227-O TESOURO DA INFÂNCIA - autobiográfico
Aos olhos infantis de Marcolino, o salão ficava imenso. Era ali que habitavam muitos seres de sua imaginação e foi ali que, depois de se acostumar com o mistério do local, passara horas em devaneios e brincadeiras. No começo, não tinha coragem nem de entrar no cômodo, aliás, de acesso impedido pois era mantido fechado à chave, se bem que a chave ficasse dependurada ao lado da porta. Porém, a presença do avô ainda permanecia na sua mente e o local estava sempre associado à figura do velho.
Ali tinha sido a grande “Casa Saldanha”, sortida loja de secos e molhados, ferragens, tecidos e miudezas, do velho Arlindo Saldanha. Ocupava a parte da frente da grande casa, que, nos fundos, era a residência da família: o avô Arlindo, viúvo, a filha Mercedes, o genro Diógenes e seus três filhos, Márcia, Melquíades e Marcolino.
O grande cômodo, agora sombrio e fechado, tem quatro portas ao rés da rua. Portas altas, de duas folhas almofadadas, encimadas por estreitas vidraças que permitiam entrar alguma claridade externa. Mais largo que fundo, o salão era dividido por um largo balcão de madeira, que corria de um extremo ao outro. Sobre o balcão, algumas vitrines pequenas. A parede do fundo era coberta por grandes armários com portas envidraçadas. Muito alto, era forrado com esteira de bambu trançado. Do teto pendia um fio com a única e fraca lâmpada de 25 watts.
Com a morte súbita do velho, a loja fora fechada. O genro, que não tinha queda para o comércio, simplesmente cerrou as portas e nada fez para liquidar o estoque. O comerciante tinha filhos e filhas, além de Mercedes, num total de onze. Ninguém quis continuar o negócio. O cômodo permaneceu fechado. Trancado à chave. Depois do período de luto, que a família guardou ciosamente, os filhos e sobrinhos começaram a visitar a loja, de onde saíam com as mãos (e sacolas) cheias: tecidos, calçados, as miudezas para as costureiras.
O material escolar foi muito solicitado pelos netos que iam à escola. Márcia, Melquíades e Marcolino jamais compraram lápis, cadernos ou borrachas: recorriam, sempre que preciso fosse, ao armário que ficava sobre o balcão e que ficou quase vazio do estoque de material escolar.
A medida que as mercadorias foram sendo consumidas pela grande família, a vigilância do pai Diógenes foi diminuindo. A chave ficava dependurada perto da porta, e Marcolino começou a fazer incursões por conta própria no grande salão misterioso.Na primeira vez em que entrou sozinho na loja abandonada, fantasmas de sua mente esvoaçavam pelo teto e se escondiam pelos cantos. Assustou-se com o reflexo de sua cara sardenta nos vidros dos armários. Mas logo criou coragem e voltou em seguida. Fazendo caretas para os vidros que lhe devolviam os trejeitos.
Desse local Marcolino, apesar da aura de mistério, fez seu recanto preferido. Esconderijo de seus gibis proibidos pelo pai, ali guardava também livros antigos, montagens de cartolina, papéis diversos e serpentinas de carnaval, enrolados em canudos pequeninos. Da fase de fazer bichinhos de tabatinga sobrara um grande número de galinhas, patos, aves e animais diversos, que ele, carinhosamente, mantinha numa seção separada do armário de portas de vidro.
Num canto estendia-se um velho colchão de palha. Marcolino arrastou-o para perto da porta, onde, por uma frincha, o sol entrava e iluminava com luz suficiente para que pudesse ler as revistas em quadrinho. Passava horas ali, deitado no colchão, lendo os gibis. Os irmãos não o incomodavam: Márcia estava sempre afogada em deveres do colégio e Melquíades vivia na rua, brincando com os moleques da sua idade. Eles não gostavam de entrar no cômodo e assim o caçula vivia à vontade. Lendo gibis. Imaginando coisas.
Guardava as montagens feitas em cartolina. Montou uma feira-livre, um altar, e até um aeroporto — eram feitos nas aulas de trabalhos manuais do ginásio — e Marcolino tinha o maior cuidado. Principalmente com os minúsculos aviões e veículos que transitavam pelo aeroporto, não colados sobre a cartolina-base, mas soltos, a fim de poder manipulá-los.
O tempo foi passando e a poeira acumulava-se nas prateleiras, sobre o balcão e até dentro dos armários fechados. Marcolino arrumou um espanador velho, a fim de limpar seus pertences. Retirava as montagens de cartolina, os bichinhos de tabatinga, as serpentinas, os livros e revistas, espanava as prateleiras e os objetos, e depois recolocava tudo de novo, organizadamente, nos seus lugares.
Nos anos de ginásio, os guardados de Marcolino nos armários envidraçados aumentaram muito. A pilha de gibis ocupava agora muitas prateleiras. As montagens se multiplicavam: uma Torre Eiffel, O Coliseu e uma estação ferroviária (com dezenas de vagões, locomotivas, etc.) foram acrescentados à coleção. Os cadernos cheios de anotações. As poucas fotografias de passeios, excursões, paradas das quais participara. Selos antigos para uma coleção, ainda colados em cartões e envelopes. Coleções de jornais do grupo escolar e do ginásio. Recortes de revistas e boletins de diversos tipos. Marcolino não jogava nada fora. Ajuntava e guardava tudo.
Terminado o curso ginasial, veio a grande virada na sua vida: à falta de escola superior na cidade, foi mandado para Campinas, a fazer o Curso Clássico, preparatório para a faculdade de Direito, que iria cursar. Não teve como levar nada de seu precioso tesouro guardado no salão maravilhoso. Sequer um gibi o acompanhou na nova residência, uma pensão modesta na Praça Carlos Gomes.
Melhor assim. Lá em casa ficam mais seguros, ninguém entra mesmo na “loja”. — Concluiu, ao final da primeira semana de exílio.
Terminado o semestre, nas primeiras férias do meio do ano, verificou,com prazer, que seu tesouro permanecia intacto. Mas pouca atenção deu aos pertences. Havia muito que contar aos irmãos, à mãe, ao pai; andar pela cidade, encontrar os colegas antigos. Não deu tempo nem para dar uma espanada geral, e o pó continuou acumulado sobre os objetos — anteriormente de grande estima.
Mais um semestre fora, e eis de novo Marcolino de volta ao lar. Os estudos tomaram-lhe todo o tempo, nem notou a passagem dos dias, semanas e meses. Ao voltar à casa paterna...
— Uai, que grande mudança! — Comentou com a irmã, assim que foram se aproximando de casa. As portas da loja estavam abertas, gente entrando e saindo, com sacolas de compras.
— Pois é, papai alugou o cômodo da loja para um homem de Ribeirão Preto. — Márcia explicou.— Agora voltou a ser uma casa comercial.
Entraram pelo portão lateral. Assim que se desvencilhou da roupa de viagem, desfeita a mala, Marcolino quis saber mais do negócio que o pai fizera com a antiga loja do avô.
— O cômodo foi separado em dois. No maior, com duas portas, agora é um negócio de verduras, frutas, essas coisas. No menor, está uma bicicletaria. — Explicaram-lhe.
— E aqueles armários de vidro? — Marcolino queria mesmo era saber de seu tesouro. — Que foi feito deles?
— Ah! Os armários, a estantes, o balcão, foi tudo vendido para o Leopoldo, cê sabe? Aquele negociante de coisas antigas. Soube que ele mandou tudo pra São Paulo.
— E as minhas coisas que estavam lá dentro?
— Cê tá falando daqueles gibis velhos e cadernos usados? O Leopoldo levou tudo embora.
Antonio Roque Gobbo –
Belo Horizonte - 4 de junho de 2003 —
Conto #227 da série Milistórias