequeté, alfinetou o colega.

— O senhor desconhece, naturalmente, quem foi Zé Prequeté. Como desconhece muito ou quase tudo de nossa cidade. Acho que desconhece mesmo o significado de Sapetaperê, o nome da nossa cidade.

Hermógenes viu a armadilha preparada. Era sabido de todos os habitantes que Sapetaperê, era, no linguajar dos antigos habitantes indígenas, “o lugar ermo e distante”. E que algumas cidades da vizinhança diziam ser “o lugar onde o Judas perdeu as botas”, ou, mais aviltante ainda, como diziam em São Roque da Serra, “o cu do mundo”. Mas ele não ia cair nessa, não.

— Isso não vem ao caso. Estamos discutindo o novo nome para as ruas.

— Eu estou discutindo a incapacidade de Vossa Excelência em batizar qualquer logradouro público, pois desconhece nossa história e nossa cultura. — A seguir, fez, para seus pares e para os gatos pingados que se encontravam no recinto, uma breve biografia de Zé Prequeté e de seu ato de heroísmo. Terminou dramaticamente:

— Pois saiba o caro colega Dr. Hermógenes que, não fora a intervenção de Zé Prequeté, hoje não teríamos entre nós a presença marcante de dona Lucinda Libânio, a ilustre diretora do Grupo Escolar Jorge Gazzotti, que foi salva, naquela memorável tarde, pelo herói esquecido. Insisto que, se for para mudar, coloque-se a questão sob plebiscito. Que o povo decida se devem ser mudados os nomes, e. se for o caso, qual o nome que melhor convier.

Não foi preciso a consulta ao povo. Os vereadores concordaram que a rua devia, sim, ser unificada. E que o nome mais apropriado seria mesmo Rua Zé Prequeté.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 24 DE SETEMBRO DE 2003

CONTO # 244 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/06/2014
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