238-PAISAGENS DA INDIA-Viagens

TAJ MAHAL

Giuliana entrou em êxtase diante da maravilha marmórea do Taj Mahal. Era a viagem dos seus sonhos: a lendária Índia, com mistério em todos os lugares e as pessoas entranhadas de misticismo. Principalmente nessa ocasião, o período dos “filhos das flores”, quando a espiritualidade dos indianos atingia o Nirvana na Terra.

Quando falou em fazer a viagem, como complemento aos seus estudos de arquitetura, o pai se entusiasmara com a idéia da filha.

— Bravo! Vai ser muito bom para você! Uma experiência magnífica!

A mãe entrou com a reserva de sempre:

— Sei não. A menina (a filha, com 23 anos, era sempre a sua “menina”) não tem idade para apreciar a viagem.

Com aval do pai e os cuidados da mãe, Giuliana viajou para a Índia. Seu sonho de adolescente realizando-se um tanto tardiamente. Mas antes tarde do que nunca, pensou.

Agora, andando por entre os jardins, a vista deslumbrante do mármore cor-de-rosa ofuscando-lhe os olhos, abandona o grupo de turistas, procurando uma sombra. O calor é inclemente.

— As chuvas das monções estão atrasadas, num sabe? . — Explicou-lhe o guia de turismo, brasileiro em trajes hindus, um simpático baixinho com sotaque de nordestino.

Acha um local gostoso de ficar. Além dos canteiros e dos pequenos lagos artificiais, choupos e salgueiros proporcionam refrescante sombra. Sob a frescura das árvores, Giuliana admira o elegante conjunto de uma das maravilhas do mundo. Na verdade, é o monumento mais grandioso, erguido em todo o mundo, para celebrar o Amor.

A cobertura de mármore cor-de-rosa reverbera ao sol do verão indiano. Os óculos usados pela turista brasileira não são suficientemente escuros para evitar os reflexos e a reverberação. A visão magnífica do monumento erguido há muitos séculos por um imperador à memória de sua amada.

Giuliana sabe, pois leu à exaustão, as informações sobre o Taj Mahal. Esplêndido mausoléu que Xá Djahan — o Grande Mongol, como instituiu ser chamado — mandou erigir, em 1626, em memória de sua amada Muntaz-i-Mahal, por cujo amor ele havia renunciado às suas mais de trinta concubinas.

Giuliana ali continuava, defronte o amplo espaço, olhando e tirando fotos do maravilhoso monumento. Os minaretes, as torres, a cúpula principal, ladeada por diversas menores, tudo parecia ter sido terminado ontem. A impressão ultrapassava tudo o que ela poderia ter imaginado ou idealizado. A simplicidade do desenho, o equilíbrio das formas, a suntuosidade da construção tornam o Taj Mahal comparável aos templos gregos e às mais belas catedrais da Idade Média e do Renascimento.

Sentada à sombra de um copado salgueiro, observa os turistas apressados, indo na direção da entrada principal de Taj Mahal. Está cansada, após a caminhada pelos arredores e interior do palácio. O calor reverbera, fazendo tremeluzir o horizonte distante na planície sem fim. Sentada no chão, encostada no tronco liso da árvore, entra numa modorra.

A magia do lugar leva Giuliana a acompanhar, entre as brumas de seu devaneio mágico. Atravessando o tempo, viaja até a época do reinado do Xá Djahan. Um poderoso rei da dinastia mongol que, para consolidar seu poder, teve de eliminar todos os parentes. Inclusive a mãe, à qual deu tratamento especial: apenas a exilou numa distante região montanhosa, de acesso difícil. Ofereceu todo o seu amor à esposa, Aryumand-Banu-Began, de nobre origem indiana. Deu-lhe um nome honorífico de Muntaz-i-Mahal, que significa “A Jóia do Palácio”. Para provar a sua paixão, fechou o harém, onde poderia manter suas concubinas, odaliscas e amantes. Para a sua amada, mandou construir um verdadeiro paraíso terrestre, perto de Agra, às margens de um rio que corria tranqüilo em seus meandros pela planície. Um verdadeiro oásis como nenhuma pessoa poderia imaginar. Um pedaço do paraíso na terra.

Belíssima e inteligente, a esposa Mahal exerceu uma grande influência sobre o imperador Djahan. Deu ao seu marido sete filhos. Estava no sul da Índia quando morreu, ao dar a luz ao oitavo filho. Inconsolável, o Grande Mongol, como era conhecido o imperador, mandou transportar o corpo da inesquecível Mahal para Agra, e enterrou-o nos jardins do oásis onde por muitas tardes e noites os dois amantes haviam perambulado, em encontros de amor. A seguir, para provar o seu amor e engrandecer cada vez mais a memória da amada, mandou construir sobre seu túmulo um monumento funerário como jamais fora erguido.

O efeito dos contrastes transmite ao observador uma impressão profunda de respeito e de amor. O pequeno lago retangular, no centro do qual está uma plataforma de mármore, e a reluzente faixa de água, com as flores de lótus em toda a extensão, exala um frescor e uma encantada sensação de repouso. Para a construção deste “sonho em mármore”, o Xá Djahan contratou os mais famosos arquitetos e artistas do seu reino e alhures. O perito que montou a cúpula principal certamente veio de Istambul. De Bagdá vieram os calígrafos, que realizaram as inscrições em baixo relevo por todos os vãos, faixas e espaços do mausoléu. Gravadores de flores vieram de Bukara e mandou buscar em Cachemira o arquiteto floral.

Para construir o magnificente monumento, o grande xá usou toneladas de mármore rosa e branco e empregou na construção mais de dez mil operários, os quais conseguiram erigir o imponente monumento em pouco mais de três anos. Tal aconteceu entre 1626 e 1630. E, apesar do final desditoso do Xá Djahan, ali permanecia o mas belo monumento funerário jamais erguido em toda a história da humanidade, para lembrar um devotamento sem fim do amado xá à sua companheira de reinado.

Giuliana saiu de repente de seu enlevo íntimo.

— Vamos, o ônibus já está esperando. — O guia turístico, cearense vestido a caráter como verdadeiro hindu, estava ao seu lado. — A senhora estava dormindo?

— Tive um ligeiro cochilo. — Ela não desejava falar de seu devaneio para estranhos.

No percurso da volta a Nova Delhi, a moça perguntou ao guia como o Xá Djahan havia terminado seu reinado.

— Terminou tal qual como iniciara. Seu filho Aurangzeb assumiu o poder e desterrou o próprio pai, que ficou confinado em um palácio nos confins do reino, até a sua morte. O xá foi o último imperador importante de sua dinastia. O príncipe foi um governante sem sabedoria, e antes mesmo de sua morte, o florescente império começou a declinar.

HOTEL PARADISO

Seguiu-se uma semana de visitas e excursões pela própria Nova Deli e imediações. O último dia era, como sempre acontece em viagens programadas por agências de vigem, um dia de repouso e preparo para partida. Giuliana se afeiçoara a um casal de idosos italianos — Capitano Toma e donna Marietta — que a convidam para um derradeiro passeio: uma curta viagem a Simla, ao norte da capital.

— Simla ? Do que se trata? Fica muito longe? — Procurou se informar com simpáticos turistas.

— É uma cidade pequena situada ao norte de Nova Delhi. Está nas faldas do Himalaia e a dois mil metros de altitude. No tempo do domínio britânico, os altos funcionários e os administradores fugiam do calor do verão indiano, indo para Simla. — Donna Marietta, a mulher de Tommaso explica. — É uma cidade muito pitoresca, com muitos bangalôs e mansões construídas ao estilo colonial inglês e escocês. Você irá gostar, tenho certeza.

Disposta a aproveitar o máximo de sua viagem, aceitou o convite. Viajaram cerca de duzentos quilômetros por uma boa estrada asfaltada e chegaram cedo à cidade. Após muitas voltas pelo centro, pelas vilas e subúrbios elegantes, desembocaram numa verdadeira favela: casebres construídos de papelão, folhas de zinco enferrujadas, cobertas precariamente por pedaços de plásticos.

— Mamma mia! Parece que estamos numa favela brasileira. — Estupefata por ver o carro adentrar-se por um caminho estreito, as pessoas encostando-se às paredes para dar passagem. — Mas, que vamos fazer aqui neste local miserável?

— Vou visitar meu amigo Aldo Fiorino. — Explicou Tommaso. A esposa deu um sorriso de confiança e Giuliana se acalmou.

A viatura chegou até um pequeno espaço circular, que se poderia chamar de praça, não fosse a irregularidade do terreno, cercado de todos os lados por tabiques, cercas, paredes e muretas. Entre o bric-a-brac arquitetônico (assim Giuliana denominou o “estilo” do local), uma construção de alvenaria,de dois pavimentos, destoava do resto e se destacava pelo letreiro que encimava a porta larga de acesso: HOTEL PARADISO.

Saindo do carro, Tommaso comandou, como um soldado ordenando um ataque:

— Ecco il Fiorino! Avanti! Andiamo a mangiare.

Dio mio! A gente rodou tanto para vir comer nesta espelunca? — Pensou Giuliana, obedecendo à ordem do velho.

À porta apareceu um senhor de cabelos brancos, rosto vincado por rugas profundas, os olhos azuis e voz clara e alegre.

— Caro Capitano! Ma Che cosa fai in questo fino del mondo?

Apresentações, fortes abraços efusivos, beijos nas faces e nas bocas — um reencontro de velhos camaradas. Giuliana entrou no espírito da coisa e logo estava à vontade, conversando no vero dialetto dos italianos de Nápoles e adjacências.

Durante a refeição em que foram servidas as iguarias típicas das cantinas e trattorias napolitanas, Giuliana foi se inteirando da razão de ser daquele hotel encravado numa localidade miserável. Fiorino quase chegava às lagrimas, emocionado com o encontro. Há mais de quarenta anos que não se viam.

— Era o tempo da segunda guerra. Tommaso era o Capitão da unidade. Capitano Tommaso! Ma che capitano! A guerra no deserto da Líbia era uma confusão total, os alemães não gostavam dos italianos e nós estávamos cagando (scusami, signorina!) para eles. Rommel e as tropas italianas se separaram na batalha de El Alamein e logo fomos dominados pelo exército inglês, comandado pelo Maresciallo Montgomery.

— Foi uma catástrofe! E nem está registrado nos livros de história. — A narrativa de Fiorino era completada com explicações de Tommaso. — Fomos transferidos, como prisioneiros de guerra, para um campo de concentração em Dehra Dun, no sopé do Himalaia.

— Comemos o pão que o diabo amassou: frio, fome, um inferno. Mas tudo tem o lado bom. — O otimismo de Fiorino era insuperável. Entre uma porção de polenta e goles de bom vinho, reservado para ocasiões como aquela, Aldo e Tommaso completavam-se na narrativa.

— Aldo era um bom cozinheiro e não demorou muito que suas habilidades com panelas e caçarolas, massas e molhos especiais, o levassem para o serviço dos oficiais ingleses.

— Sim, eu vivia num regime de semi-liberdade. E, quando podia, carreava para o nosso alojamento as sobras do jantar dos oficiais. Lembra-se, Tommaso?

— Si, si, como no?

Vieram outros pratos: a pastaciuta, acompanhada de suculento molho a parmigiana e um salaminho feito pelo próprio Aldo. Giuliana saboreava de tudo e mantinha os ouvidos abertos para a história dos dois antigos companheiros de campanhas militares.

— Quando a guerra terminou, fiquei sabendo, devido à militância de meu irmão na resistência contra os alemães, estes mataram todos os meus familiares. E queimaram a casa onde nasci. Estava livre, mas distante de minha pátria. Não tive ânimo para voltar à Itália. E, além de tudo, estava gostando de uma jovem brâmane, ou hindu, como vocês queiram chamar.

Batendo palmas para o interior da casa, chamou em voz alta pela esposa. Uma linda mulher de tez escura, grandes olhos negros e alvíssimos dentes, vestida em típica indumentária hindu, chegou até eles. Com as mãos juntas à altura do colo, fez saudação, inclinando-se perante cada um dos visitantes. Acompanhavam-na os três filhos: duas mocinhas e um rapaz. Todos tipicamente brâmanes, e seguindo a mãe nos cumprimentos.

— Ecco! Questa é mia famiglia! Venham, sentem-se aqui conosco. — Aldo não escondia o orgulho por sua esposa e pelos filhos.

Tommaso bateu palmas, sua forma de saudar a família do amigo de tantos anos. Giuliana e Marietta seguiram-no na saudação efusiva. E voltaram à comida, à conversa, agora com a participação da esposa e dos filhos de Aldo, falavam perfeitamente a língua italiana. É bem engraçado esses hindus falando italiano. — Pensou Giuliana.

Tomado de entusiasmo, que crescia a cada copo de vinho, Aldo explicou o que nem precisaria ser explicado:

— Como vocês vêem, isto aqui não é um hotel. Mas é, veramente, o meu paraíso.

ANTONIO ROQUE GOBBO —

BELO HORIZONTE, 27/AGOSTO/2003

CONTO # 238 DA SERIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/06/2014
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