240-DRAMA DE AMOR NO CIRCO-Bom Humor
Antes do circo chegar, a garotada já sabia. A notícia corria célere. Na semana seguinte era certo: o circo chegava. Uma caravana de oito ou dez veículos vinha geralmente de Ribeirão Preto ou de Mococa. De longe se podia ver a poeira levantada pelos veículos com toda a tralha e os artistas. Adentrando-se pelo Alto da Caixa-D'água, descia pela avenida principal e parava no Largo do Jaraguá, o local tradicional para a armação.
Não importando a hora do dia em que a caravana fizesse a entrada triunfal, logo se reunia um ror de garotos, que acompanhava os carros de cores berrantes pelo percurso na cidade.
A meninada — garotos de cinco a doze, treze anos, pés no chão, calças curtas e cabelos desgrenhados — zanzava entre os hábeis trabalhadores que armavam a lona, levantavam os tapumes para separar as jaulas dos animais, tratavam das feras e dos bichos-artistas. Em todos os lugares estavam os garotos, querendo ajudar e atrapalhando sem querer. Sempre sobravam tarefas para eles: carregar baldes d’água para o elefante , trazer capim, abundante nas adjacências, para a cama dos animais, lavar os carros e as jaulas, e distribuir os programas. Os anúncios volantes já vinham impressos, o pessoal do circo era organizado. De forma que, lá pelas três da tarde, havia o loteamento dos milhares de programas entre os garotos mais espertos, que saíam a distribuí-los pela cidade. Cada garoto pela rua ou bairro que mais conhecia.
No verão de 1945 chegou o Circo Irmãos Sarraceni. Muito mais importante que os anteriores, a tralha chegou em oito grandes caminhões, além de três camionetas que puxavam enormes jaulas. Os artistas e o diretor vinham na frente, em um automóvel novo e uma jardineira — assim chamados os pequenos ônibus multicoloridos — com as cores do circo. .
A grandiosidade daquele circo ficou patente quando o toldo foi erguido. Antes das duas horas, já estava armada a gigantesca cobertura: um único toldo suportado por DOIS mastros e amarrado, nas beiradas, por fortes cordas e cabos de aço em estacas de metal. Muitos bichos amestrados. Um leão, uma girafa, alguns macacos, cada qual em sua jaula. Cercava as jaulas um tapume separado, de tal forma que para visitar os animais no “zoológico” era cobrado um ingresso. Tudo muito organizado e eficiente.
Este circo tinha até a própria banda de música. Composta por três ou quatro instrumentistas, foi reforçada pela contratação dos músicos da “Banda 21 de Abril”, da cidade, que eram remunerados com bilhetes de ingresso para todas as noites de espetáculos.
O desfile de apresentação foi de arrasar. Aconteceu no mesmo dia da chegada. Se eram de pasmar a velocidade e a eficiência com que o circo fora armado pela própria troupe, a rapidez com que se aprontavam para o desfile era mais que impressionante. Aí pelas quatro horas, saíam os carros, agora limpos da poeira, todos os artistas trajando as roupas que usariam nos espetáculos e os animais escovados, alimentados, bonitos de se ver.
E para divulgação do espetáculo, além dos panfletos distribuídos pelos meninos, tinha um palhaço manco que saía à tardinha a apregoar as qualidades do circo e os detalhes do espetáculo da noite.
Era o Zé-Pé-de-Chinelo. Como todo palhaço, tinha a grande boca risonha ocupando meia cara, grandes orelhas feitas de solas de sapato, a imensa gravata borboleta, um colete cor-de- rosa, calças larguíssimas, de seda dourada. E nos pés usava um par de sapatos de quase meio metro. Sua andadura, em função dos enormes calçados, era, por si só, de uma comicidade indescritível.
A fim de ampliar a voz, no anúncio dos espetáculos, portava uma corneta de gramofone, nas cores vermelho e branco. O bizarro ampliador sonoro levava a voz do palhaço por sobre o casario, ultrapassando os confins da cidade e estendendo-se pelos campos. Nas ruas estreitas ou perto dos sobrados e das igrejas, o eco trazia de volta as palavras, difundindo o som em todas as direções.
O Circo Irmãos Sarraceno tinha com atrativo especial a parte teatral: cada noite, uma peça era levada à cena. O pequeno tablado e a arena eram transformados em palco onde dramas e comédias faziam os espectadores vibrar de alegria ou emudecer em contidas (ou explícitas) lágrimas.
Naquela tarde saiu, pois, Zé-Pé-de-Chinelo a apregoar o drama que prometia lágrimas, muita tristeza e — quem sabe? — um final feliz. O palhaço andava por toda a cidade, parando nas esquinas, nas praças, nos locais onde a sua voz, ampliada pela vistosa corneta, era disseminada ao infinito.
E gritava a plenos pulmões:
HOJE!
CIRCO IRMÃOS SARRACENI.
NÃO PERCÃO!
GRANDIOSO ESPETÁCULO.
TRAPEZISTAS E MALABARISTAS.
O GRANDE DESAFIO DO LEÃO AFRICANO!
ANIMAIS AMESTRADOS DA AFRICA E DA CHINA!
E COMPLETANDO O ESPETÁCULO,
O GRANDE DRAMA DE AMOR E SOFRIMENTO EM TRÊS ATOS INTITULADO
“A MORIBUNDA”.
A ênfase que dava a cada parte do espetáculo era culminada com a pronúncia do título da peça. Falava pausadamente, destacando as sílabas.
— A-MOR-Í-BUN-DA.
A palavra decompunha-se, se espalhava pelos ares e voltava, o eco reforçando a mensagem:
— A...MOR...ÍÍÍÍÍÍÍ....BUN....DAAA
Naquela noite, o circo lotou, não teve lugar suficiente para acolher toda a multidão que queria assistir ao grande drama de amor e sofrimento.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE, 9 DE SETEMBRO DE 2003
CONTO # 240 DA SERIE MILISTÓRIAS