Utopia
De lá do alto...
Via-se toda a aldeia, ainda mergulhada no nevoeiro.
Era manhã; cansado respirei fundo e comecei a descer aquele morro. A cabeça fervilhava de pensamentos, aflições... Eu estava temeroso e tinha muita fome. Foi quando um “bom dia” sonoro e alegre me fez erguer os olhos. Um senhor quarentão, boa estatura, cara risonha vestindo uma camisa vermelho-preta quadriculada olhava-me com simpatia. Animado, respondi ao cumprimento e acrescentei: Sou o Joaquim, muito prazer. Joaquim, o prazer de conhecê-lo é nosso. Vamos tomar um cafezinho... Nina, venha conhecer o Joaquim...
Admirei-me da simplicidade natural da Nina. Tomei um delicioso café acompanhado de cheirosos bolos de milho. Reanimei-me e fiquei mais conversador. O Joaquim mostrou-me suas duas crianças: João e Maria já prontas para irem à escola. O friozinho daquela manhã não parecia incomodá-las em suas roupinhas simples. Sentia-me à vontade naquela casa, era como se o Antônio fosse um velho amigo que não via há muito tempo e a sua esposa uma irmãzinha querida. Perguntei por que as crianças não usavam uniformes e foi então que o Joaquim me contou a história da sua aldeia.
Meu caro Joaquim, eu tinha vinte anos quando eu, minha Nina e outras cinco pequenas famílias decidimos abandonar a nossa cidade. O país estava em guerra. Os motivos das guerras todos sabemos. Ou não sabemos. São disputas por mais territórios, por um campo de petróleo, por um deus, por um barco capturado, pela obrigação de cobrir o rosto, pela proibição de comer aquela comida, pela defesa de um pedaço de pano colorido que deve fundir todas as aspirações, todos os medos, todos os valores de um povo... Muitas regras; mas pouca ética, pouco coração...
Aquele pequeno grupo caminhou por muitos dias e noites. E foi também numa manhã, cansados; que descemos aquele morro por onde você chegou. Instalamo-nos aqui! Longe do mundo, de suas regras e de suas misérias humanas. Aqui, a nossa “constituição” é a voz do coração. Não há uniformes, não há “divisões”, todos se conhecem e respeitamo-nos mutuamente: crianças, jovens e velhos. Não lhe chamei de “Sr. Joaquim”, o tom da minha voz bastou-lhe para reconhecer o meu respeito pela sua pessoa. Somos livres e estamos livres. Livres na melhor acepção da palavra. Cada um professa a sua fé, se quiser professá-la, planta a sua comida e até faz trocas se lhe convier, a professora tem prazer em ensinar; não temos salário, não usamos moeda. Demonstramos nossa satisfação com um cumprimento e um sorriso cordial e até oferecemos a nossa comida sem nenhuma intenção inconfessável. O coração é o nosso guia, o nosso mestre. Assim temos vivido nesta pequena aldeia.
De volta ao mundo real, vez por outra tenho pensado na aldeia do Joaquim. Já me perguntei se realmente eu estive naquele lugarejo ou se foi uma das tantas histórias que li naquele livro “As viagens de Gulliver”, onde povos fora do comum habitavam lugares fora do comum.
Leis do coração, respeito, não há uniformes nem salário, ética... Hum; deve ter sido uma viagem do Gulliver.