Colheita

Hora de partir. Em minha frente: a porta. Com a luz da manhã entrando por ela. Dos lados: caixas e móveis desmontados. Um corredor de momentos. Toda matéria que nos pertence irá conosco. Eu, particularmente, não me desfiz de nada. Atrás: a cadeira que foi do meu avô, a qual acabo de me levantar. Hora de partir. Me levanto, como se meus músculos estivessem cimentados e neste movimento tivesse que ser aplicado toda força sobre-humana para alcançar meu objetivo: chegar até a porta. O não querer cimenta meus músculos. A dor cola meus pés no chão e o medo estica a distância que existe entre eu e a porta, meu destino.

A dor. A dor de ter que deixar aqui. Este pequeno ponto no meio do globo. Mas o ponto que é meu. Ou era meu. Foi meu e já não é mais. Ir dói. Dói no fundo das vísceras e não sei de onde vem a força que me faz andar. Como se meu corpo entrasse em estado de hibernação para consumir a reserva de energia que este possui. É esta energia que me permite mover as pernas. Uma após a outra. Cimentada e enraizada. Quem dera entrasse em estado de hibernação. Assim não teria que estar consciente e viver esta ida.

Minha mãe, mãe de um único filho de dezesseis. Ela é o motivo de partirmos. Seria injusto dizer que o motivo não é bom. Uma nova vida. Ascensão. Vou. Somente com minha autoluta me impedindo. Meu lado filho: orgulhoso. Meu lado ego: decepcionado. Apegado à casa que cresci. Apegado à cidade. A cada pedra da rua, seus paralelepípedos e à grama que nasce entre eles. Às árvores que são miúdas, mas estão presentes no entorno de cada esquina. Na arquitetura rústica e interiorana de cidade simples que é um simples ponto no globo. Um ponto tão pequeno que nos mapas aparecem apenas as cidades vizinhas, que são pontos pequenos em pouco maiores.

Caminho. Um pé depois do outro. Pelo corredor de caixas empilhadas. Elas estão chorando. Implorando para não irem. Na sala. Tanta vida vivi naquele quadrado chamado sala. Me vem as festas de família, visitas de colegas. Cada cômodo: a cozinha. Caminho. A varanda. Caminho. O quintal. Caminho. Meu quarto. Uma facada. Meu quarto que nunca foi de outro. Quantas horas da minha existência passei lá? Quanta história. Sinto minha pele ser arrancada. E o sangue escorrer.

Um dia acordei. Era domingo. Levantei e não arrumei a cama. Troquei o pijama e saí de casa. Encontrei com meus primos e amigos, na praça, e fomos nadar no rio. Isso não faz muito tempo, menos de dois anos. No rio, nadamos e pescamos. Peixes que muitas vezes era nosso almoço ou aperitivos que comíamos frito, junto com a cerveja, na casa de quem os pais não estivesse. Naquele domingo, um grupo de garotas nos viu nadar. Ela estava entre elas. O sorriso e os olhos que lhe pertenciam. Saiu às pressas. Saí atas. Entre as árvores. Seguia o riso. A corrida sobre as folhas secas. Entre as pedras. Estava sozinha. Alcancei seus pulsos. Seu sorriso. Seu cheiro de banho tomado. Sua pele. Seu beijo. Naqueles beijos: de garoto um novo homem e um novo rio para nadar.

Caminho. Após o outro, um pé. E mais um pé. O quarto. A sala. As rumas. A praça. O rio. O novo rio.

Na escola. A chuva havia caído, encharcando a lama e no pátio formando poças d’água. Devia ser uma quarta. Hora do intervalo. Pega-pega. Corre. Esquiva. Risos. Suor escorrendo nas têmporas. Corre. Pega. Está com você! E corre. Pula o banco do pátio. Empurra colega e inspetor grita para parar de correr. Mas não para e continua. Me tornei o alvo do pegador. Corro, Corre atrás de mim. Entro no pátio liso. Erro. As poças d’água. Ainda sou o alvo. A jaqueta do uniforme aberta caiu para trás das minhas costas. Corro. Erro. Pisei na poça d’água com o chão escorregadio. Escorrego. Caio de frente. A jaqueta prendeu meus braços atrás nas minhas costas. Caio. Caio! Senti meu nariz se partindo e o sangue quente sair pelas narinas.

Os episódios são tantos que não posso me recordar de todos, mas muitos passam pela minha memória. Enquanto caminho, arrancando as raízes. Deixando a terra que me criou. Dói. Me esperam lá no carro. Foram tantas coisas. Momentos engraçados. Momentos de raiva. Momentos alegres. Momentos únicos.

A dúvida. O medo. O medo daquilo que não conheço. Este lugar tem ainda uma última coisa para me ensinar: coragem. Aceitar as mudanças e vivê-las. Dói. Uma nova página. Um novo capítulo. Um novo livro. Dói. A terra me fortaleceu, me criou e me fez como eu sou. Forte para me manter vivo e frutificar em outro lugar. Em uma nova terra.

Hora de partir. Um pé após o outro. Um pé. O outro. E num pé após o outro alcanço meu objetivo: a porta. Paro. O ponto já não é meu. Foi meu e já não é mais. Mas os momentos engraçados, de raiva, alegres e únicos eu levarei, embrulhados naquelas caixas, guardados e me fazendo lembrar de quem eu sou. Fortalecido e pronto para um novo homem. Um novo rio.

Respiro. Saio. E fecho a porta. Hora de partir.

Anderson Gorgone
Enviado por Anderson Gorgone em 20/06/2014
Código do texto: T4851706
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