O Shoá De Sarah
"Ela se chamava Sarah e não tinha nem oito anos, sua vida era doçura, sonhos e nuvens brancas, mas outras pessoas decidiram de outra forma [...] Era uma pequena menina sem história e bem sábia, mas ela não nasceu como você aqui e agora" (Jean Jacques Goldman, 1982)
Foi com esses versos que em 1983 o cantor e compositor francês Jean Jacques Goldman contou pro mundo e para sua filha a história de Sarah, uma pequena menina judia polonesa que foi vitimada pelo holocausto em seu país. Na verdade a canção é uma sugestão bem clara dos destinos pelos quais passaram alguns grupos durante o auge regime nazista na Europa. Sarah pode ser, e representa os milhares de rostos infantis que foram forçosamente apresentados a uma guerra sangrenta em 1939. Representa ainda as vidas que tiveram seu curso inexoravelmente alterado pelo exercício de guerra em todo mundo. Tentaremos dessa forma reconstruir ou construir a história de Sarah através da canção cujas reprises ainda invadem a cena musical francófona.
"A foto não era boa, mas podemos ver a felicidade em pessoa e doçura da noite"
Sarah acordou sobressaltada no dia da foto. Era uma manhã como todas as outras até então, simples e bela. Varsóvia acordou de bom humor, era uma manhã clara e antes da mãe acordar Sarah já estava acordada afinal fotografias não eram tão comuns assim pra ela.
Um avião passou apressado pelos céus bem em frente a sua janela, e ela não pôde deixar de pensar na movimentação pela qual a cidade estava passando nos últimos dias. E não era só a cidade, sua casa também estava bastante movimentada, aliais movimentada não, a palavra era nervosa. O pai só vivia com o ouvido no rádio e de olho no jornal, a mãe e as amigas da mãe também andavam bastante estressadas, mas isso não era assunto para agora, logo chegariam Ruth, Anna e Jeremy para a foto.
Levantou-se e foi verificar a boneca. Era uma boneca de porcelana que tinha ganhado no seu aniversário de seis anos, exatamente há um ano. Depois de amanhã ela faria sete e a foto faria parte do presente, apesar de saber que não haveria festa, e mesmo que os pais não tivessem explicado o motivo ela estava feliz, pois para foto viriam seus melhores amigos e alguns familiares...
Os pais de seus amigos só chegaram com eles a noite, Sarah já estava cansada de esperar e em alguns momentos desistido da foto. A casa tava uma bagunça, o pai andava pra lá e pra cá junto com o avô e um tio. A mãe e a avó dentro da cozinha falavam o tempo todo sobre coisas que Sarah não entendia muito bem, os homens na sala também falavam de invasões, mudanças e até de guerra. Ela não sabia o que significavam bem essa palavra, mas pelo estado dos homens na sala podia imaginar que era algo muito ruim, e por isso não ousava perguntar.
Finalmente chegou a hora da foto. Os amigos, Ruth, Anna e Jeremy estavam lá, os pais, os avôs, e os tios, tudo num pequeno instante de harmonia e serenidade misturada a desconfiança e ansiedade dos rostos eternizados em fotografias, mais ou menos como a Europa em 1939.
"Mas outras pessoas decidiram de outra forma"
Algum tempo depois da fotografia Sarah tinha plena consciência da situação de seu país e apesar da pouca idade sabia que a situação da família enquanto judia não era nada boa.
Os alemães haviam invadido a Polônia desde setembro de 1939, a invasão deflagrou a guerra em todo continente. A França e a Inglaterra declararam guerra à Alemanha quase que imediatamente após a invasão do país e uma onde de esperança varreu a população da Polônia, no entanto o quadro não era nada animador. Já em outubro de 1939 ficou claro que a guerra se estenderia por tempo indeterminado. A polônia foi um país duplamente invadido, pois além dos alemães os soviéticos em 17 de setembro também invadiram o leste do país. Reações armadas foram organizadas, no entanto o aparato militar polonês era pequeno perante as armas inimigas e ajuda esperada da França e da Inglaterra não veio, pois um confronto com a União Soviética a curto prazo era impensável, os planejamentos teriam que serem arregimentados para uma vitória a longo prazo.
Anexada a Polônia pelos Alemanha, entravam em cena agora as políticas de eugenia e limpeza racial tão caras a alguns setores das lideranças nazistas. O governo polonês exilou-se na Inglaterra juntamente com sua marinha e a população estava agora inteiramente a mercê das marés da guerra. A Polônia só seria desocupada ao final da guerra em 1945.
Nossa pequena menina em meio a tudo isso, logo após a ocupação foi obrigada junto com os pais e os quase dois milhões de judeus poloneses a usar braçadeiras com a estrela de Davi bordada sobre um fundo preto identificando sua origem. Ela simplesmente não sabia o porquê daquilo, mas usava com espanto a braçadeira nas raras vezes que saia a rua. Aliais essa era uma coisa, talvez a única, que mais a incomodava naquele momento, não poder sair. Ela que adorava as ruas de Varsóvia sentia falta dos passeios que fazia com a sua mãe, e com Anna e a mãe dela. Os amigos também lhe faziam falta, ela os viu pela última vez poucos dias após a foto, na verdade ela vira Ruth que viera se despedir dela junto com a família. Ela não perguntou pra onde iam, mas sabia que tinha a ver com as braçadeiras e com os tanques de guerra e os soldados que circulavam pelas ruas de sua adorada cidade.
Era agora 1940 e faziam exatamente um ano da foto tão querida por Sarah, ela sentia saudades daquela época, pois logo depois os alemães alcançaram a Polônia e ela foi separada de seus amigos e de sua escola. Não se ouvia mais música em casa, ela sentia falta de Schumann e de Mozart. Ao menos tinham sua família, e mesmo que ela visse o pai e o avô cada vez mais calados e cada vez mais em casa, ela ainda se alegrava por eles ainda estarem com ela.
A verdade era que a situação na casa de Sarah não era nada animadora, assim como toda casa judia na Polônia. Muitos judeus e não judeus perderam seus empregos, escolas e repartições foram fechadas, jornais empastaledos e órgãos suspensos, era difícil até conseguir comida. Trabalhava-se agora para o regime nazista, inclusive alguns judeus serviram ao regime nazista basta vermos a criação da polícia judia e dos conselhos judaicos, isso não quer dizer que concordassem com a política nazista, mas era antes de tudo um mecanismo de sobrevivência que foi adotado até por alguns alemães.
Tudo era cada vez mais desesperador para os judeus na Polônia. Ainda em 1940 começa o planejamento para um isolamento dos judeus em Varsóvia, a criação dos guetos não tardaria. Na Polônia além do de Varsóvia, o gueto de Lotz ficou bastante conhecido.
"[...] sobretudo Jeremy e eles se casariam um dia talvez em Varsóvia..."
Não ver Jeremy era um tormento pra pequena Sarah, ela era apegada demais ao amigo por quem nutria um sentimento belo e inocente. Todos diziam que Sarah e Jeremy se casariam um dia pela grande afinidade que um tinha pelo o outro, mas há muito tempo já ela não o via, ela o viu uma vez após a foto e tornou em vê-lo em uma circunstância que nenhum judeu polonês gostou de ver.
Ainda em 1940, o governo de Varsóvia baixou um decreto determinando uma área especifica para onde todos os judeus deveriam se deslocar quase que imediatamente. Quem habitava na área específica ficou em suas respectivas casas, quem não morava na minúscula área especificada deveria urgentemente procurar moradia e condições de se manter dentro da área. Foi criado assim o maior gueto judaico estabelecido na Polônia, com quase 380. 000 habitantes que se espremiam em uma área que correspondia á apenas 2,4% por cento da área de Varsóvia. Um muro foi erguido separando e isolando os judeus do resto da cidade.
A família de Sarah já morava na área estabelecida e gozava que relativa tranqüilidade quanto à questão da moradia, mas em poucos dias levas de judeus em busca de moradia chegariam e eram judeus já mutilados economicamente pelas tão odiadas "Pogroms”.
No dia marcado para remoção, Sarah e a família que esperava outra família de amigos para abrigar em sua casa foram até a rua onde ficaria a entrada do gueto e foi ai que ela viu Jeremy. Ele vinha sendo puxado pela mão pela mãe que não carregava nada além de duas bolsas, o pai trazia alguns colchões e uma bolsa, pareciam ter sofrido bastante. Sarah se deixou invadir pela compaixão, pelo sentimento e começou a gritar por Jeremy. Ele a viu soltou a mão da mãe, e tentou sair da fila para encontrá-la. Ao iniciar uma curta corrida foi apanhado por uma pancada forte nas costas dada por um soldado. O grito de Jeremy se misturou ao de Sarah quando seus olhos se encontraram um momento antes dele voltar pra fila. Foi a última vez que eles se viram.
"Ela tinha os olhos claros e o vestido de veludo"
A vida no gueto não era fácil, pessoas se acotovelavam em ruas estreitas, a fome assolava a quase todos e a miséria era extrema tudo isso sob a vigilância cerrada dos alemães. Alguns órgãos como a policia judaica e os Judenrats (conselhos judaicos) foram criados para controle e manutenção dos guetos e respondiam diretamente aos superiores alemães na área. Como dito anteriormente apesar dos muitos abusos relatados por esses órgãos, não se pode generalizar, e dizer que esses órgãos eram a favor dos ideais nazistas e contra seu povo, pode-se encarar isso como mecanismos de sobrevivência.
O gueto de Varsóvia foi o maior da Europa e muitos judeus morreram ainda no próprio confinamento vitimados por doenças e pela fome. Abro aqui um à parte pra dizer que não só judeus foram confinados nos guetos, outros grupos étnicos como os ciganos, por exemplo, também foram jogados em guetos e assassinados no holocausto. Os guetos nas palavras de Michael Berenbaum eram instrumentos de um assassinato lento e passivo.
Em 1942 a situação fica mais tensa, pois os primeiros rumores de deportação começam a circular no gueto e a notícia cai como uma bomba sob Sarah que agora já tinha uma noção mais complexa do que se passou até ali. A pequena menina ainda estava traumatizada pela separação abrupta dos amigos e não raro seu pensamento pousava em Jeremy e na última vez que o viu. Para aumentar ainda mais a dor de suas experiências naquela noite o pai não voltou pra casa.
As deportações começaram em julho. Diziam que os deportados iriam para campos de trabalho servir aos alemães. Pessoas aleatórias eram pegas nas ruas e acotoveladas em trens de carga, uma cena comum naqueles dias em toda Europa. Quem conseguiu um comprovante de trabalho consegui se livrar das primeiras deportações, mas naquela noite o pai de Sarah não voltou pra casa. Ao ver o desespero da mãe e dos avôs, Sarah experimentou um sentimento precoce, a revolta acompanhada de impotência. Ela só teve forças pra sentar e chorar.
Se já era difícil ter comida em casa com o pai e com a família que eles haviam abrigado por perto, imaginem quando os chefes das duas famílias foram deportados. A responsabilidade caiu sobre o já cansado avô de Sarah que tentava vender o resto dos móveis e objetos da família. A menina via a vida no gueto com profunda apatia, freqüentemente via famintos nas ruas (e ela a família não estavam muito longe disso), pessoas doentes, loucos e soldados que abusavam de sua autoridade. Com as deportações os pogroms eram ainda mais fáceis de acontecer, e sua família vivia sob o risco constante de sofrer uma.
As deportações na verdade não destinavam judeus, ciganos e outras minorias étnicas ao campo de trabalho e sim a campos enormes de extermínio em massa. No caso dos deportados do gueto de Varsóvia, o destino era o campo de Treblinka.
“Ao lado de sua mãe e a família ao redor"
Era uma noite fria ainda em 1942, Sarah se acomodava ao lado da mãe em um canto da sala, ocupada também por outra família, o único quarto da casa ficou para os avôs, mais velhos na casa. Eles haviam saído da casa onde Sarah nasceu e se criou pra uma menor a fim de fugir de mais uma onda de deportações. Ela sentia-se cansada, com fome, e pior de tudo injustiçada. Injustiçada pelo pai, por Jeremy e por todos que ela via em situações extremas. Ela estava magra, não só ela sua mãe envelhecera dez anos em dois e ainda sim não ousava explicar a Sarah tudo que se passava ao redor.
Muitas coisas passavam ao redor dos pensamentos de Sarah quando gritos irromperam no saguão do pequeno prédio. Eram gritos profundos mais curtos, ouviram um tiro, passos iam e viam entrecortados por mais gritos e palavras em alemão, polonês e hebraico. A escuridão era palpável e a realidade mais ainda: estavam sobre um pogrom.
Não restava alternativa a quem tinha a casa invadida por alemães a não ser ficar no escuro e torcer para que eles fossem embora, na melhor das hipóteses expropriariam a casa ao lado, e no dia seguinte voltariam o que dava tempo suficiente para familiar se mudar ou encontrar outro esconderijo. Mas dessa vez os soldados subiram e com um chute abriram a porta que se abriu em um estampido ensurdecedor.
A partir dai tudo foi um borrão, alguém atirou pro alto, outro alguém gritou, soldados chutaram e espancaram um membro da família que se recusou a levantar, os avôs apareceram na sala, e Sarah foi arrastada em meio a um turbilhão de gritos, tiros, palavras de ordem, até a rua. As luzes dos tanques e veículos de guerra pipocaram nos olhos de Sarah que foi separada da mãe e dos avôs por uma leva de soldados que arrastavam outras pessoas por trás dela, isso a fez cair em desespero. Sarah gritava, se debatia, chorava e soluçava alto enquanto corria por entra os soldados a fim de alcançar a mãe. Às suas costas vozes enérgicas gritavam pra que ela voltasse, corria o risco até mesmo de receber um tiro, no entanto a pequena menina que já sofrera tantas separações não podia suportar mais uma e uma tão dolorosa.
Nesse turbilhão de informações, gritos, pessoas e passos, dois braços levantaram a pequena Sarah que tomada pelo susto parou abruptamente de gritar. Mas eram braços conhecidos, eram os braços amados de sua mãe. Ao redor delas a movimentação intensa não parava, mas elas eram quase como uma bolha no meio de todo aquele terror. E essa bolha foi sendo cada vez mais violentamente arrastada para uma praça onde convergiam caminhões que saiam do gueto rumo ao desconhecido. E em um desses caminhões elas foram embarcadas, o resto da família se perdeu, Sarah seguiu por uma estrada rumo ao desconhecido com um medo inimaginável e chorando baixo no colo da mãe, adormeceu.
Foi novamente acordada por gritos e por mãos que a puxaram dos braços da mãe. Mais uma vez Sarah gritou e chorou enquanto sua mãe lhe dava serena um último aceno que faria doer os corações mais insensíveis. A assustada menina foi jogada numa fila e empurrada violentamente por mãos, cassetetes e outras pernas. Uma massa humana era cada vez mais espremida rumo a um trem de carga ao fim da praça. Sarah era empurrada de modo que seu frágil corpo doía cada vez mais, uma dor física e espiritual. Antes de subir no trem ela rezou pelos pais, pelos avôs, por Ruth, Anna e Jeremy. Ela rezou por cada um dos que estavam ali naquele momento e foi alçada ao trem espremida entre pessoas cujo crime ela não conseguia explicar para merecerem um castigo assim.
A porta do trem fechou selando o destino de Sarah que infelizmente foi o destino de milhares durante a guerra. O fim da história é conhecido por todos, infelizmente.
Epílogo: Sobre a canção e a construção da história
"Ela não nasceu como você aqui e agora"
Comme Toi é uma canção escrita por Jean Jacques Goldman em 1982 lançada no álbum “Minoritaire” do mesmo ano. Nessa canção o compositor evoca a vida de uma pequena menina judia vitima do regime nazista durante a segunda guerra mundial. Jean Jacques Goldman que tem ascendência polonesa e judaica por parte de pai e alemã por parte da sua mãe escreveu a canção para sua filha inspirado em uma foto que encontrou nos álbuns de família de sua mãe. A letra da canção conta a história de Sarah comparando-a com a filha do compositor que apesar de ter ascendência judia nasceu em tempos menos difíceis.
Diante da canção tentamos reconstruir através da figura de Sarah ambientação da segunda guerra mundial na Polônia bem como a difícil vida dos judeus nos guetos, especificamente o de Varsóvia e alguns elementos sobre o holocausto. Obviamente que as questões aqui apresentadas são delimitadas de forma bem pontual. Outros trabalhos nesse sentido podem se fazer mais completos.
No entanto assim como a foto tocou e inspirou o compositor a escrever, sua canção que evoca frontalmente o holocausto (ou shoá em hebraico) nos toca pela simplicidade dos sentimentos explícitos nela e nos dá sim a possibilidade de por em mais palavras a história dessa "pequena menina sem história".