O fim da picada
 
Desde pequeno aprendera com os pais e professores que “em boca fechada não se entra mosquito”. E, assim, trancou o maxilar em cofre sem chaves. Emitia frases vagas, concordando com praticamente tudo. Balbuciava concordâncias monótonas “pois é...”, “verdade”, “desse jeito...”.

Mas os mosquitos continuavam o atazanando, procurando outros orifícios, invadindo sua cabeça pelas orelhas. Eram mosquitos de vários tipos:

que apareciam repentinamente e lhe grudavam nas roupas e lhe perseguiam os gestos e pousavam na mucosa dos olhos;

os sem olhos e com asas raquíticas, desproporcionais ao corpo redondo, pareciam bolinhas voadoras, que, ao serem mortas com palmas, explodiam em fétido odor de cocô;

alguns apareciam em bando, formando uma grande mão flutuante que lhe ameaçava com dedos indicadores ou punho fechado, mas se desfazendo em minúsculos cinza no efeito do golpe;

que surgiam como libélulas, joaninhas e borboletas, para metamorfosearem-se depois num nada decepcionante e zumbidos nos ouvidos;

À noite, todos os mosquitos inundavam seu quarto, fundindo-se à escuridão. O ar se tornava como no deserto, fuligem de minúsculas asas, patas, antenas a lhe entupirem as narinas, a lhe vedarem as arestas das pálpebras, a pousarem nos pelos alérgicos, a assenhorarem-se dos seus sonhos e imporem a clausura da insônia torturante...

Até que chegou o Natal. A família se reunia numa solidariedade histérica. Os avós se fizeram presentes na moldura sépia da sala. Sérios. Eram tios, primos, sobrinhos e conhecidos, acompanhados de cônjuges, namorados e dois carrinhos de bebê. Distribuíam tapinhas e beijinhos, lambuzando-se de pernis, encharcando-se de vinho barato e cerveja quente, trocando novidades fúteis e disputando ora dores ora louvores, por entre enfeites de anjinhos, de amigos, de bicos-de-papagaio e de penduricalhos com bolas douradas. No centro, o pinheiro tão artificial quanto a neve.

Depois do amigo, chegou a hora do inimigo oculto. Ele, que até então permanecia hermético no fundo da sala, tentando afugentar com sua rigidez atônita os incômodos mosquitos, ouviu assombrado a tia falar: “Meu inimigo oculto é a pessoa mais calada do mundo, por isso eu trouxe esse presentinho”. Ela, com dobrinhas no pescoço, cheinha como uma estátua de gesso de gordas na praia, com gestos mimosos e voz afetada, chamou-o e entregou um embrulho quadrado. Era um megafone de brinquedo. “Ele funciona”, disse a tia, “é só apertar o botãozinho e falar”.  

“Fala! Fala! Fala” todos começaram a gritar em coro e palmas. Ele, então, levantou a mão canhota à boca. O megafone tremendo entre o polegar, o indicador e o médio. O lado esquerdo do rosto numa tentativa de sorriso dissimulado. Os olhos percorrendo os corpos. Surdo. Os lábios se desprenderam num esforço de sussurrar um “muito obrigado”, mas abriram mais que o habitual. O hálito expirou liberto. Via-se uma sutil escara no lábio inferior. A mandíbula despencou, depois dilatou numa caverna medonha de onde saiu um jato de marimbondos - agulhas aladas, portadoras de gotículas ácidas. O enxame parecia uma tempestade de areia no deserto, apoderando-se dos aposentos e picando o que encontrava pela frente: olhos indiferentes, bocas boçais, ouvidos vagos, infiltrando canais insensíveis e molestando mordidas na cabeça e no peito (sim, os marimbondos tinham dentes). Era um festim doloroso, uma dança primitiva de tapas, urros e murros. Depois do grande vômito de himinópteros, ele conseguiu falar articulando a frase como um orador: 

"Sempre me disseram que em boca fechada não se entra mosquito. No meu caso, mantive-a fechada para não saírem os marimbondos".


Enfim, o fim da picada.
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 29/05/2014
Reeditado em 31/05/2014
Código do texto: T4824046
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