232-O CAMINHÃO DE VOVÔ LORENZO - Memória

Passar os dias no sítio do Vovô Lorenzo era o de que os netos mais gostavam. Além do pomar, onde sempre havia frutas da estação ou temporãs, banana e mamão o ano inteiro, existiam outros locais para explorar, andar, subir, descer, correr, nadar e fazer tudo o que os meninos e meninas não podiam fazer em suas casas na cidade.

A propriedade rural ficava a uns poucos quilômetros da cidade. Descendo pelo lado do campo de futebol do Clube Operário de Desportes — o terrível COD que a torcida gritava códi, códi, códi, com a gente ninguém pode nas batalhas contra os torcedores do Espartano Football Club nas memoráveis pelejas dominicais — , já começava a estrada que levava ao sítio, coisa de meia légua além, se muito. Por isso, era fácil marcar o encontro para chegarem juntos ao sítio:

— Domingo depois da missa, no fundo do Códi — Combinavam durante a semana. A chusma era pra mais de dez, quando se reuniam todos. Garotos e garotas de idades entre treze (o Zezinho do Tio Lázaro era o mais velho) e sete anos, que era a idade do Luizinho, nanico, asmático e pouco desenvolvido, mas nem por isso o menos travesso. Seguiam juntos e invadiam o sítio do avô, onde se reuniam com mais sete primos, filhos do Tio Carlos.

A propriedade nem era mais do velho Lorenzo. Pertencia ao filho predileto, Carlos, que continuou o negócio do pai: mantinha em funcionamento a olaria, situada nos limites do sítio, às margens do córrego Água Clara. Nas barrancas das margens encontrava-se barro apropriado para o fabrico de tijolos, além da argila vermelha, a tabatinga, boa para fazer pequenas peças de cerâmica.

Viúvo, Lorenzo morava com o filho. Tinha seu quartinho na casa, local misterioso para a garotada, de porta e janela sempre fechadas, onde o avô passava o dia inteiro. A aura de mistério era tão grande entre os netos que, por diversas vezes, Zezinho e Renilda (garota bem levada) tentaram olhar pelas frestas da janela.

— Cê tá vendo alguma coisa? — Cochichava Zezinho, enquanto a prima, montada nos seus ombros, colocando as mãos em concha sobre os olhos, inutilmente procurava ver algo lá dentro.

— Não dá pra ver nada, tá escuro demais.

Se se precisasse de uma pessoa macambúzia e sistemática, enfezada e de mal com a vida, o velho Lorenzo serviria sob medida. De pouca prosa, não aprendeu a língua falada na nova terra que o recebera como imigrante. Como passou a maior parte da vida no sítio, trabalhando na olaria, foi ficando cada vez mais calado. Falava apenas o necessário para fazer funcionar sua pequena indústria. Com a esposa e com os filhos e filhas falava menos ainda. Só era um pouquinho mais expansivo com a nora, Vitória, mulher de Carlos. Com ela se entendia melhor e a jovem senhora sabia agradar o sogro com as comidas, quitandas e doces, que o velho aprovava com pequenos murmúrios de elogios.

Os netos e netas que “invadiam” o sítio quase todos os domingos separavam-se em dois grupos distintos: os menores ficavam brincando pelo pomar, ou no curral, perto da casa. Os maiores, liderados por Zezinho, iam pra longe: nadar no poço formado pelo córrego estreito, represado para fornecer uma bica d’água a qual movimentava enorme roda do moinho de fubá. Ou enveredavam, morro acima, pela plantação de eucaliptos, até a casa da Maria Caxuxa. Lá no alto, na casinha que se desmanchava em tapera, morava a preta velha, benzedeira famosa, mas que entrara a caducar e a quem a presença dos garotos muito aborrecia. Quando via os meninos aproximando-se, entrava num surto de exasperação e de longe já começava a gritaria de palavrões e xingamentos. Era o que atraía a garotada para o alto da colina: ver a brabeza da preta, muito magra, um caco de gente, bradando a plenos pulmões.

— Sai da moita, cachorrada. Vem cá, seus disgraçados. Ceis num tem pai e a mãe tá na zona. Seus fia da puta.

O prazer dos meninos era passar correndo pelo terreiro da casa, provocando a bruxa. As meninas ficavam escondidas, na sombra dos eucaliptos, observando a “coragem” dos primos. Logo enjoavam da brincadeira e voltavam por outro caminho, que passava por uma grota, onde uma cascatinha enevoava as samambaias, os chorões e as plantas que se agarravam pelo barranco. Não dava pra nadar, mas os mais afoitos entravam debaixo da queda d’água.

Um velho caminhão ficava no fundo do imenso galpão que era, ao mesmo tempo, depósito de ferramentas, de capim-gordura armazenado para manter algumas vacas e um touro, no tempo da seca; uma máquina de picar cana, perigosa, sempre mantida imobilizada com corrente e cadeado. Um canto cercado de tábuas largas era o paiol, abarrotado de espigas de milho.

O caminhão — modelo dos anos 30 — era pequeno, e tinha servido por muitos anos para o transporte de tijolos da olaria para a cidade. Pelo estado atual, via-se logo que há muitos anos o veículo não era usado. Os pneus ressecados e rachados, as rodas afrouxavam-se no chão. Da carroceria de madeira só restavam algumas tábuas do assoalho: as laterais haviam sido aproveitadas para consertar a cerca do curral. Na frente, o capô aberto dos dois lados, mostrava as entranhas esvaziadas, o motor e as peças de metal retirados para serem aproveitadas em outras máquinas. A pequena cabine era um pardieiro: galinhas faziam ninhos no banco e as pombas já tinham manchado de branco toda a capota. A direção mantinha-se na sua posição, o único elemento aparentemente intacto na máquina arruinada. .

Gênico brincava de dirigir o caminhão. Limpava o assento, espantando alguma galinha que persistia em ficar no ninho. Sentava-se no banco, e com seus braços curtos, fingia puxar a direção para um lado e para o outro. Fazia um barulho rouco com as bochechas estufadas, imitando o ronco do motor. Os outros se aboletavam atrás e pretendiam estar passeando por estradas e caminhos de suas fantasias.

O caminhão tinha história. Ou melhor, fazia parte da história da família. E estava abandonado justamente pelas conseqüências de um fato do qual fora participante.

Dentre os oito filhos e filhas de vovô Lorenzo, Alarico era o rebelde, o diferente. Enquanto todos procuraram aprender ofício, trabalhar, casar, constituir família, Alarico não queria trabalhar, não se importava com a aparência pessoal nem cogitava de namorar. Sua única função era dirigir o caminhão, nas entregas de tijolos. Sabia dirigir o veículo e conhecia todas as suas mutretas. Não havia enguiço que Alarico não soubesse consertar.

Do que ele gostava mesmo era de caçar. Vivia acompanhando os amigos caçadores—e como tinha amigos!. Era muito estimado na roda, sempre convidado para caçadas, porque tinha uma vantagem: usava o caminhão da olaria para transportar os companheiros e toda a tralha.

O pai proibia o filho de usar o caminhão. Mas Alarico fazia ouvidos moucos à proibição. Como só ele sabia dirigir o caminhão, pegava o veículo a qualquer hora, em qualquer dia, e sem avisar a ninguém, lá ia com a turma para suas caçadas. O pai ficava fulo de raiva, a mãe (a suave Vovó Cecília) enchia-se de preocupações e punha-se a rezar terços encarreados, acendia velas nos oratório da santa padroeira e fazia promessas.

Toda vez em que Alarico regressava de suas caçadas, acontecia um bate-boca violento com o velho (então, sim, ele abria a boca e gritava, em bom napolitano, todos os xingamentos, que sabia às dezenas). Assim, ao mesmo tempo em que brigava com o pai, aliviava a mãe de suas preocupações e a presenteava com o resultados de suas aventuras: boas peças de carne de veado campeiro, ou pacas, tatus e cotias, já meio salgadas, preparadas pelo mestre Licurgo, que acompanhava as expedições de caça exclusivamente para descarnar os bichos abatidos, tirando o couro, salgando as peças, e, claro, fazendo a comida para os caçadores.

Certa vez trouxe um troféu que espantou a todos: o couro e a cabeça de uma onça, morta per ele e o Quinca Luso. O susto que a mãe levou acabou com a graça da exibição do troféu. O pai exigiu que ele desse um sumiço na macabra lembrança.

Ora, de tanto o pote ir à fonte, um dia acaba por se quebrar. As armas e munições dos caçadores eram simples, quase artesanais. Os cartuchos eram reaproveitados, enchidos de pólvora, com uma bolinha de chumbo na ponta. As espingardas nem marcas ostentavam. Calimério usava uma Flaubert cujo cano original havia sido substituído por um tubo de guarda-chuvas. Era de se admirar que não acontecessem acidentes, usando aquelas espingardas mal guarnecidas e munição feita em casa.

Até que um dia, aconteceu, sim, um acidente feio. Na espreita de um bebedouro freqüentado por veados (e onde notaram rastros de onça) ficaram Alarico e dois companheiros de um lado e Quinca Luso mais Juvenal do outro lado. Os animais que por ali se atrevessem á beber estariam sob as miras de quatro experientes caçadores e não teriam como escapar.

Apareceu o primeiro animal, um veado campeiro arisco, olhando para todos os lados. Foi só abaixar a cabeça galhada para dessedentar-se e espocaram os tiros fatais. Um tiro atingiu a caça visada, que tombou sobre o riacho, o sangue da ferida no pescoço transformando a água cristalina em corrente avermelhada. Outro tiro, uma bala perdida, atingiu Alarico, que tombou como um animal alvejado de morte, sobre o capim amassado, o sangue da cabeça ferida criando estranhas flores vermelhas sobre a grama.

Uma gritaria, um corre-corre, os caçadores não sabiam se atendiam o amigo ou se pegavam a caça. Licurgo, o cozinheiro, conservando o sangue-frio, foi quem verificou as condições do amigo derreado sob o toldo da barraca:

— Calma, gente, foi só um raspão. Ele não morreu, não. Tá desmaiado. — Limpou a ferida com sal e vinagre (então Alarico acordou, urrando de dor) e enfaixou a cabeça.

— Vamo voltar. Vamo direto pro doutor Juventino.

Voltaram. Quinca, que também sabia dirigir o caminhão, veio na direção. Foram horas de ansiedade, o corpo de Alarico estendido na carroceria, sobre colchões, cobertas dobradas e manchando tudo de sangue. No caminho de volta, em direção à cidade e ao consultório do Dr. Juvenal, a estrada passa pelo sítio de Lorenzo, e, claro, uma parada se fez necessária, para dar notícia do acontecido ao pai de Alarico. O qual, ao ver o filho deitado na carroceria, a faixa na cabeça empapada de sangue, entrou em desespero e começou a amaldiçoar, na sua linguagem e maneira agitada de napolitano, a todos os caçadores do mundo, e, principalmente, àqueles que ali estavam. Na sua ira santa, amaldiçoou até mesmo caminhão, no qual descarregou a raiva, dando chutes nas rodas, amassando a porta com murros formidáveis.

Enxugando as mãos no avental, vovó Cecília apareceu para ver do que se tratava, pois de longe ouvira o escarcéu do marido. Quando viu o filho derreado na carroceria, teve um ataque de nervos e desmaiou. Os caçadores não sabiam, agora, o que fazer: se levavam Alarico para a cidade, se atendiam a vovó ou se fugiam do velho enfurecido. Finalmente, ainda Licurgo, prestimoso, foi quem acalmou tudo: fez a vovó cheirar arnica, acalmou o velho e determinou:

— Vamo, gente, vamo pra cidade, não podemo perdê mais tempo.

Alarico ficou alguns meses em recuperação. Da aventura (ou desventura, sabe-se lá) ficou com uma cicatriz que, partindo da testa, adentrava-se pelo couro cabeludo, mal disfarçada pelos cabelos. Vovó Cecília recuperou-se do baque, e acendeu mais velas, rezou mais terços e fez promessas para que seu filho nunca mais voltasse às caçadas.

Vovô Lorenzo continuou na sua raiva ainda por muito tempo. A primeira providência que tomou, assim que o caminhão retornou, ainda dirigido por Quinca, foi, num acesso de insanidade, tirar as chaves do veículo e jogá-las no forno da olaria. O calor intenso fundiu o molho de chaves, que se transformou numa massa informe de metal, achada dias depois nas cinzas ainda quentes.

O caminhão ficou no curral, onde Quinca o estacionara. Ainda num outro acesso de raiva, o velho quebrou o vidro da cabine.. Já que não podia extravasar no filho, fez do veículo o alvo de sua raiva incontida. E proibiu Alarico, bem como a qualquer pessoa, de tocar no caminhão.

Abalado por tudo isso, Alarico meteu a viola no saco, como se diz, e não cogitou de manobrar o caminhão. Os companheiros de caçada foram deixando de lado o amigo, tão importante quando tinha o veículo de transporte. Assim que se restabeleceu de todo, mudou-se para a cidade. A olaria continuou funcionando, mas, a partir de então, o transporte dos tijolos passou a ser feito pelos irmãos Ítalo e Salvatore Costanzzi.

O velho Lorenzo embirrou de tal forma com o caminhão que se recusou a fazer qualquer negócio com o veículo, desprezando conselhos dos filhos para que obtivesse algum dinheiro com a venda. Ofertas surgiram nos primeiros tempos, mas com o passar dos anos, a degradação foi tomando conta do veículo, peças foram sendo retiradas e, por fim, ficou o esqueleto, empoeirado e decrépito.

Os netos não sabiam da tragédia que cercava o veículo. Para os garotos, era um veículo possante, que os levava onde sua imaginação indicasse. Naquela tarde especial, com a família reunida na sala, o velho Lorenzo deu o ar da sua presença. Saiu de seu quarto, foi festejado pelos filhos, filhas, noras, genros. Sem muito ligar, foi para o quintal e dirigiu-se para o curral.

Diversos netos estavam aboletados no caminhão. O ancião aproximou-se. Lembranças acudiram-lhe à mente. Saudade intensa. Uma ternura tão grande que lhe trazia imagens do filho Alarico. Por onde andará ele agora? Não queria que ele voltasse a caçar, mas também não tinha querido perdê-lo. Há anos que não manda notícias...

Os netos trepados no caminhão fazem uma algazarra. Quatro estão na carroceria e dois na cabine. Gênico, na direção, grita para os amiguinhos, atrás:

— Agora vamos pra floresta. Vamos caçar a onça pintada! — E fez aquele barulho com a boca e as bochechas estufadas — Borrroummm.....Borrroummm..... Borrouuummmm

Ao ouvir tais palavras, Lorenzo tem um sobressalto. O coração dispara. Todas as lembranças daquele dia fatídico vêm à tona. Parece que foi ontem: viu de novo o filho estendido na carroceria, roupas sujas de sangue, a cabeça enfaixada. Uma dor lancinante crava-lhe o peito. Falta o ar, as pernas bambeiam. Sem dizer um “ai!”, derreia-se no chão. Luizinho, esperto, pula da carroceria e chega perto do avô. O velho fita, sem ver, o intenso céu azul, sem nuvens. Rápido como um corisco, Luizinho corre para a casa, gritando, com certeza:

— Corre aqui, gente. O vovô morreu!

ANTONIO ROQUE GOBBO =

BELO HORIZONTE, 11 DE JULHO DE 2003

CONTO # 232 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 15/06/2014
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