236-A TERRA DO JA FOI-Politicalha
A TERRA DO JÁ FOI
O vereador Bernardo Fiorentino estava preocupado. A memória do avô estava sendo ameaçada. Daí a empolgação do seu discurso e a indignação com a falta de vontade política do prefeito municipal em providenciar, já e já, o tombamento do edifício da Sociedade Italiana. Por cinco vezes já ocupara a tribuna da câmara de vereadores. Desde o início do ano (de 2003) vinha lutando para a conservação, e mais do que isto, a restauração do imponente prédio, orgulho dos italianos.
— Isto tudo, caros vereadores e respeitável público aqui presente, este esforço, esta iniciativa do tombamento do prédio da antiga Sociedade Italiana, da inesquecível Societá Italiana é para que seja preservada pelo menos uma, a última construção histórica da cidade. Já não temos mais a Igreja do Rosário, construída pelos negros nos tempos ainda da escravidão. Virou estação rodoviária. A Escola de Farmácia, vetusto prédio representativo não só da arquitetura do princípio do século passado, como local representativo da formação de mais de uma centena de farmacêuticos, foi arrasado. Ali, onde se erguia a inesquecível escola, está hoje um cubo de alvenaria e vidros, onde funciona uma “central de operações” de um banco cujo nome me repugna mencionar. O Seminário do Sion, fechado há décadas, é agora centro educacional, alugado para uma rede de ensino, que, nas adaptações, desfigurou completamente a construção.
Não é à toa que nossa cidade, a querida São Roque da Serra, é conhecida na região como a “cidade do já teve”, a “terra do já foi”. Dos tempos coloniais, nada temos: da “Casa da Moeda”, que chegou a cunhar dinheiro, nos tempos em que o garimpo era atividade importante na região, só temos ruínas ao rés do chão. Ninguém aqui se lembra da Cadeia Pública Imperial, inaugurada por emissário especial de D. João VI, que servia como cadeia regional. Hoje, no local, ergue-se um prédio de apartamentos.
Por isso, instamos o prefeito municipal a reaver o prédio da Sociedade Italiana, hoje na posse do Hospital Municipal, para que se cumpra a lei municipal, aprovada por esta egrégia câmara, tombando o edifício e conservando o marco da imigração italiana na nossa cidade.
Aplausos formais dos vereadores, assovios e estrépitos da parte dos pouco assistentes da reunião. Os reclamos do vereador Bernardo não eram infundados. Há mais de seis meses apresentara a lei de desapropriação do imóvel e seu tombamento. A lei fora aprovada mas a prefeitura nada fez para seu cumprimento. Nas últimas semanas, o Hospital colocara o imóvel à venda. Os descendentes dos italianos se movimentaram para ter de volta a posse do imóvel. Não conseguiram ajuntar o dinheiro necessário para uma indenização ao Hospital.
A história do edifício estava ligada à própria história da cidade, dos imigrantes italianos que chegaram nas últimas décadas de 1800 e deram um impulso vigoroso à cidade e ao município. A idéia da formação da Societá Italiana fora do avô do vereador, o eminente Capitão Giuseppe Fiorentino. Foi um dos primeiros italianos a se estabelecer em São Roque da Serra. Chegou com o capital e com a patente, pois servira ao exército de sua pátria e acumulara algum dinheiro de seu soldo. Adquiriu uma pequena propriedade rural, plantou café, prosperou, e, em poucos anos, igualava sua fortuna com a dos tradicionais fazendeiros. Comprou mais terras de proprietários arruinados com as mudanças no campo, pois a libertação dos escravos foi um golpe para os que usavam a mão-de-obra dos negros.
Tinha fazendas e construiu um belo palacete na cidade. Admirado pelos patrícios, aos quais ajudava com liberalidade, tornou-se um líder da comunidade italiana. Daí à idéia de formar a Societá Italiana foi um pequeno passo. A adesão dos imigrantes foi total e imediata e logo se tornou a sociedade mais importante de São Roque. Comprou-se um terreno no centro da pequena cidade, defronte à Praça Central, e um edifício foi construído para a sede. O construtor (que era ao mesmo tempo o arquiteto) Umberto Fabrici, fez erguer um imponente prédio, com larga escadaria de acesso, colunata imponente, átrio e portais internos, tudo no melhor estilo da arquitetura romana no seu apogeu.
O funcionamento da agremiação imprimiu nova vida à cidade: bailes, concertos de orquestras vindas de São Paulo, retretas de bandas na escadaria. Procópio Ferreira e sua trouppe ali se apresentaram, bem como grandes cantores. Tudo no melhor estilo e dentro do espírito de organização do Capitão Fiorentino. Décadas de alegria, de confraternização, de solidariedade. Superou dificuldades à época da Primeira Grande Guerra, e chegou com galhardia às vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Foi então que terminaram os tempos de bonança. Com a declaração de guerra dos países aliados — e o Brasil entre eles — as reuniões dos italianos foram proibidas. Emissários especiais do famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda, DIP, a polícia política do governo de Getúlio Vargas, chegaram à cidade, com o fim exclusivo de acabar com a sociedade dos italianos. Mas seu fundador, que, além de militar era também um extraordinário argumentador, conseguiu livrar a Societá Italiana de seu fechamento definitivo. Negociou uma “interdição” do DIP, que nomeou um interventor, cargo muito em moda naqueles anos de guerra.
A morte do velho capitão, antes do final da guerra, foi crucial para a agremiação. Por manhas e artimanhas do interventor, forjador de atas e falsificador de assinaturas, a Societá Italiana transferiu a posse do edifício para o Hospital Municipal. Quando os companheiros do capitão souberam, o fato já tinha sido consumado e a transferência registrada em cartório.
A destinação do edifício seria a instituição e a manutenção do serviço de pronto socorro do hospital. O que nunca foi totalmente realizado. Com apenas alguns meses de funcionamento, evidenciou-se a impraticabilidade da idéia. Fechado, o edifício entrou em lenta degradação, a fachada enegrecendo-se com a pátina do tempo, os canteiros de flores transformando-se em depósito de lixo e a grade fronteira arrancada aos pedaços por ladrões ou predadores.
A história da Sociedade Italiana havia sido contada e recontada pelo menos uma dezena de vezes pelo vereador Bernardo, neto do criador da importante agremiação. Mais uma vez, desfilou a narrativa ao chefe do Instituto do Patrimônio do Estado, que, enfarado, cortou a narrativa pela metade:
— Sim, vereador, já sabemos de tudo o que o senhor está narrando. Mas a prefeitura tem de desapropriar o imóvel.
— Urge qualquer providência. O hospital colocou o imóvel à venda. Felizmente, com a iminência de ser tombado como patrimônio histórico, não há interessado na compra.
O que o vereador achava ser um motivo de dilação para a venda, tornou-se, na verdade, o fator determinante para a resolução do impasse. Mas, daquela reunião o vereador saiu desanimado. Sabia que muito pouco poderia esperar dos burocratas e governantes.
O telefone tirou Bernardo de sua madorra vespertina. Olhou o relógio automaticamente. Quatro da tarde. Atendeu.
— Vereador, corre aqui na Praça. Tão mexendo na Sociedade Italiana. — A voz aflita de Glorinha, sua eficiente secretária, exigia urgência. O vereador pressentiu tragédia no ar. Vestiu o paletó e entrou no carro, disparando para o centro da cidade.
— Que estão fazendo? — Dirigiu-se ao que parecia ser chefe da turma de trabalhadores que campeavam pelo local.
— Nada não, doutor. Só vamos consertar o telhado. — A explicação soou estranha. Parece que foi ensaiada.
— Quem mandou vocês aqui?
— Tamos trabalhando pro dr. Fulgêncio.
O diretor do hospital. Então, ali tinha treta. Coisa boa não era, pensou Bernardo. Entrou no carro.
— Vem comigo, Glorinha. Vamos pra prefeitura.
Onde chegaram em poucos minutos. .
— O Prefeito não está. Saiu. Foi fiscalizar uma obra lá pelas bandas da ponte do Rio Jeriquinha. — O porteiro da prefeitura informou, com grande preguiça.
— É longe, só chego lá dentro de uma hora. Mais uma hora pra voltar. Não dá tempo.Vou procurar o Juiz. Com um mandado, embargo a reforma.— Falou para a secretária, mais para organizar a sua ação.
Encontraram o fórum fechado.
— É a maldita folga desses caras. Todo o mês de julho de férias. Vamos pra casa do Juiz.
— Foi pro rancho em Furnas. Só volta segunda-feira. — A doméstica informou.
— Vou pra lá. Tenho de fazer alguma coisa. Cê vem comigo, Glorinha.
Disparou com o carro. Rodava no asfalto a mais de cem.
No centro da cidade, o grupo de curiosos em volta do prédio da Liga Italiana se transformou rapidamente em multidão. Chegaram máquinas da prefeitura: duas escavadeiras, caminhões e tratores. Mais trabalhadores foram chegando. Em pouco mais de uma hora, quase trinta homens trabalhavam no local. Tiraram o telhado, as telhas rapidamente colocadas nos caminhões, que sumiram no entardecer. Caibros, ripas, peças de madeira do engradamento foram arriadas em poucos minutos. Em seguida, homens com marretas começaram a demolição das paredes. Um caminhão guincho e um trator, conjugados, arrastaram e derrubaram a colunata da frente. O fragor de cada queda de coluna ou cimalha derrubada era acompanhado de gritos da multidão. Anoiteceu. Dois carros foram estacionados nas imediações, longe da poeira e dos detritos, com os faróis acesos, a fim de orientar os trabalhadores noite adentro.
Bernardo e Glorinha chegaram ao rancho do juiz de direito.
—Ele tá pescando, aproveitando a lua. Lá em baixo, no pontal de madeira. — O caseiro informou, sem se mexer de sua rede, estendida atrás da casa.
Sim, lá estava o juiz. Na pachorra peculiar de todo idoso, de bem com a vida, sem preocupações. A explicação atropelada de Bernardo, o pedido de um mandado que impedisse a demolição do prédio, não entra, de imediato, na rotina do magistrado. Quando, finalmente, o vereador conseguiu o documento assinado, caiu na estrada, retornando à cidade. Já passava das dez da noite.
Homens com machados cortaram as árvores que sombreavam uma aléia lateral. Os tijolos eram empilhados numa área aplainada. A poeira escondia os trabalhadores, que não pararam um só instante, enquanto não restou, no chão, apenas caliça e montes de reboco, pedaços de tijolos e pedras, canos enferrujados, azulejos, cerâmicos em cacos. O trabalho de destruição de um batalhão militar, em ação de terra arrasada, não teria feito melhor.
Tendo cumprido a maior parte da tarefa, demolido o principal do edifício, a turma de demolidores deixou a área de destroços. Os veículos se afastaram e a multidão de observadores se desfez.
Rodando veloz, sem se preocupar com a própria segurança ou com o policiamento da rodovia, o vereador venceu em pouco mais de uma hora o percurso de volta. Passava poucos minutos das onze quando chegou à Praça. Sentiu-a mergulhada num silêncio profundo e sinistro e observou as árvores e arbustos cobertos de poeira. Isto tudo observou antes de estacionar o carro.
Um espaço escuro, sombrio e uma área completamente devastada —, era tudo o que restava do edifício da Societá Italiana.
Abatido, o vereador Bernardo Fiorentino teve de beber até a última gota o cálice do desgosto. Além da perda real para o patrimônio da cidade, além de sentir-se desonrado com a destruição do velho edifício construído pelo avô, além do travo amargo da derrota, teve de suportar o escárnio dos adversários políticos.
Tomando a palavra na primeira reunião após a destruição do prédio da Sociedade Italiana, o vereador Edmilson Ganimedes dirigiu-se aos pares e, em especial, ao macambúzio Bernardo:
— Vossa Excelência queria o tombamento do edifício. Há seis meses vem ocupando esta tribuna, enchendo nossas cabeças com a ladainha do tombamento. A edilidade aqui presente já não agüentava mais ouvir falar em tombamento. Pois aí está, caro colega, o seu desejo satisfeito: o edifício da Sociedade Italiana foi literalmente, com todos os efes e erres, definitivamente TOMBADO.
ANTONIO ROQUE GOBBO escreveu em 11 de agosto de 2003
Baseado em fato real ocorrido em SSParaíso
Conto # 236 DA SÉRIE MILISTÓRIAS .