239-A IGREJA NEGRA- Religião

A IGREJA NEGRA

Recém-chegado à pequena cidade de São Roque da Serra, o padre Hipólito fremiu num êxtase santo ao ver o quanto poderia fazer pela pequena comunidade. A Igreja Matriz era acanhada e antiga, as paredes de adobe e pau-a-pique. O telhado, de velhas telhas desgastadas e quebradas, tinha goteiras sem conta. O catecismo para as crianças da vila, a conversão dos negros, escravos e forros, seriam outras tarefas que se impunham. Tanta coisa pra fazer.

— Precisamos construir uma nova igreja. — A idéia, lançou-a em um dos seus primeiros sermões e dirigia-se principalmente aos fazendeiros da região. Quase todos com casa na cidade, mas pouco se incomodando com os problemas urbanos e muito menos com as necessidades da paróquia.

— Olha, padre, vossa reverência me desculpa a franqueza, mas a igreja de São Roque ainda tem muita serventia. É só consertar o reboco que caiu um pouco na fachada, e trocar algumas telhas, e tá tudo muito bom. — Juventino Mamede falava por si e por toda a comunidade. — Já pensou o despesão que vai dar? Derrubar esta igreja e construir outra!? Melhor reformar essa aí.

Os fazendeiros não estavam motivados para o assunto nem interessados em fazer doações. Corria o ano de 1870, os tempos eram de vacas magras. A riqueza da região era o café com leite.O café estava caindo de preço e o rebanho estava reduzido, em função das grandes requisições do Imperador para a guerra do Paraguai. O fim da escravidão negra já era motivo de discursos de políticos influentes em São Paulo e na Corte. Falava-se em libertar os negros, assunto que os grandes proprietários rurais viam com temor, ainda que não acreditassem em tal absurdo. Assim, também não teve boa repercussão o trabalho missionário iniciado pelo padre com os escravos. Ninguém falou diretamente com o pároco, mas entre os ruralistas havia um consenso.

— Esses negros tão precisando é de mais castigo. Não bastasse a preguiça, natural desses macacos, agora temos de ir atrás dos fugitivos. Tão se reunindo em bandos, escondidos nas lapas e nos socavões. — Falavam dos pretos que fugiam e que se organizavam em quilombos. — A religião pra esses vadios é a chibata e o tronco.

— Pois nas minhas terras o padre não entra, não. Essas ladainhas só servem para encher as cabeças dos negros de bobagens.

Não demoraram nem seis meses e o Padre Hipólito viu frustrados os seus planos principais na administração da paróquia. Obstinado, imaginou outros meios de aplicar seu vigor e dinamismo a serviço da Igreja e de Deus. Teve a idéia de construir outra igreja com a ajuda dos escravos. Havia um bom numero de ex-escravos, negros que haviam combatido na guerra e que foram, por isso, alforriados. Através deles, levou a idéia às senzalas: os escravos teriam a sua igreja, já que os brancos não queriam ter uma nova. Os escravos poderiam ajudar, trabalhando nos domingos, que era o dia já consagrado de folga para os homens da senzala. As escravas, entretanto, que tinham de atender os serviços caseiros da casa-grande, essas coitadas não tinham folga dia nenhum.

Padre Hipólito sabia que o dia da libertação dos escravos estava próximo. Acompanhava as notícias. A fase da escravidão negra estava chegando ao fim. Imigrantes europeus estavam chegando para substituir, pouco a pouco, a mão-de-obra escrava. Não teve um momento de vacilação em prometer aos negros que ajudassem na construção da igreja a liberdade no dia em que a nova igreja ficasse pronta.

— Padre Hipólito endoidou. — Os comentários corriam entre os fazendeiros, reunidos na mesa do truco, entre baforadas de cigarros de palha e goles de cachaça de seus próprios engenhos. — Vamos ver como é que ele vai cumprir a promessa. Libertar a pretaiada ! Tá louco de pedra.

— É. Ninguém vai tirar nosso direito. Afinal, quem é que comprou e quem é que mantém os negros alimentados e sadios?

— Devemos tomar cuidado. Os pretos podem ficar mais rebeldes. Quem sabe se esse trabalho nos domingos não vai facilitar a fuga deles?

O padre tinha a consciência tranqüila. Não estou mentindo nem enganando. A libertação vai chegar antes de terminar a igreja. Logo, eles serão libertados, ajudando ou não na construção. — O raciocínio do padre tinha fundamento.

Já que a Igreja de São Roque continuaria de pé, foi escolhido um outro local para ser erigida a nova igreja. Uma área descampada, na saída da cidade, onde começava a estrada que ia para o espraiado do rio Imbiá. Área devoluta, agregada ao patrimônio da cidade e cuja ocupação pelos trabalhadores voluntários ninguém contestou. A princípio eram poucos: alguns negros alforriados, ex-combatentes da Guerra do Paraguai. Logo o mutirão foi aumentando, os escravos apareceram em grande número, atraídos pela promessa verbal do padre Hipólito. A saída dos escravos, aos domingos, das senzalas e das fazendas, era uma regalia que eles vinham usufruindo há muito tempo e os fazendeiros não tiveram como proibir a ajuda na construção da Igreja.

Foi um trabalho como o das formiguinhas, que, escavando, carregando material, uma a uma, com persistência, conseguem construir grandes e intrincados labirintos subterrâneos. Com a diferença de que a construção da igreja crescia para o céu, semana após semana. O planejamento e a direção da obra eram todas do pároco. Não tinha estudos de engenheiro, mas não havia mistério em fazer alicerces e levantar paredes. Confiava na Providência Divina para a finalização da obra. O altar, os santos que iriam enfeitar os nichos, os bancos, os sinos, tudo isto chegaria no tempo certo. A vontade indômita do padre transformava-se, dia a dia, em obstinação na realização do seu grande sonho e desafio que propusera a si mesmo, aos negros e à comunidade da qual era pastor.

Dez anos durou a construção. Nem tudo foi tranqüilo nesse período. A escolha do padroeiro foi um dos motivos de pendenga entre o idealizador da obra e os trabalhadores. Os escravos queriam a imagem de São Benedito, protetor dos negros, por ter sido, o próprio santo, um negro, como aparecida em todas as representações. Padre Hipólito queria um santo branco (sem mencionar o detalhe), um santo mais “universal”, como dizia ao Hermógenes, o sacristão.

— Vai ser difícil convencer os negros de colocar outra imagem que não seja a do padroeiro deles.

— Qual o quê. Vou convencê-los, você verá. — Afirmou o padre.

Convencer, não convenceu. Mas impôs sua vontade ainda mais uma vez.

— Gente, a igreja foi construída principalmente aos domingos. Dia em que vocês, escravos, poderiam estar descansando. Mas vieram aqui, durante todos esses anos, trabalhar no dia santificado. Então, vamos homenagear o santo do dia, vamos dedicar nossa igreja a São Domingos! E na inauguração da nova igreja lá estava, com a cândida expressão característica de todas as imagens do panteão católico, os profundos olhos azuis, a imagem de São Domingos.

Padre Hipólito organizou uma grande festa para marcar a inauguração da Igreja de São Domingos. O sermão foi caprichado, estendido, com agradecimentos e loas a todos os que ajudaram na construção, principalmente os escravos.

Entretanto, alguma coisa estava faltando em toda aquela festança. Os negros notaram e os brancos também.

— Uai, o padre não falou nem uma vez na liberdade que tinha prometido aos escravos.

A população negra estava certa. Durante o período da construção, falava-se cada vez mais na libertação dos escravos. Leis haviam sido promulgadas que iriam desembocar, em algum lugar do futuro, na verdadeira liberdade para os negros. Os donos dos escravos já não tinham como comprar novos pretos e nas fazendas a mão-de-obra de imigrantes ia substituindo, lentamente, as necessidades das culturas e da pecuária.

— Promessa é promessa. — Muitos escravos queriam o cumprimento da palavra do padre. — A gente fez a nossa parte, agora ele tem que cumprir o trato.

Padre Hipólito se esquivou. Todos sabiam, agora, que ele jamais poderia cumprir o prometido. Os fazendeiros tinham razão.

— Deu com os burros n´água. Vamos ver como ele se sai dessa.

O assunto da libertação dos escravos entrou em compasso de espera. Alguns políticos, poucos, propugnavam a libertação já. A maioria deles, entretanto, tinha a certeza de que iria causar um caos econômico para o país. O Imperador, amante de viagens e de assuntos científicos, preferia visitar exposições internacionais a enfrentar os problemas domésticos de seu reinado.

Os negros não se conformaram, quando perceberam a esparrela na qual haviam sido envolvidos. Liderados por alguns alforriados, procuraram o padre, numa tarde de domingo no verão de 1882.

— Padre, já faz dois anos que a igreja de São Domingos está terminada e queremos o cumprimento da promessa. — Falava pelos negros o Tenente Laurindo, feroz combatente da guerra do Paraguai, que mostrava no diálogo com o padre a determinação de um líder.

— Meus filhos, tenham paciência!. O dia da libertação de vocês está próximo. Já conversei com políticos, é questão de pouco tempo.

— Quando construímos a igreja, vossa reverência não falou nada de políticos. Confiamos na palavra do reverendo. — Argumentou o velho Laurindo.

Não houve explicações que convencessem os negros. Reunidos ali no pátio defronte à igreja, ouviram, assustados, uma voz que veio do meio da multidão: era o Simeão Benzedor, velho escravo de carapinha totalmente branca, antigo pajé em sua tribo africana e que, diziam, tinha partes com o Cujo.

— Fomos enganados. Trabalhamos como burros de carga e agora nada recebemos em paga. Que voltem para o chão todos nossos dias de trabalho, de suor. Nenhuma reza que for feita nessa igreja vai valer. Vamo embora, gente, que aqui só tem desgraça e maldição.

Padre Hipólito não teve como responder à imprecação do bruxo velho. Os negros se dispersaram, deixando o sacerdote sozinho defronte à igreja que sonhara construir.

Na semana seguinte, a igreja foi incendiada. Dois negros foram vistos quando arrombaram a porta dos fundos. Um dos vizinhos foi relatar o arrombamento ao padre Hipólito. Mas, por mais presto que fosse o recado e rápida a vinda do sacerdote, houve tempo para que os assaltantes fizessem , dentro do templo, uma fogueira com bancos, a toalha do altar e panos da sacristia. O fogo lambeu as paredes, subiu pela torre, queimou o engradamento e o telhado veio abaixo. Os dois escravos morreram queimados, junto com a igreja.

— Que fogo pavoroso!

— Parece coisa do Tinhoso!

— Credo em Cruz ! — Gritavam alguns que tentaram,com baldes e gamelas, jogar água, na tentativa vã de combater o incêndio. Não houve como sufocar a fúria das chamas.

Restou uma única parede do templo de pé. Ficou ali, taipa queimada, símbolo de um sonho realizado à custa e enganos e falsa promessa. O local ficou sendo chamado de Igreja Negra. O templo jamais foi reerguido. Os fazendeiros não quiseram ajudar o padre, quando falou na reconstrução.

Nos próximos meses, aconteceram fugas e mais fugas de escravos em todas as fazendas da região.

— Que é deu na cabeça desses desgraçados? — Venâncio Vasco estava zangado. — Dobrei a vigilância nas minhas fazendas, mas os negros parece que tão com a ajuda do Demo.

Os capitães-do-mato não foram suficientes para perseguir tantos fugitivos. Neca Ferrador, antigo caçador de índios e o mais famoso perseguidor de negros fugidos, foi encontrado boiando no Rio Mumbuca, com a cabeça arrebentada. Bem perto de um reduto de negros foragidos. A perseguição aos negros tornou-se feroz. Os pretos que continuavam nas fazendas recebiam castigos mais duros.

— Precisamos mostrar a esses pretos quem é que manda. — A indignação dos fazendeiros não tinha limites.

Padre Hipólito via com aflição e com crescente sentimento de culpa tudo o que se passava na sua paróquia. Tudo o que sonhara fazer como pastor de seu rebanho acontecera ao contrário. Tentou abrandar o espírito feroz dos proprietários rurais. Foi recebido com recriminações.

— O que está acontecendo, padre, é resultado dessa sua idéia de construir uma igreja nova. Não precisava de nada disso. O senhor é teimoso. Agora, os negros estão revoltados é contra a sua promessa que não foi cumprida.

Os negros foragidos se escondem em socavões, cavernas e pirambeiras, brenhas de difícil acesso. Estabelecem uma defesa que os capitães de mato não conseguem penetrar. Um pedido de ajuda das forças imperiais foi feito, mas a demora na resposta agravava a situação dia a dia.

Padre Hipólito ofereceu intermediação: ele mesmo iria ao povoado dos escravos.

— Sei não, padre. Os negros estão muito revoltados. — O bom senso se manifestou pela boca de Hermógenes, o sacristão. O padre, determinado, não o escutou.

Partiu com dois voluntários numa manhã chuvosa. Fria por demais. Brumas coroavam o topo da Serra da Canastra. Levavam quatro mulas: o padre e os peões montavam as mais fortes, e puxada por uma corda ia uma mula velha. A subida era íngreme montanha acima. Pela trilha desciam filetes de água. As mulas escorregavam pelo barro.

Na crista da serra, escondidos na mata densa, olhos vigilantes observavam. O pequeno grupo foi notado, de longe, pelas sentinelas dos negros. Um aviso correu entre eles.

— É o Padre Hipólito. Tá subindo pra descobrir nosso esconderijo. Temo de dá um jeito neles.

A falta de notícias dos pacificadores, por mais de uma semana, alertou a cidade.

— Vamo procurá eles, gente! O padre deve tá perdido pelos grotão. — Um grupo de moradores, fiel ao padre, organizou-se para procurá-lo. A chuva continuava, aquela chuvinha de inverno, mansa, fria, que entranha pelo corpo, através mesmo de roupas pesadas. Os caminhos estavam que era só lama.

No segundo dia de caminhada, serra acima, chegaram ao topo da Cachoeira dos Papagaios. O alarido dos pássaros assustou os animais. A água caía por um paredão de mais de trinta metros. Os animais relutavam em atravessar o rio, cujo volume de água era assustador. Venancinho, na procura de um vau para facilitar a travessia, viu, lá embaixo, por entre a névoa da cascata, algo estranho.

—Tem sinal de bicho morto. — Avisou.

Apurando a vista, um dos companheiros gritou, para ser ouvido sobre o barulho da cachoeira :

— Tem gente morta lá em baixo. Tou vendo as roupa no meio das pedras.

Venancinho, afoito, debruça-se na borda do paredão. Passa a mão pelo rosto, limpando a água que lhe encharca as roupas e atrapalha a visão.

— Também tou vendo. Tem três corpo lá embaixo. Virge Maria! Tou vendo a batina. É o Padre Hipólito!

Antonio Roque Gobbo —

Belo Horizonte, 4 de setembro de 2003

Conto n# 239 da Serie Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/06/2014
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