UM SERVIDOR PÚBLICO, NÃO POR ACASO (Baseado em um caso real).

(Continuação de 15 de junho de 2014, e fim da história).
Leonardo se afasta sem esperar resposta. Apesar de seu tom irônico, estava pálido, com um misto de náusea e temor. Não sabia qual das duas sensações lhe causava mais mal; não tinha, entretanto, a menor dúvida de que o temor não era maior que seus princípios como cidadão. Ainda que não visse por si mesmo o resultado de tais atos, ia continuar agindo para acabar com aqueles desmandos. Ficava se perguntando o porquê de sua carreira, criada para normatizar os gastos de toda ordem das instituições públicas, omitir-se diante dos gastos dos militares. “Ah, com eles a gente não quer mexer muito, não”; “Eles vão se adequar aos poucos”; “Isso fica a critério de nível mais alto do governo”. Foi o que passou a escutar, ao levar os problemas, malocados pelos chefes militares, para o ministério civil responsável pelos gastos públicos. 
 
Conseguiu testemunhar, em período de maior conflito, uma visita do tribunal de contas à sua repartição, que chegou a enviar-lhe uma correspondência elogiando a iniciativa de encaminhar relatórios — que desnudavam diversos desvios do erário — e o contra cheque de um oficial intermediário espelhando, inconcebivelmente, a remuneração de oficial general; caso descoberto e abafado, nem por isso não iterado, pela fragilidade de ser eles mesmos a alterarem, e eles mesmos a depurarem seus numerários. Mas, como não era de se esperar — pelo menos Leonardo não esperava — tudo acabou em pizza. Os funcionários do tribunal de contas terminaram a visita não verificando os desvios claros ali existentes, mas bebendo uísque com o almirante e rindo das piadas contadas pelo graduado militar.
 
Sabia que estava cercado de muitas pessoas boas; sabia também que o instinto de sobrevivência delas era maior que qualquer ideia de idoneidade. Isso ficava claro quando procuravam usar a semântica na malograda tentativa de justificarem suas omissões, dando diferentes significados às palavras; muitas vezes usadas com maestria pelos oficiais, incutindo-lhes ideias de ordem e disciplina em detrimento do bem público. Qualquer busca por justiça, ali, que, a bem da verdade, raramente acontecia, era por vezes, retrucada com a sentença: “Conceitue justiça!”; pois tinham seus próprios conceitos. 
 
Um oficial, sem argumentos válidos, diante do questionamento de um funcionário, vociferou numa ríspida e profusa aliteração inopinada: “Seu insolente, funcionário inconveniente, pessoa impertinente, saia da minha frente!”, provocando o riso furtivo dos que estavam ao redor e o cochicho: “Isso dá samba!”.
 
O TFMC, mesmo depois de aposentado, permanecia ansioso para que houvesse uma homogeneidade nas demandas do controle dos gastos. Constatou que o sistema de pagamento de todos os funcionários públicos que havia sido unificado em um único, em mil novecentos e oitenta e nove, não abrangeu o dos militares; ah, isso não fora possível por terem, com forte lobby, conseguido mudar o status de “funcionário público militar” para “funcionário militar”, na Constituição de oitenta e oito. Embora soubesse que continuavam com seus mesmos sistemas de fiscalização — os desvios financeiros daquela instituição persistiam, por serem os sub-repasses das verbas administrados como bem lhes apraziam . Também soubera que já havia, de alguma forma, um maior controle das contas, no fim das contas. De qualquer forma, ainda que com passos de formiga, as arestas estavam sendo aparadas. 
 
Leonardo estava com a consciência tranquila de quem fez o dever de casa, mesmo tendo sido sistematicamente perseguido. Sentiu sua alma mais refrigerada ao saber que os Fundos daquela instituição, existentes, inconstitucionalmente, em contas estrangeiras, foram transferidos para o tesouro público durante a gestão de um presidente da república que tomara conhecimento de tal transgressão.
 
Em suas elucubrações, pensava que sua passagem pelo serviço público fora uma missão. Recordava-se das pessoas que faziam questão de parecer eficientes, falando e gesticulando muito sem resultado produtivo; das que entregavam os colegas à chefia para obterem méritos que, enganosamente, eram tidos como honrosos. Lembrava-se das que eram bajuladoras por medo, das que preferiam se omitir com a filosofia de “Melhor um covarde vivo que um herói morto”; das intrigas risonhas e risíveis mal sucedidas, e tantas outras coisas que havia vivenciado. Refletia o aprendizado que havia amealhado com as pessoas que lhe ofereceram palavras de ânimo e força. Em suas reminiscências, percebia, inclusive, conserto dos próprios erros, como refrear o orgulho e ser menos imprudente em sua contumaz confiança em quem não a merecia. Mas  sabia que não havia conseguido conter seus impulsos em dizer o que pensava. Isso lhe causava certa angústia, já que lhe provocavam, não poucas vezes, sérios aborrecimentos, como consequência.
 
Sentado em frente ao seu órgão, tocando músicas que lhe davam indizível prazer, evocava uma pessoa que encontrara há muito. Em pensamento, via a linda moça de longos cabelos cor de mel, que pegou sua mão esquerda, e começou a dizer, delicadamente, que o conhecia, sabia de suas angústias e questões ainda sem respostas. Ele, sem saber o que dizer, apenas a olhava e sorria encantado. Ela: — Não estou aqui para livrá-lo dos percalços que ainda tem a percorrer, mas para dizer que não deve esmorecer, nunca! Creia em si mesmo e continue perseverando em tudo aquilo que acreditar. Você, em breve, terá um emprego no serviço público; será bem sucedido a despeito das injúrias por se mostrar intrépido em seus objetivos, que são de moral inquebrantável. Nada terá força para impedi-lo de sair vitorioso, meu amigo!
 
 
Após essas lembranças, riu e pensou: nada é mesmo por acaso! Percebeu, em um átimo de segundo, que o que lhe caía bem eram, indubitavelmente, seus livros e seus cursos. Mesmo após sua aposentadoria do serviço público, jamais os aposentara. 
Quando os netos entravam em seu quarto, aos domingos, contava-lhes sua história. Ao terminar, se alguém duvidava, balançava a cabeça calmamente e, lembrando o Timbira de Gonçalves Dias, plagiava: meninos, isso vivi!

 
FIM.

 
Lere
Enviado por Lere em 16/06/2014
Reeditado em 16/06/2014
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