As surpresas da herança genética

Havia uma moça de pele muito alva, cabelos louros e olhos escuros que se casou com um rapaz negro com toda ascendência africana. Os pais dela também eram claros, mas tinham os cabelos e olhos escuros.

Não havia dúvida de que a cor do seu marido predominasse, pois de acordo com a genética é o que acontece. Os filhos desse casal teriam que ser um pouco mais claros que o pai, mas dificilmente seriam iguais à mãe. Mas quando o primogênito nasceu, todos se surpreenderam. Ele tinha a pele muito alva e, pasmem, os olhos eram azuis intensos. Aquele azul que não passa despercebido nem mesmo pelos poucos observadores. Não havia nele nenhum sinal, nenhum traço, que fosse parecido com o pai. Os dias se passavam e ele parecia estar cada vez mais claro. Talvez fosse por causa do cabelo que crescia muito louro.

Quando a mãe estava sozinha com ele, não havia problema. Todos percebiam que ele era o seu filho. Mas quando o pai ia buscá-lo na creche era aquele comentário. No primeiro dia em que foi pegá-lo, teve que provar através de documentos que era o pai dele. Mas aí, tudo bem, ele não se importou. Afinal era sinal de que a creche tinha responsabilidade na entrega das crianças. Na verdade, ele ficou um pouco constrangido, mas o lado racional imperou e, assim que viu o filho correr com os bracinhos abertos, ele nem se lembrou mais do incidente.

O que mais o aborrecia eram as brincadeiras dos amigos que diziam que nunca haviam visto negro ter filho assim. Alguns chegavam a lhe aconselhar a fazer o exame de DNA. A confiança que ele tinha na esposa era muito grande e, por isso, se sentia ofendido. Apesar de ser uma pessoa pacata, de temperamento equilibrado, um dia perdeu o controle e chegou a brigar na rua. Aquilo era uma grande calúnia! Imagine insinuar que a esposa o traíra?

Certa vez, ao passar com o filho na rua, um pedreiro gritou lá de cima da construção:

— Que bom que o boné ainda está servindo!

Involuntariamente, ele levou a mão à cabeça, ajeitou o boné e, só aí entendeu o significado do que havia ouvido. Ficou vermelho de raiva e teve vontade de deixar escapar tudo que era palavrão, mas se conteve ao olhar para os inocentes e angelicais olhos que o fitavam cheios de confiança.

Certa vez, ele não entendeu a pergunta que o dono da banca de revista lhe fez. Aliás, essa pessoa era amiga das leituras, pessoa estudada mesmo. Ela lhe perguntou:

— Como vai a sua Capitu?

Ele voltou-se e com um olhar intrigado e perguntou:

— Você está se referindo à minha esposa?

— Sim – disse ele.

— Mas o nome dela não é esse e ela não tem apelido.

O homem disse:

— Esqueça! Deixe pra lá.

Ele se retirou com os pensamentos voltados para o que acabara de ouvir. Quando chegasse a casa ia perguntar a esposa se ela conhecia aquele fulano de tal. Só que acabou não falando nada. Achou melhor ignorar, até porque já havia esquecido o nome que ele lhe dissera.

Numa tardinha, dessas bem amenas, estava passeando no parquinho com a esposa e o filho. Aproveitou para perguntar a ela se havia alguém de olhos assim tão azuis na sua família. Ela ficou pensativa e demorou a lhe responder. Esses minutos nunca demoraram tanto a passar e, foi um verdadeiro alívio quando ela falou que a mãe lhe dissera que o avô dela tinha os olhos assim, bem azuis. Agora era a sua vez de ficar refletindo para ver se conseguia relacionar o grau de parentesco desse avô em relação a seu filho. Concluiu que era bem mais que bisavô da criança. Não sabia nem o nome de alguém que era pai do bisavô. Será que tinha jeito de puxar a alguém tão distante?

Olhou para a esposa e viu que ela tinha o olhar transparente, desses em que se vê a alma e nele não havia nenhuma inquietação. Eles irradiavam apenas serenidade. Se ele tivesse lido “Dom Casmurro” saberia que os olhos dela eram diferentes dos dissimulados olhos de Capitu, mas mesmo sem saber disso, ele deduziu que ia enterrar aquela bobagem e ser feliz com ela.

Olhou para o filho, que lhe sorriu, e disse: papá... papá... Ele chegou à conclusão de que aquelas pessoas lhe tinham, na verdade, uma grande inveja. Quem não gostaria de ser pai de uma criança como a sua? Tratou de ser feliz, pois era isso o que o filho lhe proporcionava todas as vezes que dizia: Papá! Papá!

Déa Miranda
Enviado por Déa Miranda em 28/05/2014
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