Ora-pro-nóbis

Valentina ganhara do maridão um dia de compras com o cartão de crédito. Era seu momento de distração, quando saia da rotina de salões de beleza, massagens, academia e programas de televisão. Calçados e, principalmente, bolsas (tinha um coleção incontável delas), pareciam anestesiá-la das ideias absurdas que, de vez em quando, remexiam em sua cabeça qual molusco ao sol. Certa vez, sugeriu ao companheiro mudarem para uma casa menor com quintal, onde plantariam ora-pro-nóbis e criariam galinhas (adorava ora-pro-nóbis, com arroz, feijão, angu e frango...), ao que ele negou “deixa de ter alma de pobre, mulher!”        Há muito, perguntava a ele se já não era hora de terem um filho, mas ele dizia para esperar, pois “uma criança é um investimento muito dispendioso e arriscado, melhor continuar apostando nas ações nas bolsas de valores, quando tivermos dinheiro suficiente, podemos pensar” (bolsas... o que mais eles tinham em comum...). Então ela canalizava suas pulsões maternais em pequenas doações de afago nas cabecinhas das crianças que encontrava nas caminhadas pela manhã.

Ela seguia em direção ao shopping que ficava a uma quadra da cobertura. Deliciava-se, escondido, o prazer de comer uma barra de chocolate ao leite, raro prazer que lhe causava uma alegria efêmera, mesmo com os efeitos colaterais das admoestações do maridão que lhe advertia sobre “o perigo da barriguinha”. O doce cacau era a sua sutil traição.

A cor borra-de-café do chocolate borrava seu batom vermelho sangue. Levou aos lábios lambuzados os dedos pegajosos do seu deleite. Lambeu-os um a um. Depois, parou os passos e procurou na bolsa, que parecia carregar o mundo, o lenço de papel e o estojo de maquiagem. Retocava com o dedo mínimo, retirando o excesso rubro das bordas, quando seus olhos se depararam, por cima do quadrado do espelho, com uma mendiga.

A mulher estava assentada no passeio sobre as pernas dobradas. Os olhos vidrados como caramelos vencidos fitavam algo além da paisagem urbana. Valentina traçou uma linha invisível do olhar da pedinte ao outro lado da avenida, mas a reta culminava numa multidão de transeuntes agitados. A mão direita erguia fortemente um prato de alumínio com algumas moedas e uma nota de dois; o braço esquerdo abraçava o peito murcho. Ela era pele, ossos, o coração batendo e o pulmão respirando. Valentina guardou rapidamente a maquiagem deixando uma suave meia lua de chocolate no canto do lábio superior esquerdo. Procurou com dedos aflitos algum trocado no fundo da bolsa. Queria se livrar urgentemente daquela mulher e chegar ao shopping. Aproximou-se da mulher com três moedas entre o indicador e polegar opositor (suas características de homo sapiens). A mão pendida sobre o prato de alumínio. A mulher intacta parecia a múmia de Eva. Valentina buscou na fisionomia da pedinte um reconhecimento de gratidão, um arco simulado de sorriso e um olhar de reconhecimento que a redimisse da culpa que pulsava no pescoço. Valentina se sentiu fundir à mulher como o batom ao cacau. A mulher lentamente ergueu o rosto e encarou Valentina. As sobrancelhas franziram em contração miúda formando rugas à margem dos olhos no crânio embalsamado. Valentina soltou as moedas que tilintaram no alumínio como sinos ancestrais. A mulher voltou a visualizar o vácuo. Valentina e a mulher imóveis como estátuas de mármore. Apenas os seios de Valentina contidos no decote subiam e desciam ofegantes como grandes bolhas numa cratera vulcânica.

“Vem cá!”, disse Valentina pegando o braço erguido da mulher, “tenho uma coisa pra você”. A mulher levantou-se lentamente, pegou um saco com coisas que carregava consigo (a certidão de nascimento do filho envolta numa fita azul-bebê, já um papiro com hieróglifos escritos com lágrimas). Valentina puxava a mulher pelo pulso como se estivessem atrasadas para um voo. A mulher se deixava levar mecanicamente, os passos magros repercutindo em solavancos em todo o corpo. A fisionomia impassível, mesmo quando Valentina passou pela luxuosa entrada do prédio e o porteiro de terno perguntou “Encontrou uma nova empregada, Dona Valentina?” ao que ela respondeu entre os dentes “Não, é minha amiga”; mesmo quando entrou no elevador e voz metálica pronunciou “SUBINDO. VIGÉSIMO PRIMEIRO ANDAR”; mesmo quando Valentina abriu a porta da cobertura digitando um código num teclado fluorescente; mesmo quando entrou na sala exuberante com móveis imensos e simétricos onde olhos tortos de pinturas concretistas pareciam assustados com sua presença; mesmo quando Valentina a levou ao banheiro, a despiu e colocou-a sob a ducha. A mulher permanecia impassível.

Valentina deslizava as mãos no corpo da mulher como se fosse uma oleira. Ensaboando arestas, retirando vestígios acumulados em fendas, descobrindo cicatrizes... Os cabelos longos da mulher se revelavam maravilhosos, um véu molhado que ganhava brilho de verniz. Depois, Valentina a pôs na banheira de hidromassagem num coquetel de óleos hidratantes de aloe vera e sais de banho que fervilhavam espumas, minúsculas explosões de perfume. A mulher desnuda, ereta e fleumática, parecia uma habitante da antiga Atenas. Valentina também ficou nua e entrou na banheira. Assentou-se à frente da mulher, acariciando seu rosto de pergaminho, como se tivesse lendo segredos em Braille. Subitamente a mulher rompeu em choro. No início, algo parecido como um canto místico de uma druida, depois crescendo numa escala de coral, soprano soprando sinas secretas. Valentina assistia atônita, a boca semi aberta sibilando interjeições inaudíveis que se transformavam, também, em choro incontido.  As lágrimas pareciam transbordar a banheira, duas Perséfones libertas, emergindo dentre as ondas alvas.

Diante das prateleiras do closet, as inúmeras bolsas e calçados de couro de avestruz, jacaré e cobra pareciam animais enjaulados observando temerosos as duas mulheres. “Peço-lhe perdão por isso tudo aqui”, disse Valentina, “cada um deles foi uma parte sua que usurpei”. A mulher voltara ao seu estado imperturbável, embora parecesse conter uma esperança fresca na pele úmida. Valentina as vestiu com camisões. Descalças, as duas foram para a cozinha.

Impossível sentir o tempo passar, quando Valentina buscou em si toda a inspiração instintiva no inconsciente coletivo das fêmeas que nutrem. Foi um banquete de odores de azeites, carnes, temperos, folhas e molhos. Dispôs cada prato sob a mesa, enquanto falava da sua infância na fazenda da avó “sabe, minha nona que fazia... eu não lembro muito bem... almoço sempre em restaurantes... espero que tenha ficado bom...” As palavras eram cúmplices, emitidas informalmente, como se as duas fossem duas amigas de amarelinha. A mulher mastigava lentamente, buscando associar o sabor a um nome há muito esquecido, acostumada com as sopas insossas improvisadas em tijolos, chamas e latas.
 
O sol se punha deixando um bônus dourado na cena da cozinha. O marido surgiu à porta, mas não afrouxou a gravata e disse “oi amor” dando um beijo na testa de Valentina, nem comentou sobre o índice da Bovespa ou Wall Street, nem perguntou o que ela encomendara para o jantar devido à falta de empregada, mas deixou a pasta cair, abrindo-se e vomitando papeis no porcelanato, assim como seu queixo que despencou ao ver as duas mulheres parecidas esculturas de bronze. “Quem é essa aí?” perguntou. “Minha amiga”, respondeu Valentina encarando-o convicta. “Qual é o nome dela?” indagou assombrado. “Ela tem o nome de milhões de mulheres do mundo”. Ele não teve tempo de entender, pois Valentina foi ao quarto e depois voltou. Ambas de calças jeans, camiseta, rasteirinha. A mulher com o saco de coisas; Valentina, apenas com a carteira no bolso. “Volto mais tarde”, disse Valentina deixando o marido perplexo, vendo a grande porta fechar atrás delas.

Valentina retirou vinte mil reais da conta conjunta e, enfim, fez a compra com o cartão de crédito. Malas cheias de roupas, cremes, calçados, remédios e livros. Os taxistas observavam curiosos as duas mulheres estranhas. Valentina segurava as mãos da mulher, apertando-as com falanges firmes. “Minha filha ou minha mãe, sei lá... Pegue esse dinheiro e essas malas e dê um pouco de significado a sua vida! Quer que eu a leve a algum lugar?” A mulher pela primeira vez pronunciou palavras com os lábios pálidos e as pálpebras vibrantes “À estação ferroviária, por favor!”

Valentina e a mulher olhavam a curva dos trilhos. Ele se anunciou em apitos festivos de possibilidades. O rosto da mulher maquiou-se de vida e os olhos brilharam como turmalinas lacrimejantes. Ela virou para Valentina e disse “Eu te amo, assim como a meu filho”. Depois, entrou no trem e desapareceu passageira.

O marido de Valentina franzia a testa, socava a mesa e cuspia palavras da boca escancarada “Louca, desvairada, demente, maluca! Acha que meu dinheiro é capim? Eu trabalho, dou duro, para te dar essa vida de regalias e você vem com uma sandice dessas?”, porém Valentina não o ouvia, apenas contemplava algo intangível que traçava vestígios jubilantes no rosto limpo.

A separação foi rápida. Amigável. Valentina quis pouco. Comprou um barracão com um quintal do tamanho do mundo onde corria descalça. Fez um curso de cabeleireira e adornava cabeças. De vez em quando, acolhia desafortunados e os servia de sua fortuna: arroz, feijão, angu e frango com ora-pro-nóbis. Terminava lambendo os lábios. Sem batom. 

 
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 25/05/2014
Reeditado em 25/05/2014
Código do texto: T4819261
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