Apresentação do livro 'O Paulista'
Apresentação do livro 'O Paulista'
por Augusto Cesar de Barros Cruz
Um bom livro proporciona aos seus leitores uma vasta gama de sensações. A começar pelo texto, que transmite conhecimentos ou desenvolve a imaginação, através das histórias ou estórias narradas. Chama também a atenção do leitor para o conjunto da obra de quem o escreveu, despertando o interesse pelos ideais e experiências vivenciadas pelo mesmo. Enfim, traz recordações de um momento passado, com um sentido como que mágico, quando o livro foi adquirido ou recebido como presente. O volume de 'O Paulista' proporcionou-me tudo isso.
Os temas 'bandeiras' e 'bandeirantes' têm sido explorados por nossos historiadores, exaustivamente, dada sua importância na formação de nossa gente e no estabelecimento de nossas divisas. Curiosamente porém, a literatura brasileira de ficção, não procurou desenvolver até hoje esse filão. Diversos escritores abordaram em profundidade os problemas e os aspectos regionais do Brasil. No Nordeste: Graciliano Ramos, José Lins do Rego e José Américo, sem falar de Euclides da Cunha, com sua obra monumental, 'Os Sertões'.
Há atualmente vários romancistas maranhenses tais como o ex-presidente José Sarney e o diplomata Josué Montelo, com a atenção voltada para seu Estado.
Nosso maior escritor regional, Guimarães Rosa, recriou a vida e a paisagem do Norte de Minas Gerais, com seus vaqueiros andejos e sonhadores. No sul, temos Simões Lopes Neto, com seus 'Contos Gauchescos', Assis Brasil, Érico Veríssimo e outros. As lutas farroupilhas desencadeadas nas coxilhas riograndenses, despertaram sempre muito interesse dos escritores. Em São Paulo contudo, os contistas Monteiro Lobato, Cornélio Pires e Amadeu Amaral, passaram de leve pela saga bandeirista ou pela epopéia das 'Entradas'.
Nem Alcântara Machado, o filho, um ficcionista de grande valor, enveredou por esse caminho, embora o pai tenha sido um de seus principais estudiosos, com a magistral obra 'Vida e Morte do Bandeirante'.
Igualmente Paulo Setubal, embora faça referências à importância da atuação dos paulistas na luta contra os holandeses, também não desenvolveu o tema. Foi assim necessário que um ituano, dedicado à sua profissão liberal, resolvesse resgatar os costumes de uma época que já se fazia longínqua, numa trama policial bem urdida, que foge aos padrões normais desse tipo de relatos. Escrito em 1895, no início da República, sente-se o acanhamento de um escritor não profissional, que compelido pelas dificuldades econômicas por que passava o país, é levado a dedicar seu tempo a uma atividade sabidamente não lucrativa.
O Brasil atravessava uma fase difícil. Abolida a escravidão poucos anos antes, derrubado um regime de governo que impregnava a alma de uma população não conhecedora de outros sistemas, enfrentando assim pela 1ª vez em sua história, uma ditadura militar, estavam todos atônitos.
A desorganização econômica, com a falta de mão de obra, levou a uma especulação desenfreada, que seria cômica se não fosse trágica, o chamado 'Encilhamento', objeto de um dos mais saborosos livros de nossa literatura. Dessa forma, quase que premido pelas circunstâncias, homem culto, interessado na formação histórica do país, espírito inquieto, buscando sempre os valores mais altos do ser humano e da nacionalidade, pôs-se esse advogado a passar para o papel a lenda que provavelmente ouvira de seus antepassados.
Assim surgiu 'O Paulista', escrito por Augusto Cesar de Barros Cruz, que se assina apenas com o pseudônimo de 'Austo Rasec', como que envergonhado por enveredar por um campo que não era o seu.
Conta ele um episódio ocorrido no ano de 1696, isto é, 200 anos antes da época em que foi escrito e editado. O autor, como já referido, nasceu em 1855, formando-se advogado pela Faculdade do Largo de São Francisco, num período em que essa escola, chamada de as 'Arcadas', era famosa pelo seu ambiente boêmio, impregnado pelo ceticismo iluminista.
Apesar disso, o jovem estudante não se deixou influenciar pelo ambiente circunstante, mantendo firme sua fé religiosa e católica, que foi sua marca indelével até o fim da vida.
Voltando à sua terra natal, resolveu dedicar-se à política, sendo eleito vereador e exercendo o cargo entre 1887 e 1890. Interrompeu porém esta carreira, pois, tendo sido nomeado promotor público da cidade de Rio Novo (atual Avaré), lá ficou por mais de 10 anos, exercendo aí, como era de seu feitio, intensa atividade.
Naquela cidade, dedicou-se concomitantemente ao magistério, fundando o Colégio São José e ao jornalismo, criando o jornal 'O Rio Novense'. Ensaiou também seus primeiros escritos com o Almanaque de Rio Novo e de São Sebastião do Tijuco Preto (atual Pirajú). Voltando à Itu no começo do século XX, engajou-se imediatamente em duas entidades sem fins lucrativos, onde poderia exercitar seu espírito filantrópico. Tendo sido fundados recentemente o Asilo de Mendicidade Nossa Senhora da Candelária e o jornal católico 'A Federação', idealizados ambos pelo pároco da cidade, Pe. Elisiário de Camargo Barros, que era seu amigo, a eles empregou seus últimos anos de vida, pois veio a falecer em 1905.
A edição original da obra deu-se em 1895, sendo impresso pela Tipografia do Apostolado, de Itu, o que demonstra que o autor, embora residindo fora, continuou a manter seus laços com a cidade natal.
O exemplar com que fui presenteado por um amigo, foi por ele adquirido no Rio de Janeiro, 20 anos após a publicação, o que mostra que sua divulgação não ficou restrita à nossa terra. Esse exemplar traz uma dedicatória, para mim, comovente, pois foi escrita nos últimos dias de vida do doador, achando ele que eu poderia ser o guardião de um documento que julgava ter grande valor. Na introdução explicativa da 1ª. edição, faz o autor referencia a dois outros volumes que pretendia publicar, a respeito da escravidão no Brasil: 'Senzala' e 'Quilombo'. Infelizmente, não tenho notícias de que esses livros tenham vindo a lume, pois deveriam, dada a forma de abordagem dos assuntos adotada pelo nosso conterrâneo, e pelo seu estilo, trazer relatos interessantes e pitorescos.
Talvez algum de seus 9 filhos ou seus descendentes, que se espalharam pelo interior de São Paulo, possa nos dar alguma informação a respeito.
Com relação ao texto do livro em apreço, deve-se destacar, além da estória propriamente dita, o relato de uma série de aspectos da região ituana, relativos tanto à época em que transcorrem os acontecimentos narrados, quanto ao momento em que a obra foi escrita, 200 anos após. Chama-nos a atenção inicialmente o fato de que o bairro do Pirapitingui já abrigava na ocasião uma importante colônia de leprosos. Em minha meninice, tive a oportunidade de conhecê-la, quando em viagens, passava-se pelo seu interior.
É das lembranças mais marcantes e dolorosas que guardo em minha memória. Fico sem saber o porque de nossa cidade ter se tornado desde seus primórdios, um refúgio desses infelizes.
Esse fato, triste por um lado, teve o mérito por outro, de permitir o aparecimento de duas figuras exemplares, modelos de santidade, os Padres Antônio e Bento, que dedicaram suas vidas a esses doentes.
Continuando com a descrição feita, ficamos sabendo que na região habitavam tribos de índios, alguns bravios. Segundo ele, tratava-se de índios Carijós, que estavam estabelecidos, às margens do Córrego do Canjica, entre Itu e Salto. Ao explorar argila cerâmica naquele local, na década dos 50, várias vezes encontrei pontas de flecha de silex, trabalhadas com esmero, e potes de barro destinados a enterrar os mortos.
Tenho contudo uma dúvida a respeito de qual seria o grupo indígena em questão, pois havia em Itu, no século passado, uma tradição de que algumas famílias antigas e numerosas da região, como os Amaral, que se espalhavam entre nossa cidade, Indaiatuba e Capivari, eram fruto de miscigenação com os primitivos donos da terra, sendo por isso cognominados de 'Bororós'. Ficamos sabendo também pela descrição feita, que, logo abaixo do centro da cidade, do Córrego do Taboão até Salto, havia uma mata densa, onde se encontravam animais ferozes. Aliás uma crônica publicada em jornais locais, referente à Capela de Santa Rita, relata reclamações de antigos freqüentadores da Igreja de São Luís, então desativada, e que obrigados a freqüentar a nova Capela, tinham para isso que enfrentar grandes perigos, ao atravessar a mata virgem. Note-se que a distância não ultrapassava uns 500 metros.
Há a propósito uma certa dúvida quanto a datas, pois já existia então a igreja do Bom Jesus, bastante antiga e que ficava próxima à de São Luís. Após a digressão feita pelo escritor, a respeito da cidade de Itu, continua o relato sobre a expedição, que, seguindo um roteiro comum a outras bandeiras, avançou até o Rio Paraguai, e subindo-o, foi parar no Mato Grosso, passando às vertentes de rios tributários do Amazonas. A partir daí, as lutas com indígenas e peripécias de toda a ordem os levaram à Bahia, onde descobriram as ruínas de uma cidade abandonada, na qual havia restos de escritas em caracteres desconhecidos, e que chegaram a ser constatados mais tarde, por uma expedição de 1753, chegando as inscrições a serem reproduzidas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Esse acontecimento chama-nos a atenção para um mistério que cerca nossa história.
Até hoje, acreditou-se que os habitantes de nosso Continente vieram da Ásia, via Alasca, há mais ou menos 12.000 anos. Essa teoria, defendida principalmente pelos arqueólogos norte-americanos, explicaria o tipo físico mongólico de nossos índios, mas tem sido contestada por estudos mais recentes. Não só Thor Heierdhal demonstrou a viabilidade de migrações da Polinésia, através da Patagônia, mas também pesquisas recentes no Maranhão, demonstraram existir sinais de presença humana bem anteriores. A descoberta de caracteres rúnicos e tipos de hieróglifos em alguns pontos do país, como os reproduzidos no livro, fazem pensar em muitas hipóteses, como por exemplo, a de intercâmbio com outras civilizações pré históricas. Enfim, estamos na presença de um volume que, a par de contar episódios aventurescos, tráz lições históricas, geográficas e sociológicas e especialmente, de comportamento ético.
Num momento em que o Brasil atravessa uma de suas piores crises de formação cultural e moral, é bom ler um relato como este, leve, sem grandes atavios literários, mas que prende a atenção e nos ensina.
Recentemente tive a oportunidade de elogiar em artigo de jornal, a Editora Ottoni pela sua iniciativa de republicar os escritos de Cornélio Pires. Agora, este novo serviço à nossa comunidade, coloca-a como vanguardeira no resgate de vultos e instituições que não podem cair no esquecimento. Agradeço ao seu proprietário a oportunidade que me dá de prestar esta pequena colaboração à cultura de nossa gente.
Itu, 28 de Fevereiro de 2005
Eduardo Pacheco e Silva
Edição original 1895.
Nova edição a venda a partir de 15 de abril de 2005.