235-DORMINDO FORA DE CASA- Humor

Dormir fora de casa é uma situação das mais perigosas.Tanto para o hóspede quanto para o hospedeiro. Um leito em quarto estranho é muito diferente da própria cama. Passar a noite entre lençóis alheios, só ou acompanhado, é algo misterioso e, muitas vezes, leva o convidado para mundos estranhos e vivências positivamente esquisitas.

Veja, por exemplo, o que aconteceu com José Manoel Braga, conhecido na região de Cacimbinha Velha, por Zé Mané, seu amigo Aristeu da Silva e dona Emerenciana, mulher do Zé Mané. Causo seguinte:

Domingo de tardezinha, Zé Mané, sentado na soleira da pequena casa de pau-a-pique, vê aproximar-se o cavaleiro: passando pela porteira, desce a estreita trilha barreada, e detendo-se ao lado do alto pé de angico. Reconhece o compadre Aristeu assim que ele apeia, pois o amigo só desce do cavalo pelo lado direito.

— ‘Tarde, cumpadre Zé!

— ‘Bas-tarde, cumpadre Aristeu! Vamo chegando.

O recém-chegado amarra, com imensa pachorra, o cavalo ao mourão a casa. Na verdade, uma éguinha idosa e sofrida, o pêlo do lombo manchado e desaparecendo, tranqüila mais pela idade do que pelo temperamento. Caminha até a porta, onde Zé já se aprumara para recebê-lo.

— Intão, cumpadre, dando uma vortinha?

— Venho lá do sítio do Licurgo. Fui levá uma encomenda da minha muié Izordina pra dona Nena, cê sabe cumo as muié são, sempre inventando coisa.

— Puis intão num sei?

Na pequena sala está Emerenciana, crochetando.

— ‘Tarde, cumadre Emerenciana.

— ‘Tarde, cumpadre. Intão, cumo vai? E a cumadre, cumu tá ela?

— Bem, bem, graças a Deus. Izordina mandou lembranças proceis.

Os três de prosa fiada ficaram até que escureceu. Com a noite, armou-se o temporal, que caiu sem mais nem menos, fazendo tremer a chama da lamparina e batendo portas e janelas. A conversa vai continuando, enquanto Aristeu espera a chuva amainar. Lá pelas tantas, vendo que o temporal continuava, ameaçou ir embora.

— Mais que nada, cumpadre. Cum tempo desses, o sinhor dorme aqui cum a gente. — Convidou Zé Mané, com simplicidade.

A mulher de Zé lhe fez sinais para que fossem até a cozinha. Enquanto mexia nos tições de lenha, avivando o fogo para passar mais uma coada de café, falou, séria, com o marido.

— Mais cê tá besta mesmo! Onde que o cumpadre vai drumí? Aqui só tem o nosso quarto de casal e nóis só tem a nossa cama. Num tem jeito do cumpadre drumi aqui não!

— Ora, Merência, num carece ficá preocupada, não. Nóis fais assim: durmimo os treis na nossa cama. Ela é grande, dá pra nois.

— E cumo é que vai sê?

— Óia, fazemo assim: eu durmo nu canto, cê fica no meio, que o corchão é mais macio, e o cumpadre Aristeu dorme na beirada. Assim, quando ele quizé levantá pra fazer arguma necessidade, num carece acorda nóis.

— Marido, óia que isso num vai dá certo. Eu no meio de oceis dois? Num vai dar certo.

— Ara, muié, deixa de besteira. O cumpadre é de confiança.

Convencida pelo marido, Dona Emerenciana preparou a cama para os três. Trovões roncavam e relâmpagos iluminavam o casebre pelas frestas e buracos nas paredes. Ainda assim, Zé Mané dormiu como uma pedra, não dando notícia de nada que se passava, quer fora, quer dentro de casa.

No dia seguinte, foi acordada pela mulher.

— Zé, acorda! Acorda, Zé!

— Hã! Que foi? — Estremunhado, passa a mão pelos olhos. Lembra-se do cumpadre.

— Cadê ocumpadre Aristeu?

— Saiu cedinho, de madrugadinha, já foi imbora. — informou a mulher. — Óia, Zé, eu ti falei que esse arranjo de nóis treis drumi junto num ia dar certo.

— Que foi, muié, du que qui o cê tá recramando?

— Puis num é que de noite, inquanto cê roncava aí nu canto, o cumpadre me pegou e ... mandô vê. Se satisfeiz treiz veiz cumigo.

Zé Mané revira para o canto, puxa o lençol e acoberta fina, resmungando.

— Ara, muié, e ocê queria que fosse cumigo?

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 28 DE JULHO DE 2003

CONTO # 235 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/06/2014
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