219-TRADIÇÕES E TRAIÇÕES

A RELIGIÃO é um serviço de utilidade pública, como são as escolas, universidades e todos os setores ligados à educação e ao aperfeiçoamento das pessoas. Todas as religiões pretendem elevar a espiritualidade de seus fiéis, de tal forma que possam conquistar um estado de felicidade numa existência após a morte. Mas que negócio é esse de jogar para uma existência futura o estado de felicidade que podemos usufruir aqui e agora, nesse plano de vida?

A RELIGIÃO é uma etapa na vida das pessoas, é um período passageiro. Assim como freqüentamos uma escola, uma universidade, um curso, na busca de aprendizado e aperfeiçoamento cultural, ou técnico, assim deve ser a religião: uma escola, uma universidade em busca do conhecimento moral, ético, e da espiritualidade cada vez maior.

VAMOS ANALISAR a palavra RELIGIÃO. Vem do latim: raiz “ligare” (ligar) precedida do prefixo, também latim, “re”, que significa, “outra vez”, “novamente”. Religar. Religar o que a que coisa? Religar quem a alguém. Pressupõe-se que o Homem, decaído em sua condição espiritual, precisa de fazer uma religação com Deus. Portanto, religar o homem, no seu espírito, ao seu Criador, a Deus, ao Pai. Ora, essa re-ligação, essa nova ligação, pretendida pela religião, uma vez feita, dispensa a prática religiosa.

Se meu desiderato é comunicar-me diretamente com Deus, posso dispensar o mensageiro quando estabeleço a comunicação,. Ou devo ficar falando com o intérprete, que leva minha palavra a Deus, e Dele trás novas mensagens, recomendações, a resposta, enfim, às minhas mensagens. Que Deus é esse, propalado pelas religiões, que, para ouvir nossa conversa, nossos pedidos ou agradecimentos, precisa de “formulas”, lugares (templo, igrejas), e até mesmo de uma língua especial (como foi o latim na Igreja Católica até meados do século passado), para ser ouvido?

Portanto, uma vez adquirido um estagio de espiritualidade, a religião é dispensada. Ninguém precisa de intérprete ou mediador para conversar com seu pai. Ou precisa? Assim, na nossa relação com Deus, com o Pai, o Criador, o Senhor, o qualquer nome que seja dado à Entidade Máxima, não precisamos de intermediadores.

OS DEZ MANDAMENTOS foram, a princípio, decretos para reger as relações dos judeus durante os nos em que viveram no deserto. Como se sabe, os gentios (estrangeiros) na terra dos faraós foram retirados, num êxodo em massa, da nação ribeirinha do Nilo, liderados por Moisés, que pretendia levá-los de volta à terra prometida, ou seja, à região de Canaã. Como ficaram vagando no deserto durante mais de quarenta anos, foi necessário criar uma série de regulamentos, muito simples e práticos, que pudessem ser entendidos por todos e que tivessem a força de uma legislação.

Moisés, grande líder, foi o autor dessa lei. Consta da lenda que teriam sido doze decretos. Mas, quando submetidos ao conselho dos mas idosos das tribos, dois itens teriam sido recusados. Isto deu origem à lenda da ira de Moisés, que quebrou as “tábuas da lei” )na verdade, lascas de pedra gravadas, jogando-as de encontro a um bezerro de ouro, ídolo adorado pelo judeus. Mesmo assim, atento às necessidades do povo. Moisés levou em conta a resistência dos sábios e reformulou o código, com penas dez itens. Até onde se pode compreender, nada existiu de religioso nessa iniciativa de Moisés. Foi apenas constituição de uma legislação rude, para um povo semi-selvagem (os judeus constituíam uma casta de escravos no Egito). Nada que um grande líder não pudesse resolver, sem qualquer intervenção divina. Mas, no entendimento dos judeus no deserto, o código era tão elevado, tão além de sua compreensão, que adquiriu conotações de origem divina, colocando a criatividade de Moisés como resultado de um diálogo direto com Deus. Cheira mais a superstição. O que vai além da compreensão das mentes, o que não tem explicação no momento, é coisa de Deus ou do Diabo. Daí a ser confundido com espírito religioso, vai apenas um passo.

OS DEZ MANDAMENTOS foram, portanto, um código civil. O que era apenas regulamento para a vida dos judeus nas ásperas condições do deserto, foi, mais tarde, incorporado à religião judaica, como “Mandamentos”. E, posteriormente, adotado pela Igreja Católica como códice máximo para orientação dos seus fiéis. Não importando nem mesmo as palavras de Jesus, que resumiu toda ética de suas pregações em poucas palavras: “Amarás a Deus de todo teu coração e ao próximo como a ti mesmo.” Nem mesmo a essa norma de vida poder-se-á dar conotação religiosa. É uma simples questão de bem viver, de se conseguir um estado de felicidade. Nada de religiosamente transcendental.

JESUS , que não tinha nenhuma preocupação em fundar religião, seita ou partido, falou claro e em bom tom: “Vocês são o templo do Espírito Santo”. E mais: “Quando dois ou mais de vocês se reunirem para orarem e me invocarem, estarei entre vocês”. Ele não mandou: procurem um templo, façam este ou aquele ritual, rezem assim ou assado, com este formato ou aquela linguagem. Nada de mais simples: reúnam-se, lembrem-se de mim, e estarei com vocês, ajudando-os, orientando-os.

Se Jesus estivesse preocupado em fundar uma religião nova, ou uma seita dentro do judaísmo, ou mesmo um partido político, para conduzir seus liderados a um objetivo que não fosse o aperfeiçoamento espiritual, teria ele mesmo (era culto e provinha de família importante, próspera) escrito seus preceitos, Ou então, nomeado um de seus apóstolos para, como escriba autorizado, registrar o eu deveria ser transformado em códigos, mandamentos, ordenações, etc. etc. Mas, não. Jesus falava. Como falou Buda. Como falaram muitos outros Mestres Espirituais que visitaram a Humanidade, para esclarecer e mostrar o caminho.

Porém, mais do que falar, contar histórias morais e parábolas, os grandes Mestres deixaram a herança maior que é o exemplo de vida. Moisés, o grande legislador, era, como tal, severo e justiceiro. Se indignava com a ignorância e com o espírito supersticioso de sua gente. O exemplo de Cristo é o caminho do amor e da felicidade. Apesar de toda a tragédia final de sua vida = contestada por historiadores, que duvidam da morte de Cristo na cruz e sua posterior vida na Índia = o exemplo de Cristo é a busca da felicidade: curando, livrando as pessoas de julgamentos e condenações (que sempre serão falhos, pois são humanos); fazendo a alegria dos noivos na festa de casamento, quando transformou água em vinho; ressuscitando Lázaro (e, segundo outras biografias não reconhecidas no catolicismo, outras pessoas foram ressuscitadas por Ele, antes do seu ministério público). O exemplo de Cristo é de harmoniosa felicidade. Se condenava atos de seus contemporâneos, se procurava alterar os fatos (através de milagres) era tudo em prol de um mundo em que todos pudessem ser mais felizes.

Mas, a que foram reduzidos os grandes ensinamentos dos Mestres? Vamos falar do que nos toca mais de perto, do cristianismo, uma atitude de vida, cujos ensinamentos foram palavras ditas “para quem tiver ouvidos, que ouvisse”. Os judeus, os primeiros ouvintes dos ensinamentos de Cristo, simplesmente o ignoraram. Não convinha à ultra-codificada, hiper-dogmatizada e super-ritualizada religião judaica os novos e simples conceito de Jesus. A simplicidade do que Jesus propunha não se encaixava na complicada religião judaica. A adotar o que o Homem de Nazaré propunha, os templos ficariam sem utilidade, o dízimo deixava de existir, os tolos preceitos (que eram desobedecidos por subterfúgios hipócritas) eram anulados. E os rituais? E o poder dos sacerdotes sobre os fiéis? E o preconceito entre as tribos? E o conceito de propriedade, posse de bens materiais além do necessário para a satisfação pessoal de cada um? E a usura? Tudo iria pro lixo. Então, melhor desconsiderar os ditos e feitos de Jesus, e, melhor ainda, eliminar a fonte de tais ensinamentos, exemplo que poderia por de pernas pro ar toda uma cultura estabelecida em cima da ignorância, da supertição religiosa. Melhor assassinar (com ares de legalidade romana) o autor dessas idéias bizarras e ameaçadoras.

Todavia, a semente estava semeada. A idéia vicejou, dentro do mundo judeu, e, mais ainda, extra-muros do judaísmo: pelo mundo helênico e romano, a palavra foi disseminada. Paulo foi o grande propagador das idéias de Jesus. Surgiram então comunidades de pessoas eu adotaram as idéias de Cristo. Reuniam-se, como recomendou o Mestre, em grupos que oravam em nome de Jesus. E Jesus estava realmente entre eles. Gente simples, cheias de fé, de esperança, praticantes da caridade. Não praticavam nenhum ritual. A partilha do pão, nas reuniões, era mais uma prática de caridade, de dividir os bens, de irmanarem-se nas suas necessidades.

Assim eram nas comunidades da Grécia, pátria da liberdade de pensamento.E assim o foi em Roma, onde, ao contrário, os seguidores de Cristo eram perseguidos, mortos, assassinados (sob diversas justificativas legais da Lei Romana) e as reuniões para orações aconteciam em catacumbas, cavernas cavadas sob a cidade imperial. Mas não demorou a aparecer a idéia de igreja e a transformação das palavras de Jesus em religião. Portanto, s religiões ditas cristãs, não foram organizadas, sequer faziam parte do plano de Jesus – se é que ele tinha algum “plano” definido para disseminar suas idéias. E como criações dos homens, as religiões são imperfeitas desde o nascedouro. A organização de um corpo de pregadores da palavra, de estudiosos e intérpretes das palavras simples de Jesus (registradas, após sua passagem pela Palestina, por dezenas de biografias ou “evangelhos”), foi viciada desde o nascedouro. Os companheiros de Jesus foram transformados em apóstolos, o primeiro clero do cristianismo.

Construíram-se os primeiros templos. A teologia cristã teve início, com a discussão da “natureza” Jesus. Seria ele homem, homem e Deus, ao mesmo tempo, Filho de Deus ou um Mestre. A discussão, em vez de gerar esclarecimento, levou à polêmica, e já haviam dissidentes. Correntes diferenciadas, que brigavam entre si por se apresentarem como “única” ou “verdadeira”. Alguns proeminentes foram alçados (por quem? Com que autoridade? ) à categoria de bispos. Sabiam, ou diziam saber, mais a respeito das palavras de Jesus, do que Ele realmente transmitira em seus pronunciamentos simples e descomplicados. Vieram as “interpretações”. Algumas biografias eram preferidas pelas “autoridades religiosas” já constituídas. Outras biografias eram desprezadas, e taxadas de apócrifas. Não tinham autor, ou sua autoria era contestada.

Em Roma focou-se o estabelecimento do cristianismo como religião. Ainda que sobrevivendo nos subterrâneos da Cidade Eterna, perseguida pelos imperadores, foi em Roma que se organizou a primeira religião cristã, a Igreja Católica. Teodósio, imperador romano entre os anos 378 a 395, foi o grande promotor da igreja católica, quando oficializou o cristianismo. Como religião “oficial” do império romano, a igreja católica se estruturou e passou a ser um estado dentro do império. Um poder tão sutil que estendeu sues tentáculos até os confins do império romano estivesse dominando = e até mais além.

O resto é história, bem documentada. O poder crescente de um organismo internacional, uma religião “oficial” durante séculos em muitos paises, e supra-nacional, um organismo que hoje, diríamos, uma empresa multinacional. Infinitamente distante das palavras de Jesus: “Meu reino não é deste mundo”.

Os desdobramentos das doutrinas, das interpretações da palavra de Cristo deram origem a um sem números de religiões: dissidências diretas do catolicismo(as igrejas protestantes), a Igreja Ortodoxa, diversas seitas que ainda existem no Oriente Médio. Tudo coisas dos homens para os homens, com lamentável distorção dos ensinamentos do Mestre dos Mestres. A fundação do islamismo, ou a religião muçulmana, é um dos pontos mais importantes nesta longa história de traição as palavras de Jesus. E notem que todas os cismas, separações, interpretações (por mais bizarras que sejam), sempre são em nome Jesus ou a respeito do que ele falou e que consta em apenas quatro (das dezenas de biografias “apócrifas” ) sobre o Mestre.

Portanto, a transformação da mensagem de Jesus em religião nada mais é que o exercício do poder no campo da espiritualidade. A religião é necessária, sim, enquanto orientadora da moral, dos costumes, da espiritualidade. Quando extrapola essa necessidade e passa a ser uma prática obrigatória, para toda a vida, subjugando o pensamento e pretendendo manter um vinculo “eterno” entre os fiéis e os sacerdotes (qualquer que seja o nome que lhes seja dado), torna-se uma empulhação e exploração da crendice popular.

Vemos, assim, como a tradição oral vai sofrendo grandes traições, para se acomodar às necessidades humanas e como essas traições são institucionalizadas em prol do exercício do poder sobre mentes e corações humanos.

Belo Horizonte (MG), 27.04.2003

# 219 da SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/06/2014
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