Tempo de renascer
A criação não tem limites. Li essa frase alguma vez, em algum lugar - talvez no meio de uma entrevista de jornal - e tenho pensado muito nela. Posso dizer que ela me penetrou. Às vezes, quando estou sozinha, começa a mexer comigo. A criação não tem limites. Deixo impregnar-me, querendo chegar a um pleno sentido.
Minha filha aparece, sinto-me confortada. É como se estivesse em casa. Fico pensando em pedir-lhe algo, não sei se terá chegado o momento. No fundo, nada mais corriqueiro. Seu olhar me anima:
- Podes me trazer uma coisa?
- O que queres?
A bendita idéia dentro de mim, pertinaz. Bendita, será? Tenho de convencer-me, deixar-me invadir, o corpo, todos os poros. A criação ou a paixão...? Minha filha toca de leve meu braço e repete a pergunta.
- Um caderno... (Firmo a voz.) Estava na primeira gaveta da escrivaninha. Um caderno marrom...
- Queres escrever?
Os grandes olhos param em mim. Um encontro com os meus. Não posso fraquejar. Movo a cabeça numa afirmação. Luciana se afasta, murmurando um 'já venho'. Fico impressionada com a coisa: parece um momento solene. Se fosse um pedido de casamento, algo assim... É apenas um anseio que brota, eu quero escrever. Queres viver? Rio sozinha, entre o alívio e a preocupação. É bom recostar-se no travesseiro de penas. Respiro fundo, uma, duas vezes, revivida.
Quando surge a enfermeira, ainda estou sob o efeito da conversa. Tenho a impressão de que reagi. Terei mesmo reagido? Estarei superestimando um mero desejo? Enrijeço as costas, encaro a mulher bonachona:
- A senhora pode levantar a persiana?
Não se irrita mais com a claridade, questionam seus olhos de surpresa. Sem falar, descortina a luz, que me banha por inteiro. Tateio no novo ambiente, zonza, possuída. Como devagar, tentando aproveitar o máximo dessa comida que não escolhi. De repente, Luciana encontra-se diante de mim.
- Trouxe...
Na minha frente, vive uma expectativa. Faço sinal de que coloque o caderno em cima da mesinha de cabeceira. Já terminei a refeição; por que não pegá-lo? Uma recaída, só pode ser.
- Caneta ou lápis?
Não falta nada, só falto eu. Luciana ali, firme na paciência:
- Não queres tentar?
Trégua, por favor... Impossível fugir da raia. Aos pouquinhos, trêmulo, vai saindo o meu nome. A alegria de Luciana envolvendo o quarto. Concentro-me: a criação não tem limites. A vida não tem limites? Descanso da minha façanha, caindo nos travesseiros. Por hoje, é só.