O velho Ulisses

Cada vez mais longe de casa, Ulisses, de relance, se reconheceu dentro de um ônibus, no espelho côncavo, mediu com indiferença, os passageiros que estavam prestes a descer. Estava exausto. Os olhos cor de âmbar que outrora foram capazes cativar até mesmo a ninfa Calipso, agora estavam embotados, destituídos de encanto. Trazia os ombros cobertos por um casaco esfarrapado e os cabelos estavam crescidos e carregados de fuligem. Estava irreconhecível e sobretudo desesperançado.

Quedava nostálgico de quando em quando à medida que o ruído indistinto do subúrbio lhe atravessava o peito. Mas agora Ulisses não pensava mais em Ítaca. Tivera notícia, aliás, que, com a chegada do fascismo na velha Hélade, Ítaca caíra, fora tomada e posteriormente loteada, sem que se soubesse ao certo para que fim. Diversas e contraditórias eram as notícias que lhe chegavam acerca de Penélope e Telêmaco, mormente através dos cantos dos aedos. Mas os aedos não inspiravam nenhuma confiança no coração pesado do velho Ulisses, insistiam em continuar cantando suas misérias, recheando-as de mentiras; isso o enervava profundamente. Pouco a pouco, sem o notar, deixou de pensar em sua mulher, em seu filho e em sua cidade.

Passava-lhe pela memória apenas, rara e furtivamente, a época de guerreiro garboso quando fazia ceder qualquer resistência à simples injeção de seu carisma e de sua astúcia inalienável. Mas há muito tempo sua astúcia se transformara em sórdida e ineficiente velhacaria e seu carisma empalidecera irremediavelmente. “Eram bons tempos!”, divagava, nessas ocasiões, o lastimoso Ulisses. Entretanto podia-se dizer que esse era seu único capricho, de resto não olhava mais para trás. Punha-se resignado, “os valores do mundo são outros agora, Odisseu, você passou.”.

Muita coisa havia mudado de fato. De totalitarismo em totalitarismo o mundo dos homens e dos deuses transfigurara-se de tal modo que mais nada se reconhecia dos velhos séculos. Poseidon organizara um motim, destituíra Zeus e transformara Palas Atena em enfermeira eterna do cego e perturbado Polifemo, retaliação, murmurava-se. Mas misteriosamente Poseidon não esmagou Ulisses. Mais tarde, senil, liberou o mundo em seu próprio caos, e exilou-se em uma ilha submersa, de coordenadas desconhecidas. Só com o passar do tempo é que se percebeu o que fizera Poseidon; com o auxílio de Dionísio, invertera a sorte de Ulisses, e o condenara a um eterno desengano: sempre que desejasse tomar o caminho da esquerda, tomaria o da direita; sempre que desejasse prosseguir, retrocederia e assim por diante. O classicismo, este, desgastara-se com o passar dos séculos e séculos: não servia mais de parâmetro estético ou político. De nada servia. Ulisses passou a apresentar-se como João Castro, pois mesmo a herança etimológica da antiguidade clássica havia se convertido em símbolo do mau gosto.

Ulisses dorme, com a cara junto ao vidro, imerso em monotonia. Não sonha.

Acorda sobressaltado com berros, o condutor lhe grita bêbado vagabundo com uma brutalidade incompreensível. Desce trôpego, à força de xingamentos os mais vis. Ulisses não reage mais. Está cansado de lutar, foi o que fizera durante toda sua vida, e ninguém melhor que ele sabia o quanto era absorvente resistir. Já bastava. “Não mais!”, repetia sempre o anacrônico Ulisses.

Claudica por ruas escuras até estacar diante de um beco. Ruma para um ângulo que lhe parece mais escuro e, como pode, aconchega-se sobre papelões.

Ironicamente Ulisses tornara-se um mendigo. Tateia na escuridão em busca de uma bagana de cigarro, enquanto o futuro penetra, como faca, a carne da noite.

Welliton Oliveira
Enviado por Welliton Oliveira em 28/05/2014
Código do texto: T4823583
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